Escrever é, entre outras coisas, também um exercício de estilo. Não é apenas o que se quer contar, mas a forma utilizada pra fazê-lo. Claro, estou me referindo à literatura, mas podemos aplicar o mesmo raciocínio a outras artes, como, por exemplo, o cinema, a música etc. Ao vermos um filme, percebemos quando tem a "digital" de seu diretor por alguns detalhes, como a forma de manejar a câmera, a opção por sequências longas ou cortes rápidos, a utilização de cores berrantes (tão ao gosto de Almodóvar) ou desbotadas, ou ainda o preto e branco. Já quando ouvimos uma canção de João Bosco, por exemplo, logo nos primeiros acordes reconhecemos seu violão único; ou, se é de Chico, suas rimas sufocantes chamam a atenção, assim como suas aliterações e metáforas.
Indo um pouco mais longe, nas artes plásticas os traços cubistas de Pablo Picasso são característicos, com suas formas geométricas; o colombiano Fernando Botero é inconfundível em suas obras que retratam figuras rechonchudas; o espanhol Joan Miró pintava como se quisesse assassinar a pintura; sem falar em outro espanhol, o arquiteto catalão Antoni Gaudí, que deixou suas marcas inspiradas na natureza por vários pontos de Barcelona. Nós temos, na arquitetura, nosso Oscar Niemeyer, tão polêmico quanto genial. Sempre digo que artista é todo aquele que faz o que todo mundo tenta fazer, mas com assinatura própria. Você pode notar isso até comendo pães de padarias diferentes: numa, o pão é uma droga; noutra, é divino. Mesmo quem não é um perito nos assuntos acima citados pode perceber tais detalhes sem maiores dificuldades.
Mas voltemos à literatura. O tal exercício de estilo ao qual me referi pode tanto virar realmente um estilo como, na maioria dos casos, resultar mesmo em apenas um... exercício. Sim, porque nem todos temos talento à altura da capacidade de formular invencionices. Saramago, por exemplo, após debutar na literatura sem grande repercussão, teve a ideia de suprimir todos os sinais de pontuação que não o ponto e a vírgula. Segundo ele, assim a palavra escrita se aproximaria mais da fala e se tornaria, pois, viva. E obteve tanto êxito, que, além de conseguir associar a si tal método, ainda tem sido copiado por muitos. Afinal, depois que alguém foi na frente abrindo caminho, fica fácil seguir suas pegadas.
Eu mesmo, em meu primeiro esboço de romance, lá se vão quase 20 anos, ouvi de um ou outro leitor amigo que eu estava muito "na cola" de Saramago. Mas isso é normal quando damos os primeiros passos numa arte. Na letra de música, já imitei muito Chico Buarque também até me desvendar. A originalidade não é um artigo que se escolhe. Não é como ir a um supermercado e optar entre uma ou outra marca de um mesmo produto. É mais a capacidade de ser natural, por mais absurda que sua literatura possa parecer. Há quem encontre, por exemplo, ecos kafkianos em livros anteriores a Kafka. Só que ele foi o camarada que chegou mais longe em suas bizarrices, talvez por ter entendido como poucos o surrealismo de certos comportamentos e atitudes do convívio em sociedade.
Tanto, que hoje, quando nos deparamos com algumas situações do cotidiano pras quais não encontramos explicação plausível, tascamos um "isso é kafkiano". Esse olhar sobre seu entorno também foi fartamente explorado por nosso Guimarães Rosa, que, por tamanha capacidade de observação, acabou por inventar um "sertanejo" bem peculiar. Na verdade, a invenção nada mais é que uma adaptação de tudo o que já existe. As palavras que Rosa "inventou", ele não as criou do nada. O mesmo podemos dizer do moçambicano Mia Couto, a quem muitos criticam como cópia de Guimarães. Discordo. Quanto mais o tempo avança, mais fica difícil não ter sua obra comparada a terceiros, visto que somos também um pouco do que lemos.
