A propagação da cultura em nosso país, infelizmente, depende até hoje mais de iniciativas particulares que das públicas (manja aquele papo de "quem sabe faz a hora?...). Eu, que sempre fui morador de periferia, sei bem o quanto a ausência de focos culturais em meu bairro atrapalhou meu crescimento intelectual e o de meus chegados. Tudo o que aprendi foi com esforço próprio, nada me chegou de mão beijada. O que me salvou foi uma natural curiosidade. Contudo, apesar de todos os esforços, sinto-me um adulto inseguro, com a autoestima prejudicada pelas lacunas de minha educação. E percebo que isso se reflete ainda hoje nos jovens das periferias que tentam dar um passo a mais. As bibliotecas são poucas, os eventos musicais, raros, a carência existe inclusive em se tratando de espaços esportivos e de lazer. Claro, da época de minha adolescência pra cá, muita coisa melhorou, mas as melhorias caminham a passo de cágado.
Por essas e outras, quando me deparo com atitudes corajosas por parte da população, aplaudo com a satisfação de quem percebe que nem tudo está perdido. É o caso do Sarau da Maria. Mas comecemos do começo. Frequento há anos o Clube Caiubi de Compositores, outra iniciativa digna de aplausos, visto que, teimosamente, esses quixotescos caiubistas se mantêm firmes todas as segundas-feiras apresentando canções autorais há mais de 12 anos. Lá (esse "lá" varia de tempos em tempos; agora reside no Julinho Clube), ganhei muitos amigos e parceiros, e foi lá também que passei a exercitar minha "verve" poética, em parte graças ao Sopa de Letrinhas, sarau caiubista organizado pelo polivalente Vlado Lima.
E foi justamente Vlado, ex-morador da Vila Maria, quem incentivou seus antigos vizinhos a se organizarem em prol de um sarau que lançasse sementes poéticas pelo bairro. Segundo depoimento do próprio Vlado, a coisa toda começou mais ou menos assim: "Fui num show de um dos caras das antigas da Vila Maria, depois do show fomos pro Gibas tomar umas; lá, vendo o astral da galera, soltei pra Veronica a ideia de se fazer um sarau. Ela conversou com a turma, que achou interessante a ideia, fui dando uns direcionamentos, uns toques e umas ideias... Botamos o nome em votação e foi escolhido Sarau da Maria. Foram chamadas algumas pessoas pra diretoria, criamos o logo e bum... aconteceu..." Esse aconteceu rebentou no dia 23 de fevereiro de 2013. E, de lá pra cá, bimestralmente, esse grupo de amigos, nascidos e/ou criados na Vila Maria, nunca mais parou de se juntar pra "movimentar corações e mentes através da arte: música, poema, dança, pintura, performances..."
E assim, como sabemos das novidades sempre por último, quando nos demos conta (eu e Kana), vários amigos que já tinham ido ao bendito sarau começaram a nos falar maravilhas dele. Então, resolvemos ir conferir o novo foco in loco. É, chegar lá foi um rolê, porque estamos provisoriamente (um tanto permanentemente) "descarangados". Após uma hora e lá vai pedrada de percurso, chegamos ao endereço e nos deparamos com um boteco. Tomamos um susto (seria ali?), mas nos informaram que a parada ficava nos fundos. Quando entramos, era outro o ambiente. Deparamo-nos com um imenso espaço, casa cheia e um palco que, embora centralizado, não proporcionava visibilidade muito boa pra quem estivesse nas laterais. Recitei um poema, Kana cantou uma canção, tomamos todas e saímos de lá felizes da vida.
Depois, analisando mais friamente, percebi que, embora a atmosfera fosse das melhores e houvesse uma camaradagem que saltava aos olhos, havia alguns problemas conjunturais. O pior deles era o barulho. Como praticamente todos ali se conheciam e se misturavam público e artistas, era difícil apreciar o espetáculo em meio a tanto blá-blá-blá. Outro problema, que podia ser em parte responsável pelo anterior, era a luz excessiva na plateia e escassa no palco (aliás, a luz era a mesma nos dois ambientes, o que dava a sensação de excesso cá e escassez lá). Sempre fui crítico a instalações desse tipo, pois propiciam o bate-papo em detrimento do espetáculo. Contudo, admito que, mesmo com defeitos pontuais, é melhor que eles existam do que contarmos apenas com os tradicionais botecos de bairro, que oxigenam nosso cérebro com álcool, mas não com ideias.
