quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Crônicas Desclassificadas: 167) Paris x Mariana

A morte me é um tema muito sensível. Já escrevi sobre ela diversas vezes aqui. Não à toa, um dos romances que mais mexeram comigo nos últimos anos foi justamente As intermitências da morte, de José Saramago, no qual durante um período ela (a morte) para de atuar, pra logo voltar, mas de acordo com novas regras. Confesso que o interesse pelo assunto é novidade pra mim. Como todo jovem, achei que tinha uma eternidade pela frente. Contudo, com o passar dos anos, e após ter tido contato real com a morte por mais de uma vez, de repente, do dia pra noite, dei-me conta de que sou mortal, meu tempo pra realizações pessoais é limitado. E, a partir de então, passei a vislumbrar a possibilidade de um mundo sem mim(!).

Desculpem, não é ego, nem egoísmo, é apenas o desabafo após uma constatação. Passamos a vida sonhando em realizar projetos, fazer viagens, ter uma aposentadoria digna e uma velhice saudável da qual usufruiríamos descansando naquela tão idealizada casa no campo etc. e tal, pra depois PIMBA!, morrermos "sem ter visto a vida"? Essas divagações sempre me fazem recordar do fodástico poema Se te queres matar, de Fernando Pessoa – todo genial –, no qual ele cutuca: "Fazes falta? Ó, sombra fútil chamada gente!/ Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém.../ Sem ti correrá tudo sem ti./ Talvez seja pior para outros existires que matares-te.../ Talvez peses mais durando, que deixando de durar..."

Triste, não? Mas deixemos de lado digressões que só dizem respeito a mim e tratemos do espinhoso tema do momento, este Fla-Flu que tem dicotomizado a sociedade. Aliás, por falar em dicotomia, já faz algum tempo que, trate-se de qualquer assunto, temos visto aqui no Brasil uma sociedade bem dividida entre os do lado de lá e os do lado de cá. Estaremos perdendo a riqueza dos matizes e nos tornando uma sociedade que só aceita o preto e o branco? Pensem nisso! E, antes que me entendam mal (visto que hoje a interpretação de texto anda tão capenga), não estou me referindo aqui a raças, e sim à pluralidade de ideias. Parece que só temos o direito de concordar ou discordar, como se o mundo não fosse tão mais complexo do que a visão hollywoodiana de mocinhos vs. bandidos.

E o Fla-Flu do momento é, segundo meu entendimento, de uma crueldade que vai além das vítimas. Trata-se de dividir brasileiros entre os que se sentiram tocados com a tragédia de Mariana (MG) e os que igualmente se chocaram com os recentes atentados em Paris. Como assim? Eu gostaria que alguém me explicasse em que exatamente uma dor desabilita a outra. Então, chorar pelas mortes de Paris nos torna alienados insensíveis em relação à calamitosa situação de Mariana? Em que isso ajuda a ao menos amenizar a dor dos familiares das vítimas de Paris e a dos sobreviventes de Mariana que perderam tudo? A impressão que tenho é de que muitos "militantes" das redes sociais estão bem mais preocupados em arrotar certo exercício de retórica do que realmente em buscar soluções.

Mais além dessa "disputa" que mede a dor de um pelo diapasão da dor do outro, existe um fator que poucos percebem e que pode até mesmo nos tornar ingênuos hipócritas: os meios de comunicação em geral têm atualmente se preocupado em atuar em dois campos que não são exatamente conflitantes. Parte da imprensa quer doutrinar, outra parte quer dar a notícia que vende mais jornal. Então, se se fala mais em Paris que em Mariana, não seria por que, infelizmente, o doutrinado brasileiro tem mais interesse em saber o que ocorre no primeiro mundo do que o que ocorre em seu próprio país em regiões com menos importância política? Notem que não estou defendendo este ou aquele, apenas tento entender os mecanismos por trás dessa engrenagem.