Voltando à música, quando Chico Buarque apareceu o compararam a Noel Rosa; Tom Jobim bebeu às fartas de Villa-Lobos; Cazuza ecoava Cartola (até no nome: Angenor este, Agenor aquele); Arnaldo Antunes sempre bebeu da poesia concreta em suas letras; e por aí vamos. O mais importante é aprendermos a trilhar nosso próprio caminho. Ainda falando de música, deparamo-nos constantemente com músicos de bar que executam clássicos da MPB imitando até os trejeitos de quem gravou a canção originalmente. Superarmos uma influência é um parto. Começa por negá-la, passa pelo afastamento até chegar à reconciliação, mas isso depois que já não precisamos mais desse ídolo-pai a nos levar pro mundo (cão) pela mão.
Gosto muito do livro O zen e a arte da escrita, de Ray Bradbury, escritor estadunidense que tem uma vasta (e elogiada) obra no campo da ficção científica, com destaques pra Fahrenheit 451 (adaptado maravilhosamente pro cinema por François Truffaut) e As crônicas marcianas. Separei dele uns trechos pra me auxiliar nesta prosa: "Se você está escrevendo sem entusiasmo, sem prazer, sem amor, sem alegria, você é apenas meio autor. Significa que está tão preocupado em manter um olho no mercado, ou um ouvido no círculo de escritores de vanguarda, que não está sendo você mesmo. Talvez nem ao menos se conheça. [...] Sem esse vigor, seria melhor colher pêssegos ou cavar buracos." Ele escreveu isso em 1973, mas soa tão atual! Hoje, vemos tantos atravessadores causando engarrafamentos na estreita estrada das artes...
Às vezes, é só questão de "simancol". Quando comecei a escrever meu romance Filho da preta!, o narrador estava na terceira pessoa. Cheguei a encher cerca de dez páginas; parei pra ler e estava sofrível! Mas eu sabia que a história era boa, então resolvi recomeçá-la, mas em primeira pessoa. No meio da página inicial, já comecei a perceber a diferença. Agora, o cara que eu imaginava estava vivo de verdade! Sobre isso, Bradbury escreveu o seguinte: "Encontre um personagem, como você, que vai querer ou não algo com todo o coração. Mande-o correr. Atire-o pra fora. Depois o siga o mais rápido que puder. O personagem, em seu grande amor ou ódio, vai empurrá-lo até o final da história. O entusiasmo e o prazer da necessidade dele [...] vai incendiar a paisagem e elevar a temperatura da sua máquina de escrever aos 40 graus."
É isso! Questão de febre! Vemos por aí, em todas as profissões, tanta gente morna, que chega a me fazer bater os dentes de frio. Talvez por isso tenhamos tantos maus médicos, tantos engenheiros derrubadores de prédios, tantos advogados que não ganham uma causa, tantos centroavantes pernas de pau, tantos pagodeiros clones do clone, tanta gente errada na profissão errada por simplesmente pensar em primeiro lugar na grana... Quanto a mim, sabedor das dificuldades e injustiças do mundo, não tenho mais a pretensão de ser incensado. A única coisa que posso garantir é que, humildemente, me sinto muito bem instalado nessa espécie de hospício dedicada aos incendiários da arte. E tomo diariamente os remédios necessários pra febre não baixar.
Indo um pouco mais longe, nas artes plásticas os traços cubistas de Pablo Picasso são característicos, com suas formas geométricas; o colombiano Fernando Botero é inconfundível em suas obras que retratam figuras rechonchudas; o espanhol Joan Miró pintava como se quisesse assassinar a pintura; sem falar em outro espanhol, o arquiteto catalão Antoni Gaudí, que deixou suas marcas inspiradas na natureza por vários pontos de Barcelona. Nós temos, na arquitetura, nosso Oscar Niemeyer, tão polêmico quanto genial. Sempre digo que artista é todo aquele que faz o que todo mundo tenta fazer, mas com assinatura própria. Você pode notar isso até comendo pães de padarias diferentes: numa, o pão é uma droga; noutra, é divino. Mesmo quem não é um perito nos assuntos acima citados pode perceber tais detalhes sem maiores dificuldades.
