segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Os Manos e as Minas: 22) Dias de Mauro

Outra vez, minha lerdeza me impede de dar flores em vida a um camarada que, mais que ninguém, as merecia. Acabo de saber, pelas redes sociais, que o crítico musical Mauro Dias se cansou de tanto lixo travestido de música e decidiu se mudar de vez prum condomínio onde moram Tom, Vinicius, Elis, Cartola, Noel e mais um punhado de gente que, se viva estivesse, também se sentiria um tanto deslocada nesse cenário musical pós-apocalíptico que é o que se tornou a música brasileira que se ouve por aí. Aliás, Mauro foi dos primeiros que foram vitimados por ela. Crítico do Estadão de longa data, acabou sendo "saído" de lá porque as pessoas sobre as quais escrevia já não interessavam mais a uma imprensa que se preparava então pra dar no que deu hoje.

Chega a ser simbólica a partida de Mauro num momento em que, por exemplo, um jornal como a Folha de S.Paulo, que já teve grandes nomes entre seus colunistas, atolada na lama até o pescoço e em desespero de causa passa a contratar figurinhas sem história nem passado e que só sobrevivem de bater na mesma tecla, como são alguns de kintakatiguria, cujo nome não cito pra não dar azar (e pra não conspurcar este espaço que é pobre, mas que mantenho limpinho). É, Daisy, você vinha me apressando pra escrever sobre ele, que tanto escreveu sobre os nossos, e eu fui adiando, adiando, como se, ao adiar, adiasse também o xeque-mate desse jogo com essa figura de quem ainda não vi ninguém ganhar... Sinto muito.

Foi Mauro, inclusive, quem, indiretamente, me motivou a ter meu próprio blogue. Lembro que, quando ele resolveu virar blogueiro e começar a escrever num espaço seu (este), resolvi dar ouvidos a amigos que vinham de havia muito insistindo pra que eu investisse num bloguinho e me animei a seguir os passos dele, mesmo sem possuir sua competência e seu conhecimento. E acabou que Mauro, desmotivado, após pouco tempo e não mais que meia dúzia de belos textos, cansou-se da brincadeira e deixou o resto por contar, ao passo que eu, teimoso que só, tô por aqui até hoje, escrevendo mais por hedonismo que por exigência da meia dúzia de leitores que tenho. Mas acho que o melhor a fazer agora é resgatar um pouco de suas palavras, quando tratou bem, e bonito, sobre artistas que me são próximos e caros.

Kléber Albuquerque deve muito do prestígio de que hoje goza a Mauro, que creio que foi quem primeiro lançou luzes sobre sua obra. Já nos idos de 1997, escreveu ele: "Pela raridade, maior é a satisfação de anunciar compositor novo na praça. [...] Contrariando a ética cínica do deboche e do quanto pior, melhor, Kléber Albuquerque põe a cara a tapas para falar sério sobre seu tempo, sua geração e as questões de um e outra. [...] Kléber Albuquerque é um compositor de linguagem própria. Não está em elaboração. Está pronto [...] vem ocupar um posto ao lado e no mesmo nível dos poucos renovadores (não reformadores: renovadores, novos autores compondo com qualidade, fora das modas, das correntes, das autonomeadas vanguardas, dos esquisitos, dos internacionaloides) da música popular brasileira [...] Vamos ouvir falar muito ainda de Kléber Albuquerque. Você leu primeiro aqui." (fonte: esta)

Um ano depois, escreveu sobre Daisy Cordeiro, no encarte do primeiro CD desta, Paladar: "Valores absolutos definem uma cantora. Afinação, respiração e emissão precisas, timbre bonito. Outros valores são menos absolutos; o bom gosto na escolha do repertório, a qualidade da interpretação, a versatilidade [...] Mais abstratos ainda, e não menos necessários, são outros ingredientes. A alegria com que abraça o ofício, a graça com que aborda cada melodia, a justa valorização de cada palavra e do sentido integral da poesia. Quando a cantora soma todas essas qualidades e acrescenta outras, seus traços de distinção, temos não mais uma boa cantora, mas uma grande cantora. Daisy Cordeiro é uma grande cantora. [...] A grande cantora e seu grande disco são luz, aqui, no nosso escuro."