E é exatamente por isso que, quando uma pessoa pública morre, há uma cobertura maciça da imprensa; já, quando um anônimo morre, se não for de morte extraordinária, a notícia passa em brancas nuvens (fora uma ou outra nota de rodapé). Em relação ao cidadão comum, e mais especificamente ao usuário de redes sociais, acredito que pôr na balança a morte de x de um lado e a de y do outro é – talvez inconscientemente – tentar dizer que um morto vale mais que outro. E não nos esqueçamos de que era mais ou menos o pensamento nazista, que justificava matar exatamente porque usava a lógica de que a vida de um judeu valia menos que a de um ariano (não o Suassuna). Não estaremos nós – sem querer, querendo – repetindo essa ideia?

Alienadamente ou não, sensibilizar-se com uma morte ainda é mais digno do que ser de todo insensível. No mais, melhor do que brigar com seus amigos, por pura retórica, é arregaçar as mangas e tentar fazer algo útil pra ajudar as vítimas. Enquanto discutimos, há pessoas que estão fazendo justamente isso. Exemplo: conheci um motoqueiro dia desses que me disse que pertence a um grupo que está se mobilizando pra conseguir água pra levar pra Mariana (e às próprias expensas). Outra coisa importante é, sim, fazer alarido pra que se punam os culpados (lá e cá). Que a história de Mariana está mal contada é fato, e não podemos deixar que essa investigação seja pra inglês ver. Mas devemos estar atentos também ao que se passa do outro lado do oceano, pois o plano de domínio do Estado Islâmico pode aportar (explosivamente) do lado de cá qualquer dia desses. Nesse dia, nem Paris, nem Mariana...

***

27 comentários:

  1. Ótima crônica Leo, Mariana, Paris, Beirute, Quênia, Maré, Complexo do Alemão e muitas outras tragédias acontecem, mas tudo realmente é uma questão do foco que a imprensa dá. E esse foco depende mesmo do interesse do público. As vezes acho que as noticias envolvendo lugares pobres e esquecidos pelas autoridades só entram no jornal para que a publicação seja politicamente correta. O que os traficantes + milicianos + policiais fazem aqui no Rio de Janeiro é uma tragédia digna de bandeirinha no facebook tb (afinal é uma guerra, não oficial, mais é), a miséria dos rincões do Brasil, o nível da educação publica brasileira, da saúde e muitas outras tragédias, mas tudo é questão de foco. E as pessoas se acostumam com o inadmissível, por inúmeras razões, inclusive por questões culturais tão enraizadas que fica difícil saber por onde começar. E o que mais precisamos não temos: senso de nação e de união como povo. Aqui é cada um por si, farinha pouca meu pirão primeiro.
    Abraços!

    Denis

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo plenamente, Martino! Lúcidas palavras!

      E grato pela visita!

      Abração,
      Léo.

      Excluir
  2. Texto muito oportuno, irmão! Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Posso chamar de "Leozinho"? Não? - Vou chamar assim mesmo(não pode rir..kkk... tem controvérsia nesse risinho safado)
    Vou usar o macete : escreveu exatamente o que penso, faço minhas as suas palavras.
    Como sou Lucinda Prado digo: Se eu não estivesse literalmente preguiçosa,escreveria sobre o assunto.
    O assunto merece nossa atenção,e você fez isso "fodasticamente".
    "Fazes falta? Ó, sombra fútil chamada gente!"...
    Beijos me queridão.Nos veremos por ai.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. "Lucindinha", claro que pode! Só não venha me cobrar depois direitos autorais por ter escrito exatamente o que você pensa. rs

      Beijos,
      Léo.

      Excluir
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Salve, Pedro, parceirão d'além-mar!

      Muito oportuno seu comentário pra enriquecer o texto. No mais, é isso aí, "dor é dor e ponto final". As medidas que cada um toma a respeito é que são elas, e confrontar uma com a outra não é uma das soluções.

      Abração,
      Léo.

      Excluir
  5. Discordo de você em apenas um ponto. Quando escreveu que a história está mal contada... Está bem documentada em várias timelines, só falta bater o martelo do juiz e isso, infelizmente, pode demorar... De resto, concordo que tragédia não se mensura, ainda mais quando uma delas afeta a vida de uma região inteira e outra que pode nos levar á um conflito mundial. Desejo PAZ para que muitas composições ainda sejam criadas e ouvidas. Abraço para você Léo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Salve, Cláudio! Bom te ler por aqui!