Mas voltemos à literatura. O tal exercício de estilo ao qual me referi pode tanto virar realmente um estilo como, na maioria dos casos, resultar mesmo em apenas um... exercício. Sim, porque nem todos temos talento à altura da capacidade de formular invencionices. Saramago, por exemplo, após debutar na literatura sem grande repercussão, teve a ideia de suprimir todos os sinais de pontuação que não o ponto e a vírgula. Segundo ele, assim a palavra escrita se aproximaria mais da fala e se tornaria, pois, viva. E obteve tanto êxito, que, além de conseguir associar a si tal método, ainda tem sido copiado por muitos. Afinal, depois que alguém foi na frente abrindo caminho, fica fácil seguir suas pegadas.
Eu mesmo, em meu primeiro esboço de romance, lá se vão quase 20 anos, ouvi de um ou outro leitor amigo que eu estava muito "na cola" de Saramago. Mas isso é normal quando damos os primeiros passos numa arte. Na letra de música, já imitei muito Chico Buarque também até me desvendar. A originalidade não é um artigo que se escolhe. Não é como ir a um supermercado e optar entre uma ou outra marca de um mesmo produto. É mais a capacidade de ser natural, por mais absurda que sua literatura possa parecer. Há quem encontre, por exemplo, ecos kafkianos em livros anteriores a Kafka. Só que ele foi o camarada que chegou mais longe em suas bizarrices, talvez por ter entendido como poucos o surrealismo de certos comportamentos e atitudes do convívio em sociedade.
Tanto, que hoje, quando nos deparamos com algumas situações do cotidiano pras quais não encontramos explicação plausível, tascamos um "isso é kafkiano". Esse olhar sobre seu entorno também foi fartamente explorado por nosso Guimarães Rosa, que, por tamanha capacidade de observação, acabou por inventar um "sertanejo" bem peculiar. Na verdade, a invenção nada mais é que uma adaptação de tudo o que já existe. As palavras que Rosa "inventou", ele não as criou do nada. O mesmo podemos dizer do moçambicano Mia Couto, a quem muitos criticam como cópia de Guimarães. Discordo. Quanto mais o tempo avança, mais fica difícil não ter sua obra comparada a terceiros, visto que somos também um pouco do que lemos.
Voltando à música, quando Chico Buarque apareceu o compararam a Noel Rosa; Tom Jobim bebeu às fartas de Villa-Lobos; Cazuza ecoava Cartola (até no nome: Angenor este, Agenor aquele); Arnaldo Antunes sempre bebeu da poesia concreta em suas letras; e por aí vamos. O mais importante é aprendermos a trilhar nosso próprio caminho. Ainda falando de música, deparamo-nos constantemente com músicos de bar que executam clássicos da MPB imitando até os trejeitos de quem gravou a canção originalmente. Superarmos uma influência é um parto. Começa por negá-la, passa pelo afastamento até chegar à reconciliação, mas isso depois que já não precisamos mais desse ídolo-pai a nos levar pro mundo (cão) pela mão.
Gosto muito do livro O zen e a arte da escrita, de Ray Bradbury, escritor estadunidense que tem uma vasta (e elogiada) obra no campo da ficção científica, com destaques pra Fahrenheit 451 (adaptado maravilhosamente pro cinema por François Truffaut) e As crônicas marcianas. Separei dele uns trechos pra me auxiliar nesta prosa: "Se você está escrevendo sem entusiasmo, sem prazer, sem amor, sem alegria, você é apenas meio autor. Significa que está tão preocupado em manter um olho no mercado, ou um ouvido no círculo de escritores de vanguarda, que não está sendo você mesmo. Talvez nem ao menos se conheça. [...] Sem esse vigor, seria melhor colher pêssegos ou cavar buracos." Ele escreveu isso em 1973, mas soa tão atual! Hoje, vemos tantos atravessadores causando engarrafamentos na estreita estrada das artes...