Sobre Élio Camalle, pro encarte de um de seus CDs, Mauro escreveu, em maio de 2006: "Chama-se Bicho Preto este quarto trabalho, e é obra de maturidade de um dos maiores talentos da música brasileira contemporânea. [...] um bicho de palco, esse bicho preto, que toca um violão cheio de síncopes inimitáveis, canta sempre recriando a criação reinventora, morre e goza a cada nota, a cada palavra, a cada pausa. [...] É assim que o poeta dá a volta e avisa que a vida segue. Bicho Preto é um disco vibrante, irrequieto, instigador, um trabalho para ser sorvido aos poucos – como tudo que excita o paladar estético, mostra seu gosto devagar, um tantinho de cada vez. Como a vida, passo a passo."

Ele tinha essa generosidade de escrever em encartes de discos de artistas que admirava. No mesmo ano, escreveu no de outro parceiro meu: "Adolar Marin não veio pedir bênção, não veio pedir aval, não veio pedir licença. Adolar Marin, como a anti-heroína de Manuel Bandeira, não precisa pedir nada. Chega, com seu segundo disco, Atemporal, abençoado, avalizado, licenciado pela magnificência da poesia, a beleza elevadora da melodia, a inteligência harmônica, o carinhoso caráter incisivo do canto." No mesmo texto, sobrou até pra mim: "[...] Léo Nogueira, um poeta que honra a tradição dos grandes letristas da canção brasileira." E arremata, profético: "Daqui, do canto das minhas dores, peço eu licença, Adolar Marin, para participar da viagem."

Sobre Sonekka, em 2009, escreveu o seguinte: "O apelido disfarça uma das inteligências mais argutas da nova geração de compositores paulistas. Sonekka é um roqueiro – um pé no pop, outro na mpb, um olho na tradição da cidade, outro no humor corrosivo de Sérgio Sampaio ou de Raul Seixas, uma força que se manifesta sem muito jogo de cena, faz-se pela palavra e pelo pique da canção." (fonte: esta) Importante também é acrescentar que Mauro foi um dos jurados que deram o primeiro lugar a um grande parceiro de Sonekka, Ricardo Soares, no último festival da Rede Globo, que teve como vencedora sua polêmica Tudo Bem, Meu Bem. Ou seja, Mauro via qualidade também fora do tradicionalismo da MPB. Mas, caramba, ia escrever sobre ele, e acabei trazendo o que ele escreveu sobre nós! Redimo-me, então, utilizando-me das belas palavras que o supracitado Sonekka postou agora há pouco em seu perfil do facebook:

"Toda vez que parte um compositor, eu digo que perdemos um pedaço da gente. Hoje, partiu Mauro Dias, e a música perde um pedaço significativo. Mauro não era só um crítico musical, mas um cara que literalmente lutava pelo espaço dos verdadeiros talentos que surgiam. Um cara capaz de publicar meia página sobre Tom Jobim, mas também dedicaria meia página a Celso ViáforaKléber Albuquerque e tantos outras feras que os outros críticos cumpriam o papel corporativo de ignorar (assim como ainda o fazem). Foi um amigo de análises musicais e noitadas. Para o jornalismo, tsc, deixa pra lá, faz duas décadas que não aparece um como ele ou Toninho Spessoto. Só aparece gente capacha do mainstream e das modernices que não se justificam nem param em pé como arte. Mauro Dias entrará pra história do esquecimento nacional, junto com tanta gente boa que teve que desistir. Por sorte, ele conseguiu revelar alguns a tempo de termos referências de um tempo em que ainda havia sonho a ser sonhado."

Azar do esquecimento nacional, Sonekka. Nós, os esquecidos, sempre nos lembraremos dele e de seu legado.


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