      Em relação ao "mal contada", referia-me à imprensa oficial, visto que o texto trata também da veiculação dos dois assuntos nos jornais.

      Abração,
      Léo.

      Excluir
    2. Não tenha dúvida que a mídia convencional omitiu, até onde pôde, as responsabilidades e fatos da tragédia em Mariana. Porém, a mídia alternativa documentou e, pesquisando nela, podemos juntar os fatos.

      Excluir
    3. Cláudio, a questão que levanto em meu texto, como disse, tem como foco a grande imprensa, porque é justamente onde a maioria das pessoas vai buscar a informação. Não estou dizendo que não existem outros meios onde podemos nos informar. Dependendo do interesse de cada um, pode-se chegar bem mais longe na informação. O problema também é que não dá pra confiar em muito do que se publica na chamada mídia alternativa. Há que se garimpar. Mas a intenção de meu texto é apenas mostrar ao leitor que esse duelo pseudoideológico não resolve os problemas que aí estão à espera de solução.

      Excluir
  6. Léo, querido! Fui corrigir uma palavra do texto, sem querer, deletei. Ainda pago estes micos. Sniff!!

    A verdade é que o mar nao está pra peixe, nao! Abraçao

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Puxa, Pedro... que pena... Não salvou em nenhum lugar? O que você tinha escrito era superimportante sobretudo porque ilustrava a opinião de quem vive próximo aos acontecimentos... Se lembrar, poste de novo.

      Abraço,
      Léo.

      Excluir
    2. Escarafuncha aí Pedro Moreno,fiquei curiosa para ler sua opinião. Beijos

      Excluir
    3. Também fiquei curiosa, Pedro! Poxa...
      Li seu texto, Léo, com o qual concordo totalmente, e agora estou lendo os comentários.
      Existem esses dois lados: o julgamento popular segundo o qual devemos nos solidarizar mais com as nossas próprias dores (como se as alheias doessem menos, ou devessem nos interessar menos); por outro lado, os pesos diferentes dados pela grande mídia aos dois fatos.
      Enfim, esse nosso mundinho às vezes me dá uma grande preguiça. Não de pensar ou mesmo de agir, mas de tentar entender.
      Beijos!

      Excluir
    4. É verdade, Danny. No texto, quis alertar pra duas coisas diferentes: 1) dor é dor, seja onde for; 2) que devemos ficar alertas pro desenrolar dos acontecimentos, aqui e lá, é fato.

      Valeu, Lucinda!

      Pedro, olha aí o povo requisitando seu depoimento!

      Abreijos,
      Léo.

      Excluir
  7. Escrevi um comentário inspirado e emocionado e não publiquei : (
    Aff...

    Não é ego e nem egoísmo, mas se Deus quiser um dia eu morro bem velha ... índio, mulato, preto, branco - a morte não causa mais espanto, miséria, miséria em qualquer canto... A mim causa e muito, aqui, ali, em qualquer lugar

    https://www.youtube.com/watch?v=sWMWITtHFVk

    ResponderExcluir
  8. Ótimo, Léo!
    Concordo, mesmo, não é um SantosXPalmeiras.
    Quanto a Grande Mídia, é isso aí, além destas duas tragédias, outras aconteceram e acontecem, mas não servem nem para doutrinar, nem para vender, e para a Grande Massa, elas nem precisam existir. Os debates e reflexões, nem sempre tão lúcidos, nem sempre tão confiáveis, ficam por contam dos locais alternativos, mesmo, não só sobre estas duas, mas tb outras com menos visibilidade em todos os meios, porém não menos importante do ponto de vista "vida humana". É o que temos por enquanto, mas ainda é pouco.
    bjbj e sucesso, Léo(zérrimo)...kakakakaka! inventei, agora, essa!

    ResponderExcluir