Quando estudava no então colegial, eu era um completo alienado. Mas não estava só; todos os meus amigos também me acompanhavam nessa alienação. Todos, menos um. Havia em minha classe um sujeito meio esquisito e um tanto arredio que foi o primeiro cara que pertenceu a meu círculo de amigos que lia jornal – era assinante da Folha de S.Paulo, ou seu pai, acho. Pra nós, era como se ele falasse russo. Toda a galera discutindo futebol, falando de mulher e balada, e lá vinha ele tratar de algum assunto que lera no jornal. Na época, eu achava que ele não tinha o que falar e por isso, pra ter algo e assim ser mais popular, repetia os temas das manchetes – ipsis litteris. Contudo, minha turma era bacana e o acolheu assim mesmo. Até porque, se alguém de fora nos olhasse de perto, acharia que éramos todos esquisitos.
Não lembro bem como nem por quê, alguns anos depois lá estava eu assinando também a Folha. Foi justamente quando, tardiamente, notei que precisava me politizar, ficar mais antenado ao que acontecia em meu país e no mundo. Porém, não foi um começo fácil. Tudo me parecia muito aborrecido (figurinha repetida, manja?), e eu acabava mesmo só lendo o caderno de esportes e o de cultura. Daí, um dia, meio que sem querer (querendo), algo me chamou a atenção pra uma coluna da página 2; tratava-se de uma crônica de Carlos Heitor Cony, e foi amor à primeira lida. Nesse dia, começou a brotar em mim o amor por crônicas e, consequentemente, por alguns cronistas (da mesma forma como, anos antes, descobrira, também tardiamente, Chico Buarque e a MPB).
Cony foi o primeiro, mas vieram outros, muitos outros. Alguns nem escreviam na Folha, eu os descobria fuçando; outros nem eram de minha época, mas, graças às facilidades da internet, estavam a um clique de distância, como Rubem Braga. O que valia pra mim era a brincadeira de desvendar o deslumbre de tantos textos bem-escritos e até mesmo poéticos, muitos dos quais tratavam de assuntos atemporais. Fui descobrindo as sutilezas da ironia que podia enganar algum leitor mais relapso, a poesia em forma de prosa, uma alta literatura que tinha como maior qualidade não se levar a sério. E foi esse amor pelas crônicas que me motivou a também escrever algumas – o que desaguaria anos depois neste blogue.
Assim, o próprio fato de estar eu hoje aqui, escrevendo, pode-se dizer que seja um efeito dominó de tudo isso. E, claro, a Folha teve seu – relevantíssimo – quinhão de importância pra que nascesse em mim este cronista menor. Sou-lhe, pois, muito grato. Só que, como dizia outro cronista – este, um grande –, Paulo Mendes Campos, o amor acaba (leia a crônica homônima aqui). Sempre teimei em continuar lendo a Folha justamente pela qualidade de seus cronistas. Pero el tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos, e essa qualidade foi caindo. Fui notando clara guinada à direita, mas ainda insistia, até por ser apegado ao papel (mesmo o de jornal). Até que um dia entreguei os pontos e passei a acompanhá-la, um tanto desatento, admito, apenas pela internet.
No entanto, vocês sabem, paixão antiga deixa sempre sequelas, por isso até hoje ainda tenho o hábito de dar uma passada pelo site do jornal, acompanhar a coluna deste ou daquele, mas apenas como quem observa uma linda ex-namorada passar pela rua e repara que virou uma baranga (desculpem o machismo, foi só uma comparação – aliás, também embaranguei). Levei o namoro longe, já sem tesão, mas a saída de Xico Sá quase ao mesmo tempo em que Reinaldo Aze.... aaagh! Desculpem, não gosto de citar esse nome pra não dar azar... Bem, digamos que a saída de Xico e a entrada de "você sabe quem" foram a pá de cal – em tempos de crise é que se nota o (des)respeito que uma empresa tem por seus clientes. Hoje, por exemplo, é comum faculdades despedirem seus doutores e contratarem bacharéis recém-formados...
De repente, uma série de profissionais do mais alto nível foi indo pro olho da rua e a tal pluralidade folhística foi se enchendo de singularidade. E, quando esses casos acontecem, quando um jornal perde a digital de um profissional com personalidade, passa a falar mais alto a voz do dono, como foi o caso desse triste 3 de abril, também conhecido como ontem, quando a Falha, em clara atitude golpista, teve a coragem (ou terá sido o desespero?) de publicar na primeira página(!) um editorial intitulado Nem Dilma nem Temer (leia aqui, se tiver estômago), no qual vem a público pedir a cabeça da presidente Dilma... e, como o título entrega, de seu vice. E, como se não bastasse, sugere um novo pleito, que beneficiaria aquele partido que você já sabe qual é.
O editorial tem momentos que são verdadeiras pérolas, como este em que diz que "esta Folha continuará empenhando-se em publicar um resumo equilibrado dos fatos e um espectro plural de opiniões, mas passa a se incluir entre os que preferem a renúncia à deposição constitucional". Em outro momento, declara que, "dada a gravidade excepcional desta crise, seria uma bênção que o poder retornasse logo ao povo a fim de que ele investisse alguém da legitimidade requerida para promover reformas estruturais e tirar o país da estagnação", como se não tivesse sido o povo quem acabou de reeleger Dilma. E finaliza carimbando que "Dilma Rousseff deve renunciar já, para poupar o país do trauma do impeachment e superar tanto o impasse que o mantém atolado como a calamidade sem precedentes do atual governo". Note o "sem precedentes"; ou seja, antes o Brasil era cor de rosa. Sei...
A Folha, assim, se iguala a Veja, Globo & cosa nostra no abuso do poder. E ainda diz que continua plural! Só que a pluralidade de um jornal se reflete na igual pluralidade de seus leitores. E, nessa dicotomia em que nos encontramos, ao se posicionar do lado de lá, o agonizante jornal desmerece e afasta o que restava de leitores pró-democracia que ainda o liam. Daqui pra frente, sobrar-lhe-á apenas os batedores de panelas, o que é muito pouco, visto que quem não sabe ouvir tampouco deve saber ler. Triste fim de Polic... ops, de um jornal que já teve seus dias (e páginas) de glória. Só falta agora mostrar o caminho da rua também àquela meia dúzia de profissionais sem rabo preso que ainda estão por lá e, de repente, coerente com as "direitas já", contratar o desempregado Rodrigo Constantinho e abrir de vez a caça às bruxas. Pobre cadáver insepulto, entrou numa frias!
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