Um belo dia, minha mãe, preocupada com a violência das ruas, trancou o portão que até então vivia aberto e disse, "De hoje em diante, é daqui pra dentro!". Não podendo mais ganhar a rua, precisei usar a criatividade. Primeiro, foram os amigos imaginários; depois, a coleção de tampinhas de garrafa com rostos de personagens de Walt Disney – mais ou menos na mesma época em que surgiram em minha vida os gibis –; em seguida, apaixonei-me por livros infantis, seguidos dos infantojuvenis (pasmem!, agora é assim que se escreve); e, a partir de então, ainda que atabalhoadamente e sem critério, a leitura entrou em minha vida como se fosse uma bola de neve dentro da qual eu seria engolido e sairia ladeira abaixo, destruindo tudo o que fosse ignorância a meu redor. Acabei, na falta da chave que me abriria o portão, inventando portões outros.
Mas admito que a leitura pra mim nunca representou vaidade; sempre foi mais prazer que busca por conhecimento (isso viria anos depois – mais sem vaidade... na maioria das vezes). Quando, por exemplo, descobri Dostoiévski e me deixei levar por sua densidade abissal, sentia uma satisfação genuína (quase sexual) em virar a página e me deparar com o que aconteceria em seguida (como quando, em Crime e Castigo, o jovem Raskólnikov entra numas de matar uma velhinha). Da mesma forma, ainda pré-adolescente, quando minha mãe me enfiou uma Bíblia goela abaixo, descobri um inenarrável regozijo naquela leitura que pra mim não tinha absolutamente nada que ver com crença, Deus, religião e outras ideias preconcebidas (sim, agora se escreve assim)...
Não, aquilo pra mim era o mais maravilhoso compêndio de literatura de aventura com que eu jamais até então me deparara. Era como se eu tivesse adquirido toda uma coleção de livros de capa e espada; lia com gula as páginas mais folhetinescas e pulava as mais desinteressantes, sempre procurando um novo herói, Adão, Davi, José, Sansão, Moisés! Cara, a descoberta de Moisés foi algo que me mudaria a vida pra sempre! Encantou-me aquela história do sujeito que, ainda bebê, e abandonado pelos pais, fora salvo das águas do Rio Nilo (aliás, seu nome significa justamente isso, tirado das águas), tornou-se um príncipe do Egito e, anos depois, ao descobrir sua verdadeira origem, acabou virando pra mim uma espécie de super-herói que livraria seu povo, o hebreu, do serviço escravo sob as garras do faraó, com as mais vermelhas tintas de vingança. Foda!
Rapá, que história! De tirar o fôlego! Pra um moleque impúbere, aquele tipo de leitura era adrenalina nas veias numa época em que o remelento mucoso ainda não havia descoberto os prazeres do cinema de ação e não tinha visto ainda, por exemplo, Guerra nas Estrelas, Os Caçadores da Arca Perdida, De Volta para o Futuro... Aliás, mesmo depois, Moisés sobreviveria. Isso quando já com pelo no rosto assisti (acho que em videocassete) ao filme Os Dez Mandamentos, uma deslumbrante saga (de 1956!) de quase quatro horas de duração, sob a direção do cineasta americano Cecil B. DeMille, que transformou o ator Charlton Heston na mais perfeita tradução de Moisés que já vi na vida. Imagine você o talento do fulano pra fazer, em 1956, tudo ficar verossímil, décadas antes de George Lucas e sua Industrial Light & Magic.
Agora, deixemos os primórdios de lado e tratemos da fase adulta. E eis que o remelento mucoso cresceu, virou compositor, e a vida seguiu. Um dia, tendo sempre em mente a antológica cena da abertura do Mar Vermelho, pensou em descobrir qual de seus parceiros seria o Moisés da vez que abriria o novo Mar Vermelho pra galera de sua geração musical. Aí, começou nova saga. Na condição de letrista, conheceu muitos parceiros, mas percebeu que todos estavam mais preocupados com a própria carreira do que com o bem coletivo (aqui não vai julgamento, é apenas constatação). Assim, muito provável Moisés foi sendo descartado. Quer dizer, não a amizade, nem a parceria, mas apenas a expectativa de que seria aquele a levar os neo-hebreus à travessia.
