segunda-feira, 30 de julho de 2018

Esquerda, Volver: 21) Chico & Gil, 45 anos sem se calarem

Por Mauro Pimentel
Era uma vez um maio de 1973. Eu não tinha nem 2 anos, mas depois li, me informei, procurei saber. A ditadura (esta que hoje o sr. Bolsonaro apoia — e a serviço da qual está) andava firme e forte, com a petulância, a arrogância e a ignorância (no meio da ânsia do povo) trocando de papéis na rima pobre. Foi quando Gilberto Gil e Chico Buarque subiram ao palco pra apresentar a então novíssima Cálice, até hoje uma das poucas parcerias entre os dois. Eles sabiam que o mar não estava pra peixe. Aliás, os peixes viviam meio que se fazendo de espécies terrestres. O fato era que a canção composta por ambos, que trazia em si um desafiante trocadilho, passara despercebido pela censura.

Censura essa que impunha aos compositores em geral a humilhação de terem que submeter suas obras a censores na maioria das vezes ignorantes, o que justifica terem vacilado acerca do alto teor de insubordinação que a palavra-trocadilho "cálice" oferecia às massas. Sim, em bom português se podia entender "cale-se". Pense você, novo leitor, que adora MBL e quetais, que não viveu esses anos e acha que os nobres militares só davam uns choquinhos nuns malandros comedores de criancinhas ou, como disse o Bobão, arrancavam umas unhinhas. Pense, leitor: podia se uma unhinha de sua irmã, seu primo, seu pai... pra não dizer uma sua.

Assim, voltemos a 1973, quando aconteceu a Phono 73, um festival de música realizado no Centro de Convenções do Anhembi, em Sampa, promovido pela Phonogram, atual Universal, e que contou com a presença das estrelas de seu catálogo. Só que, no dia 11 de maio, mês do trabalho, quando Gil e Chico subiram ao palco pra apresentar sua então recém-composta Cálice, os fiscais dos milicos, ao verem a possibilidade de serem maciça e sonoramente ridicularizados em público, cortaram o som dos microfones dos moços, que continuaram cantando, e contando, e não se calaram.


Pulemos pra hoje, 2018. Quarenta e cinco anos depois. Novamente, não presenciei. Estou longe (embora perto de coração). Contudo, informado que sou, soube que pela primeira vez depois desses anos todos os agora bons velhinhos Chico & Gil subiram ao palco novamente juntos, e dessa vez ninguém silenciou seus microfones. Puderam cantar à vontade a já lendária canção. Entretanto, com o passar dos anos, os brucutus vão aprendendo a lidar com eles (conosco?). Desta vez, a arma não foi calá-los, mas fazer de conta que não cantaram. O "cale-se" da vez foi deixar que cantassem pr'uma multidão de gente sem que a grande imprensa se desse ao trabalho de estampá-los numa capa.

Sim, a bebida amarga hoje ganhou um pouquinho de doce; os filhos da outra são maioria (embora se achem filhos da santa); a força bruta trocou o pau de arara pela toga; mas ainda é difícil acordar calado quando nos danamos na calada da noite; um grito desumano ainda quer sair de nossas entranhas quando vemos que os até pouco tempo barulhentos paneleiros se calaram, partícipes do golpe; seguimos atordoados e permanecemos atentos, sabedores de que o monstro da lagoa emergiu quando "acordou o gigante"...

A porca torceu o rabo; a faca é de dois gumes; essa palavra presa na garganta, o pileque quixotesco deixa sair em tons... de cinza?; a boa vontade morreu junto com a cuca dos drogados do centro da cidade; o mundo, sim, ficou menor; a vida, uma fatura consumida; os pecados todos foram inventados; e morremos aos poucos, mas de venenos alheios; perder a cabeça está na (des)ordem do dia; o juízo?... ah, não me falem de juízo que me faz lembrar de juízes; cheiramos ainda fumaça de óleo diesel, mas fumo passivo, pois no-lo estão tomando; nos embriagamos, sim, e; sim, seremos (já estamos sendo, em vida) esquecidos.

Sobretudo pelos meios de comunicação, que, como não nos conseguem mais calar, ignoram-nos. Que é o pior tipo de silêncio. O siêncio que hoje atordoa. Que é outro, mas tão igual ao anterior... Eu entendo que nos temam e nos detestem, mas fingir que não existimos e que não estivemos ali nos Arcos da Lapa pode ser um tiro no pé tão grande quanto (ou mais que) aquele que foi quando ignoraram as Diretas Já. Porque uma hora o monstro da lagoa se volta contra o próprio rabo. E dessa vez não vai haver tropas estadunidenses esperando no litoral. Ou haverá? Não sei, o que sei é que Gilbertos e Franciscos sempre fizeram escola. E não adianta tirarem dela o partido. O partido do coração partido lá estará, exigindo uma ideologia.

Ah, e antes que eu me esqueça: #lulalivre!


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4 comentários:

  1. eSTAMOS DO LADO CERTO DA HISTÓRIA!

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    1. E podemos dormir com a consciência tranquila, né, Anja?

      Abraços,
      レオ。

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  2. Maravilha de texto, Léo.
    Fora do contexto, incomoda ver o Gil perdendo a voz - que há muito tempo isto vem acontecendo.
    Mesmo assim, a sua grandeza e a do Chico, junto a outros que cantaram antes e a grande massa que esteve na Lapa, tudo nos dá uma certeza que apesar de tentarem desdenhar, a coisa não passa em branco!
    Abração

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    1. Erico, com o tempo todos vamos perdendo algo de vitalidade. No caso do Gil, é a voz, mas em compensação não perdeu a mão. O novo disco dele tá ótimo! Procure saber! rs

      Abraços,
      レオ。

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