domingo, 2 de fevereiro de 2014

Grafite na Agulha: 18) Lucia Helena Corrêa... febril

Neste primeiro domingo em que o sol nos desperta sem a presença de Lucia Helena Corrêa entre nós (pra ser honesto, espero que esteja chovendo – escrevo na sexta à noite), havia pensado em não abrir as portas do estabelecimento Grafite na Agulha por luto. Só que, sexta passada, enquanto lavava a louça da janta, a nêga (sim, com acento, dá licença, ô desacordo ortográfico!) me sussurrou ao ouvido: "Faça isso, não, Leozinho [era assim que ela me chamava], o show tem que continuar! Faça isso, não!" Na verdade, não foram exatamente essas as palavras que eu ouvi, mas elas queriam dizer exatamente isso. As palavras que eu ouvi foram vários versos belíssimos cantados por ela. Sim, estou me referindo a seu disco, Febril. Lavando a louça e ouvindo-o, vez em quando deixando cair uma lágrima sobre os pratos, decidi que, sim, haveria o Grafite!


Só que precisava ser um Grafite especial. Afinal, eu não podia ser egoísta e guardar só pra mim as emoções dessa audição solitária (claro, acompanhavam-me o detergente, uns pratos, copos, talheres...). Não! Estava decidido! Foi então que resolvi que no Grafite de hoje traria um disco dos "nossos". Aliás, da nossa! Nossa LHC! A intérprete que, com o maior carinho, se esmerou pra dar um tratamento digno às canções de tantos compositores praticamente órfãos de intérpretes. Lucia foi uma mãezona pros compositores do Caiubi. Sabia afagar, incentivar, aplaudir e, quando necessário, passar uns pitos também. Afinal, se Erasmo já cantava "dizem que a mulher é o sexo frágil/ mais que mentira absurda/ eu que faço parte da rotina de uma delas/ sei que a força está com elas", eu, que faço parte da rotina de uma taurina, sei que Lucia, essa outra taurina, de frágil não tinha nada!

A gravação de seu disco, então, foi uma verdadeira odisseia. Chutando alto, desde a escolha de seu repertório até sua chegada da fábrica, se não se passaram uns dez anos, foi quase. Houve momentos em que chegamos a pensar que o bendito CD não sairia, pois, a cada nova recaída de Lucia, temíamos que pudesse ser a última. Que nada! Ela aguentou firme. Tinha uma missão, e, após enfrentar tantas tempestades, não seria qualquer chuvinha que a iria impedir de entrar em campo, mesmo que em campo alagado. Nas madrugadas em que as dores não a deixavam dormir, fazia delas poesia, que era também sua forma de zombar da dor, e bola pra frente! Quando vejo esses homenzarrões por aí caindo de cama por qualquer gripinha, fico pensando: imagina se eles estivessem passando pelo mesmo que passou Lucia...

E finalmente o CD saiu. O resultado de um hercúleo trabalho. E olha que, se não lhe cortassem as asinhas, perigava ela gravar um CD duplo, pois não queria deixar de fora nenhuma das canções que amava cantar. Tanto é verdade, que, com muito custo, os músicos a convenceram se conformar "apenas" com 19! E, por falar em músicos, é preciso dar a eles a devida importância na confecção desse trabalho. Afinal, não fosse a atmosfera praticamente familiar que se criou nessa relação músicos-cantora, estou seguro de que ela não veria seu rebento vir ao mundo. São eles: Bráu MendonçaTato Fischer, Ayrton Mugnaini Jr., Bebê do Góes, Bruno Sotil, além de outros tantos que participaram em uma ou outra faixa. E, aos 44 do segundo tempo, foi fundamental o trabalho de Tony Pelosi, que virou uma espécie de Felipão e tomou pra si as rédeas, sendo responsável pela mixagem e pela masterização.