Muito próximo de meu parceiro Élio Camalle, passei anos achando que seria ele o Moisés. Ele, por sua vez, durante um tempo me confessou que achou que o Moisés era eu. Nem um nem outro, éramos apenas dois hebreus ébrios à espera de um messias que nos trouxesse as tábuas da salvação. Muitos vieram, muitos se foram, e chegamos mesmo a inventar uma brincadeira pela qual, divertindo-nos, dizíamos "quem é é, quem não é não é", frase na qual sigo acreditando. Pensemos: se o cara não é, mesmo Deus abrindo o Mar Vermelho, fulano não conseguirá levar seu povo a atravessá-lo. Quando muito, chegará até a metade, mas o certo é que, de repente, o mar se fechará e a perda vai ser total.
Claro, essa é uma metáfora que uso pra falar de música. Quem não tem borogodó nem empatia com o público não chega longe nessa travessia. Pode até driblar uns faraós e uns egípcios mais desavisados, mas, na hora do vamo' ver, o mar sempre será maior. Mesmo que um Chico Buarque abençoe ou um Caetano Veloso ecoe. O que quero dizer com isso? Apenas que os novos hebreus estão à deriva, e cada um tem que meter um louco nas ideias e inventar seu próprio Moisés. Mas, além de Moisés, há os aimorés, os buscapés, os coronéis, os dez (mandamentos?), o és (e o não és), os fiéis, os das galés, os jacarés, o lava-pés, os manés, os orixás, os pangarés, os quiproquós, os (que moram nos) rodapés, os (que vivem aos) sopés (das montanhas), os da parte de trás, os ués, os que vêm meio assim de viés, os xás e os zés.
... e eu, que, apesar de ser só mais um zé, tenho claro que em meu caso, particularmente falando, boto uma fé tremenda no mano Zeca Baleiro, que, se não for o mais gentil e esforçado de meus bróders, certamente é um dos mais. O problema é que ele ele já anda cansado de abrir um Mar Vermelho por dia pra hebreu a dar com pau (e pra muito fariseu disfarçado). Portanto, não serei eu quem lhe irá pedir mais uma façanha. Ainda mais sendo eu sabedor da história do Moisés original, que, após ter levado uma renca de hebreu mal-agradecido à Terra Prometida, recebeu, como prêmio de um deus déspota (o do Velho Testamento) o privilégio de vê-la de longe e morrer à beira, ou à margem. Não, quando muito, imagino o mano Zeca um barqueiro que, mais humilde, tenta, em vez de abrir o mar, atravessar um hebreu por vez.
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PS1: Outra vez, escolhi a palavra.
PS2: Trilha sonora: Pe. Zezinho, Moisés (Pe. Zezinho)
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Se o Mar Vermelho não abrir a gente aprende a nadar, e se não tiver fôlego pra chegar, que pelo menos valha pelas ondas que a gente tira.
ResponderExcluirValeu a homenagem ao Padre Zezinho, tb!
Adorei o texto.
Sucesso pra vc!
bjbj
Valeu, Curcíssima! É isso aí, sigamos, tirando onda até dos mares que não estão pra peixe. rs
ExcluirBeijos,
Léo.
E não é que o verso dos discípulos de Moisés na lida deu texto?
ResponderExcluirE dá-lhe nosso ídolo Zezinho (meu, seu, do Zeca, Do Kleber, do Augusto, ...)!!!
Muito bom, e esse texto dá mais dez letras!
abraço
Dodolar
Né não, Dodô? Tava, inclusive, pensando em terminar a canção nova pra aproveitar como trilha sonora deste texto, mas a ansiedade venceu...
ExcluirAbração,
Beleléo.
Leozito, quando você enveredou para um "Moisés" da música, já imaginei que esse personagem seria o Zeca! Ri sozinha aqui no trabalho, delicinha de texto hehehhe
ResponderExcluirÔ, Deisoca...
ExcluirSó hoje, mais de dois anos depois, deparei-me — por acaso — com seu comentário. Antes tarde do que mais tarde, né? Obrigado pela leitura e pelo comentário. Tenho sentido falta de ambos recentemente.
Beijos,
レオ。