Paweł Kuczyński |
Pois bem, basicamente falando, acho que, essencialmente, se são coisas completamente diferentes ou não, não perderei meu sono por isso. Até porque pretendo deixar Oscar Wilde quietinho em seu canto nas linhas vindouras. Antes, e coincidentemente, conto que assisti há pouco a entrevista que Caetano Veloso concedeu ao programa Sangue Latino (Canal Brasil), que é apresentado por Eric Nepomuceno; em determinado momento, quando questionado por este sobre a função da arte, respondeu: "A arte é uma inutilidade, é uma compulsão de criar objetos inúteis; mas eu acho que é essencial pra vida humana. E essa inutilidade é uma das coisas mais úteis que há, porque é uma instância. Às vezes é superestimada, idealizada; às vezes é desprezada e injustiçada, mas [...] é uma instância fundamental da experiência humana."
E, apesar de deixar transparecer aparente paradoxo, Caetano me revelou o caminho a seguir em meu depoimento. Não porque eu não soubesse, mas por ratificar o que eu já sabia. Mas vamos por partes. Se levarmos ao pé da letra o significado da palavra utilidade, a que resposta chegamos? O que é basicamente útil pra vida humana? Pensemos. Em primeiro lugar, respirar, obviamente. Em seguida, comer, beber, obedecer às necessidades fisiológicas e dormir. Não é isso? Todo o demais são apetrechos, acessórios, muletas. Escovar os dentes, tomar banho, vestir-se, pentear os cabelos, fazer a barba (ou maquear-se), cortar as unhas e blá-blá-blá... Tudo isso não poderia ser visto também como inútil, ou ao menos irrelevante pra sobrevivência humana? Afinal, fora o homem, nenhum outro animal se dedica a tais atividades.
O que seriam então? São empreendimentos que fomos aprendendo ao longo dos séculos pra aperfeiçoar o convívio em sociedade. Como usar talheres, gravata, ou ainda salto alto (aliás, cá pra nós, gravata e salto alto são duas coisas que deveras não entendo). Indo um pouco mais adiante, faço uma pergunta capciosa: qual a utilidade do trabalho tal qual o conhecemos hoje? Por que trabalhamos? A maioria dirá que pra ganhar dinheiro. Certo, mas ganhar dinheiro pra quê? Pra pagar contas, comprar coisas, viajar, economizar pro futuro etc. Não seria tudo isso também uma inutilidade? Vejo por um viés ainda pior: trabalhar, pra maioria dos mortais, é fazer o que não se quer pra enriquecer terceiros. Pensem nisso.
Explico: pensemos nos que trabalham nas fábricas, apertando parafusos ou coisa que o valha. Esse camarada deseja estar ali? Não é uma perda de tempo pra ele apertar parafusos? Ou ainda quem trabalha com vendas e tem que passar o dia todo empurrando nos possíveis clientes algo de que nem ele mesmo precisa e em que muitas vezes nem acredita. Quem trabalha em escritório ao telefone, no computador, nos arquivos... Qual significado tem isso pra vida desse sujeito? E os que trabalham em obras mexendo com cimento, areia, pedra, ferro... Uma delícia, não? Com um confortável capacete cobrindo a massa cinzenta e usando uniformes estilosos... Nem preciso ir mais longe, basta que cada um de vocês faça um exame de consciência e pense na utilidade de seu trabalho pra si mesmo.
E, se quisermos ir mais adiante ainda, podemos pensar nos que estudam pra se formar em algo de que não gostam, pra exercer uma profissão que odeiam, mas que – assim esperam – lhes poderá gerar um bom dinheiro (pra gastar com tudo o que já citamos acima). É útil tal categoria de ensino? Atualmente, por exemplo, vejo muitos médicos incompetentes e que não poucas vezes deixam transparecer infelicidade ou mesmo uma atitude distraída em relação ao paciente. Imagino que, no momento do atendimento, esse camarada deve estar com a mente longe, pensando numa praia, numa piscina, numa casa de campo... Principalmente, se for num fim de semana e ele estiver fazendo plantão em algum hospital... ou, pior, pronto-socorro!
Desculpem se exagerei nos tons, tudo isso não passa de um exercício da mente pra tentar descobrir o que seja essencialmente útil em nossa vida. E aí, depois desse tema sempre tão cansativo que é o trabalho, chegamos, enfim, à hora do descanso, mais especificamente à hora do lazer. Nessa hora, temos a cerveja com os amigos, o futebol, a balada, a danceteria, a televisão, o videogame, o quebra-cabeça, as palavras cruzadas, os 1.001 usos do celular etc. Se pensarmos que a arte é inútil, o que vem a ser então essa série de coisas que acabo de citar senão inutilidades? Eu queria chegar a esse ponto. Vejam como tudo (fora respirar, comer, beber, dormir e atender às necessidades fisiológicas) pode ser considerado inutilidade. Non è vero? Ah, inclusive o sexo quando não é pra procriação.
Então, chegamos à conclusão de que a própria vida, quando perdida em tantas inutilidades, é inútil. No entanto, ninguém (ou quase ninguém) quer morrer. E é aí, nesse vácuo da existência, que entra a arte. Completamente! E é aí que entra Caetano, quando diz que arte "é uma instância fundamental da experiência humana". Já que estamos vivos, e que estamos aqui, podemos gastar nossa vida simplesmente em respirar, comer etc., ou podemos penetrar na experiência de pensar mais profundamente a respeito dela e de todas as outras inutilidades que a rodeiam e que já citei acima. Essa atividade pode ser entendida como arte (ou filosofia, que é irmã desta), a captura do humano numa tela, numa escultura, num poema, numa prosa, numa canção, numa película. E não só do humano em si, mas de todos os seus anseios, dúvidas, medos, desejos, invenções... Tentar entender tudo isso não é de uma inutilidade atroz? É dessa inutilidade que é feita a grandeza da arte.
... e este próprio texto.
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PS: A curiosidade me levou a ir ver a edição que tenho de O retrato de Dorian Gray. E – pasmem! – lá encontrei que "toda arte é absolutamente inútil" (grifo meu)! E, já que voltamos a Wilde, terminemos com ele: "O artista é criador de coisas belas. [...] Não existe livro moral nem imoral. Os livros são bem ou mal escritos. [...] a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um instrumento imperfeito. Nenhum artista pretende provar o que quer que seja. Artista algum tem preferências éticas. Uma preferência moral, em um artista, é imperdoável maneirismo de estilo. Não há artista doentio. O artista pode exprimir tudo. O pensamento e a linguagem são para o artista instrumentos de uma arte. [...] A diversidade de opiniões acerca de uma obra de arte evidencia que essa obra é nova, complexa e vital. [...] A única justificativa para a criação de uma coisa inútil é que ela seja admirada intensamente."
"Oscar Wilde me representa", disse o autor de Filho da preta!.
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então, tá!
ResponderExcluirGastamos a maior parte do nosso tempo, insatisfeitos, com a questionável utilidade do trabalho, que é trocado por dinheiro, para trocarmos por coisas inúteis que amamos, que curtimos por um curto espaço de tempo. Tá certo.
Texto, utilmente questionador, Leozíssimo.
beijo
Valeu, Vanessinha!
ExcluirBeijos,
Léo.