Enfim, foi o tipo de trabalho em que cada peça que formou o coletivo foi de vital importância. Não vou citar todos aqui pra não aborrecer o leitor (pra quem quiser saber mais, o disco pode ser adquirido, está por aí), mas é importante frisar que se trata de um trabalho que tem aquele espírito de mutirão. Mas eu ainda não falei sobre o mais importante: a qualidade do disco. Não fosse ela, não haveria motivos pra eu estar aqui agora escrevendo a seu respeito. Choraríamos Lucia, lembrar-nos-íamos de tantos bons momentos que passamos juntos, sentiríamos saudades, e pronto, tudo ficaria guardado a sete chaves no coração de cada um de nós que tivemos o privilégio de conhecê-la. Mas não, o danado do Febril não é um desses disquinhos que alguma vovó grava de forma amadora pra dar de Natal aos netos, não senhor. Febril é o bicho!

O amor transborda por todas as faixas dele. O cuidado, o carinho, a qualidade, a entrega total de Lucia, cantando cada canção como se fosse a última (ou como se fosse a única). Tudo em Febril é Lucia Helena Corrêa, exagerado, rasgado, mordaz, intenso... tudo em Febril é... é... febril! E o título é tão acertado, que temos de entender mesmo até seus excessos (como o número de faixas), afinal, não se pede a alguém que está ardendo que seja comedido. E Lucia (mesmo quando sua temperatura estava normal), ao pisar num palco, simplesmente não conseguia cantar sem arder. E sem incendiar. Ok, mas aí sempre virá um insensível dum cabeça de bagre querer pôr em xeque a capacidade do cronista de discernir entre o que é bom e o que não é. Tá bom, Tomé! Eu lhe mostrarei que não estou pregando só. Leia com atenção: 

"[...] Febril é o estado de ser do exaltado, cheio de paixão, entusiasmo. [...] A voz dessa mulher se apossa do verbo e dos acordes e os escraviza com doçura do ser apaixonado e firmeza de quem sabe que a vida se constrói no equilíbrio entre os gestos que acalmam e os que provocam. Dizer que a voz vem do fundo do peito ou da alma é pouco. Vem da barriga da história. [...] Como sabe quem a viu em palco, quando a luz brilha nos dentes de Lucia Helena Corrêa, estala no sorriso dela, expandem-se as fronteiras da beleza. Se o poder de seu olhar faz transparente quem o recebe, a intensidade – a alegria, o entusiasmo, a angústia, a determinação, o desânimo, a retomada e toda sinonímia e antonímia que nos tentam descrever por dentro – da voz aponta tanto a rede morna quanto a cama de pregos onde se deitam todas as paixões. Uma voz do tamanho mesmo da vida."

As palavras acima são de Mauro Dias. Depois disso, eu não preciso falar mais nada, né não? Pra finalizar, basta dizer apenas que o Febril foi lançado em outubro do ano passado na Sala dos Espelhos do Memorial da América Latina (este mesmo que sofreu um incêndio há pouco tempo. Seria premonição?), com casa cheia e muita emoção. Ela ainda teria forças pra fazer um segundo lançamento, dessa vez no Rio, no Centro Cultural Cartola. Detalhe: um show beneficente. A renda foi revertida a uma associação de amparo a crianças carentes. Esta foi... aliás, esta é nossa querida LHC. Que ainda estava no pique. Vinha dizendo que seu próximo disco seria de blues. Vejam vocês que disposição! Este de blues ela vai gravar no azul, no andar de cima, mas por aqui sua voz, que, entre outras coisas, gritava contra o preconceito e as injustiças, não se calará. Pelo menos enquanto tivermos sangue correndo nas veias e a capacidade de arder em febre.


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PS. Lucia também colaborou com o Grafite. Leia aqui.


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Lucia Helena Corrêa – Febril (2012 – independente)