Entretanto (e entrementes), minhas preces foram ouvidas. E foi meu camarada Vlado novamente (sempre ele!) quem me avisou que a galera do Sarau da Maria havia encontrado novo local pra seus encontros. O bairro seria o mesmo, mas a estrutura seria radicalmente alterada. E pra melhor. Justamente solucionando os problemas acima citados por mim, ou seja: 1) a iluminação, durante as apresentações, passaria a ser como se deve, tanto em relação ao palco quanto em relação à plateia; 2) solucionado o problema anterior, os bate-papos fatalmente tenderiam a diminuir, pois, com um palco bem-iluminado e a plateia no escuro, a natural propensão à conversa cede lugar ao interesse por acompanhar o espetáculo. Sem falar que (isso eu verificaria depois, ao vivo) lá haveria um fumódromo ao ar livre com bela vista pra uma piscina! Assim, quem quisesse conversar e/ou fumar teria um espaço bacana... e sem atrapalhar os demais.
Sim, pois o novo endereço se trata de um tradicional clube do bairro, que existe há quase um século, o Clube Vila Maria. E outra boa novidade seria um palco desmontável, utilizado só nos dias de apresentação, o que melhoraria consideravelmente a visão do público, como pude ver com meus próprios olhos numa noite em que Kana fez um show no local. Mas calma, expliquemos: o pessoal da organização, sabiamente, resolveu há alguns meses intercalar o sarau com shows. Ou seja, num mês, o tradicional sarau, no outro, dois procket-shows na mesma noite, mesclando artistas locais com convidados do Caiubi. E eu, quando soube da novidade, novamente por intermédio de Vlado, imediatamente lhe pedi que intercedesse por nós pra que conseguíssemos uma data ali.
Foi assim que, dia 14 de junho último, um precioso sábado, Kana, acompanhada, como (quase) sempre de sua banda (o Quarteto Saxofonando – Beatriz Pacheco, sax soprano; Danilo Rocha, sax alto; Herbert Lucas, sax tenor; e; Janderson Bernardo, sax barítono – mais Liw Ferreira, guitarra; Rogerio Clementino, baixo; e Vítor Coimbra, bateria) subiu ao palco do batizado Show da Maria pra realizar, em minha opinião, uma de suas mais iluminadas apresentações dos últimos anos, numa noite em que tudo deu certo e a empatia entre palco e plateia foi total. Em seguida, sem deixar cair a peteca, foi a vez do excelente Hélio Braz (também com sua banda) dizer, aliás, cantar a que vinha. Resumindo: noite inesquecível pra quem lá esteve. E ainda escapamos de ver a derrota do Japão na Copa pra Costa do Marfim. Baita lucro!
PS: Já era pra eu ter publicado este texto há algum tempo, mas achei melhor esperar passar o bonde do Felipinho e seus "apagados". Foi bom, porque a ocasião é ótima, visto que nesse sábado haverá mais um Sarau da Maria, e esta modesta publicação pode servir também como divulgação (maiores detalhes aqui). Não bastasse a qualidade do evento e a harmonia reinante no local, de quebra, os preços bacanérrimos dos comes e bebes são um motivo a mais pra sairmos de casa num sabadão frio de julho. Oxalá tenha vida longa o Sarau da Maria e, mais que isso, contagie com sua alegria tantos outros bairros carentes de cultura Brasil afora. Evoé!
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Kana |
Kana e banda |
Hélio Braz |
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Local: Clube Vila Maria – Bar das Piscinas
Endereço: Rua Professora Maria José Barone Fernandes, 483, Vila Maria, São Paulo-SP
Data: sábado, 26/7
Hora: a partir das 19h
Show de abertura: Quarteto Saxofonando (o mesmo que toca com Kana)
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