Às vezes, é só questão de "simancol". Quando comecei a escrever meu romance Filho da preta!, o narrador estava na terceira pessoa. Cheguei a encher cerca de dez páginas; parei pra ler e estava sofrível! Mas eu sabia que a história era boa, então resolvi recomeçá-la, mas em primeira pessoa. No meio da página inicial, já comecei a perceber a diferença. Agora, o cara que eu imaginava estava vivo de verdade! Sobre isso, Bradbury escreveu o seguinte: "Encontre um personagem, como você, que vai querer ou não algo com todo o coração. Mande-o correr. Atire-o pra fora. Depois o siga o mais rápido que puder. O personagem, em seu grande amor ou ódio, vai empurrá-lo até o final da história. O entusiasmo e o prazer da necessidade dele [...] vai incendiar a paisagem e elevar a temperatura da sua máquina de escrever aos 40 graus."
É isso! Questão de febre! Vemos por aí, em todas as profissões, tanta gente morna, que chega a me fazer bater os dentes de frio. Talvez por isso tenhamos tantos maus médicos, tantos engenheiros derrubadores de prédios, tantos advogados que não ganham uma causa, tantos centroavantes pernas de pau, tantos pagodeiros clones do clone, tanta gente errada na profissão errada por simplesmente pensar em primeiro lugar na grana... Quanto a mim, sabedor das dificuldades e injustiças do mundo, não tenho mais a pretensão de ser incensado. A única coisa que posso garantir é que, humildemente, me sinto muito bem instalado nessa espécie de hospício dedicada aos incendiários da arte. E tomo diariamente os remédios necessários pra febre não baixar.
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Muito bom!
ResponderExcluirSer autêntico é bem difícil, mesmo!
Mas, pretensiosamente, eu diria que é uma mistura de autoconhecimento, aceitação e uma boa dose de liberdade. Deixar-se guiar um pouco pela fogo da intuição. O capricho, a estética e as intenções servem pra dar corpo, mas é bom que seja um corpo bem febril. Rsrs..
Adorei Leozíssimo!
Muito fogo e paixão pra vc!
Bjbj
Oi, Vanessinha.
ExcluirGrato pela visita e pelas belas palavras. Boa trinca essa: autoconhecimento, aceitação e liberdade. Misturando tudo isso à intuição, dificilmente não resulta em coisa boa.
Ardamos, pois, e que o fogo nunca se apague!
Beijos,
Léo.
Hola estimado Léo.
ResponderExcluirMe encantó tu artículo.
En el Diseño sucede lo mismo. La invención solo es cosa de tomar lo que ya existe y transformarlo en menor o mayor medida. Quienes hacen una mayor transformación, logran un cambio en la percepción, al punto de parecer el surgir de algo jamás visto: (dizque) "creación".
Y aún más hoy en día, en un mundo tan globalizado, la percepción de esa "creación" se va a los extremos: o bien se dice que es "copia" de algo que se "creó" al otro lado del mundo, o bien se dice que es "nuevo" cuando en realidad se han tomado muchas pero muchas referencias de varias partes del mundo.
En fin. Estoy muy de acuerdo contigo.
Muchas gracias por compartir estos pensamientos tuyos.
Abrazos,
Javier.
Hola, Javier! Qué tal?
ExcluirCuánto hace que no nos hablamos! Gracias por tu visita y tu comentario. Coincido contigo (que coincides conmigo. jaja), por eso creo en el deseo verdadero de querer hacer (crear) algo basado en la verdad interior. Todo lo que hacemos sin pasión dificilmente suele resultar en algo más grande.
Abrazos,
Léo.