1. Lua de Outono
    (Bráu Mendonça – Lucia Helena Corrêa)
2. Aparição
    (Marcio Policastro)
3. Meu Bem, Não Vou Parar no Analista
    (Tato Fischer)
4. Hora Errada
    (Élio Camalle)
5. Febril
    (Fernando Cavallieri Zé Edu Camargo)
6. TPM
    (Marcio Policastro – Lucia Helena Corrêa)
7. Cisco no Olho
    (Sonekka Ricardo Soares Lis Rodrigues)
8. Bosconeana
    (Álvaro Cueva)
9. Isso e Aquilo
    (Guilherme Rondon Iso Fischer)
10. Cebola Crua
    (Lucia Helena Corrêa)
11. Dostoievskiana
    (Marcio Policastro)
12. Mala sem Alça
    (Sonekka Léo Nogueira)
13. O Outro Eu
    (Daniel Pessoa)
14. Velha Imagem
    (Tato Fischer Gilvandro Filho)
15. Coração Operário
    (Vlado Lima)
16. Catarse
    (Pedro Moreno – Lucia Helena Corrêa)
17. Ressentimentos
    (Nando Távora)
18. Esse
    (Élio Camalle Léo Nogueira)
19. Tarja Preta
    (Valdir Dafonseca – Lucia Helena Corrêa)


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Nosso amigo Di Rosalem deu a Lucia flores em vida, subindo ao youtube todas as canções de seu disco, o que me possibilitou trazê-las pra cá e lhes oferecer sua audição na íntegra (valeu, Di!):


















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10 comentários:

  1. Respostas
    1. Valeu, Di! Agradeço também por seu trabalho.

      Abração,
      Léo.

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  2. Muito bem! O álbum Febril de Lúcia Helena Corrêa já mereceria atenção mesmo se não tivesse a qualidade musical que tem, pelo simples facto de destruir o limite de 14 faixas imposto pelas grandes gravadoras brasileiras e até adotado inercialmente por empresas e artistas independentes (pois é, o ser humano tem essa capacidade de inventar prisões de que não consegue escapar). Sim, LHC sempre deu o máximo de si, e não foi pouco.

    LHC foi também um exemplo de pessoa carioca no melhor sentido, encarnando o que o Rio tem de melhor - musicalidade, hospitalidade, positivismo - e sem nenhuma das características pelas quais muitos se lembram da Cidade Maravilhosa como impontualidade, inconsequência e "dá-se um jeitinho". E ninguém venha falar em bairrismo de paulistano, pois a própria LHC se orgulhava tanto de ser carioca como de ter iniciado e desenvolvido sua careira artística em Sampa, dizendo que era aqui que as coisas aconteciam. Quantas pessoas além dela batalharam pelas noites autorais do Caiubi no Rio? Enfim, LHC foi uma das pessoas que mais batalharam pelo Caiubi, entidade que, muito além de incluir pessoas cariocas briguentas como LHC e paulistanas idem como eu, abriga o gaúcho Rica Soares, o pernambucano Gilvandro Filho, o cearense Leo Nogueira - todas presentes neste disco.

    Pode-se preferir uma ou outra faixa, desgostar de ainda outra, mas, como bem resumiu Leo, Febril não é um disco para ser ignorado. E certamente tem alguma coisa para cada um: blues, samba, foxtrote, balada pop, canção de câmera, samba-choro, da emoção mais escancarada ao bom humor - afinal, "a dor que me envolve/esse tal de Freud não resolve".

    Ah! Para mim LHC disse, por volta de outubro ou novembro, que seu próximo disco seria somente de samba. Bem, por mim ela faria um de samba, um de blues e vários outros do quê quisesse... Mas ela deixou várias letras, poemas e parcerias inéditas - além de um exemplo de vida.

    LHC - que, não bastasse ser mulher, era negra e jornalista - é tão eterna quanto Clementina de Jesus!

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    1. Ayrton, tô aplaudindo daqui seu depoimento, que vem a enriquecer este espaço. Gratíssimo!

      Abraço,
      Léo.

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  3. Léo, bela e merecida homenagem,

    A Lúcia Helena me deu a alegria de gravar nesse CD três músicas minhas, uma em parceria com ela, TPM, em meio a tantas outras músicas lindas!
    Vamos sentir muita falta das suas batalhas, da sua risada inconfundível, da sua doçura e tantas outras qualidades dessa multimulher sigla.

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    1. Pois é, Poli, podemos dizer que LHC foi sua Elis. Uma pena a partida dela. Já estava pensando em quais novas canções mandaria pra ela...

      Abraço,
      Léo.

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  4. Belíssimo texto, Leo.
    Viva a vida dessa enorme artista

    Bjão

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