terça-feira, 24 de julho de 2018

Grafite na Agulha: 47) Gilberto Gil, o último a sair do avião

Ah, Gilberto Gil... Quanta coisa podemos falar sobre você... Seu violão baianamente orgástico... sua relação sancho-panciana com o lindamente quixotesco Caetano Veloso... sua prosopopeia... sua verborragia; mas sempre a favor da melodia... seu começo rechonchudo e seu final (final?) esquálido... enfim, super-homem é você, meu mano! Sua fase petralha partindo ao meio um ser meio assim ACM ("são dois no ringue: você e você")... Tantas contradições... Tantas tradições... Seu medo de morrer (logo você, que não morrerá nunca!)... Ah, Gilberto Gil, o rei da brincadeira, o rei da confusão... Aquele abraço!

Te devia estas palavras, assim mesmo, começando o parágrafo com pronome oblíquo. Afinal, mais oblíquo é você, sempre liso, sempre escorregadio, inclusive em suas verdades. Gilberto Gil, terá você capacidade pra compreender o quanto influenciou gilbertos-gis mundo afora? Roberto Carlos se engana quando diz que esse cara é ele. Esse cara é você, meu mano! Chico César recentemente djavaneou, então bem que podia num futuro recente gilberto-gilear (#ficaadica). Sabe, (gente) Gil?, eu acho muito bonito isso de se deixar ser segundo sabendo-se primeiro (diria Erasmo, orgulhoso fosse... "índigo blue...").

Gil, o fato é que te amo e amo seus discos em geral; assim, fiquei aqui um tempão pensando sobre qual deles escreveria... Daí me lembrei de antiga visita que recebi de Fernando Cavallieri, que, numa tarde regada a álcool & amor (mas sem sexo, acrescentemos), e pensando em minha esposa japa, "esqueceu" em minha casa um de seus (seus, Gil, não dele) discos "menores". Menores? Seria essa a palavra certa (pra autor não reclamar)? Terá você discos menores? Maiores eu sei que tem, e Quanta não me deixa mentir (em quantidade e qualidade). O que quero dizer é que você, Gil, mesmo quando mínimo, é o máximo! Não nos metamos com a meta do poeta.

Voltemos. Não, Cavallieri não "esqueceu" esse disco, digo, CD em minha casa. Ele deliberadamente mo presenteou. Quiçá porque nele havia uma canção chamada Do Japão: "Do Japão/ Quero uma máquina de filmar sonhos/ Pra registrar nas noites de verão/ Meu corpo astral leve, feliz, risonho/ Voando alto como um gavião/ Que filme dentro de minha cabeça/ Todo pensamento raro que eu mereça/ Toda ilusão a cores que apareça/ Toda beleza de sonhar em vão [...]" E continua "Do Japão/ Quero também um trem-bala-de-coco/ Pra atravessar túneis do dissabor (né, Gabo?)/ Quero um microcomputador barroco/ Que seja louco e desprograme a dor/ Visitar um templo zen-desbundista/ Conversar com um samurai futurista / Que me dê pistas sobre o sol nascente/ Que me oriente sobre o novo amor [...]"

Com aquela pegada (pré-)datada de fins da década de 1980, fosse outro o artista e teríamos aqui um disco com o prazo de validade vencido... mas estamos falando de Gilberto Gil, que atemporalmente (né, Adolar?) foi da bossa, foi do samba, foi do axé, do rock, do reggae etc... Sem falar que, exímio violonista (assim meio joão-gilberto[gil]), teve como primeiro instrumento a sanfona(!!!). Ah, Gil... puta que pariu! Você tão profético, já abria seu disco com um "Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá/ Sente-se que a coisa já não pode ficar como está/ Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar/ Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar/ A gente quer mu-dança [...]".

Claro, vez em quando o caldo da manifestação degringola, mas isso é assunto pra outros patos... Provocação maior fez você num samba-provocação cujo refrão diz que "Bob Marley morreu/ Porque além de negro era judeu/ Michael Jackson ainda resiste (não mais hoje)/ Porque além de branco ficou triste". Entretanto, minha preferida é a seguinte, em que você profere: "Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar/ Não vou mudar um mundo louco dando socos para o ar/ Não posso me esquecer que a pressa/ É a inimiga da perfeição/ Se eu ando o tempo todo a jato, ao menos/ Aprendi a ser o último a sair do avião/ Preciso me livrar do ofício de ter que ser sempre bom/ Bondade pode ser um vício, levar a lugar nenhum/ Não posso me esquecer que o açoite/ Também foi usado por Jesus/ Se eu ando o tempo todo aflito, ao menos/ Aprendi a dar meu grito e a carregar a minha cruz [...]"

Só esses versos já bastavam. Acho que ouvi essa canção um milhão de vezes. E mais: tenho procurado, na medida do possível, ser o último a sair dos aviões, dos ônibus, dos trens, dos elevadores etc. A gentileza da canção me tomou; mais, me arrebatou pra uma gentileza gratuita e ímpar. Mas depois vem Baticum, (de e) com Chico Buarque. "Tô lhe contando que é pra lhe dar água na boca." Aí voltamos pra Do Japão, seguida por Mon Tiers Monde, em que você envereda pelo francês, pra depois amarrar seu arado a uma estrela, em que propõe que cada um de nós seja "o lavrador louco dos astros/ o camponês solto nos céus". E, por falar em céu, a seguinte, Réquiem Pra Mãe Menininha do Gantois, é praticamente uma oração.

Por último, a tão pouco conhecida quanto linda Toda Saudade (não confundir com Tanta Saudade, de Djavan e Chico Buarque — ele de novo) serve pra terminar essa prosa com palavras melhores que as minhas. Espie: "Toda saudade é a presença/ Da ausência de alguém/ De algum lugar/ De algo enfim/ Súbito o não/ Toma forma de sim/ Como se a escuridão/ Se pusesse a luzir/ Da própria ausência de luz/ O clarão se produz/ O sol na solidão/ Toda saudade é um capuz/ Transparente/ Que veda/ E ao mesmo tempo/ Traz a visão/ Do que não se pode ver/ Porque se deixou pra trás/ Mas que se guardou no coração." Falou? Assim sinto a ausência de vocês, leitores, parentes e amigos (não exatamente nessa ordem).


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PS: Ah, esqueci uma propositalmente uma, só pra fechar com estes versos: "Ouça o que eu tenho a dizer/ Tome o que eu tenho pra dar/ Se não servir pra você/ Atire tudo no mar."


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O Eterno Deus Mu Dança (Warner Music — 1989)

Lado A
1. O Eterno Deus Mu Dança!
2. Mulher de Coronel
3. De Bob Dylan a Bob Marley — um Samba-Provocação
4. Cada Tempo em Seu Lugar
5. Baticum* — participação de Chico Buarque
Lado B
1. Do Japão
2. Mon Tiers Monde
3. Amarra o Teu Arado a uma Estrela
4. Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois
5. Toda Saudade
(Todas as canções acima são de Gilberto Gil, exceto *, de Gilberto Gil e Chico Buarque)


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Ouça o disco na íntegra aqui:



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PS2: Meu caro amigo Carlos D'Orazio me enviou recentemente um vídeo com nova canção sua, Gil, então, como fiquei tão feliz de te saber bem e nos presenteando com seu talento de sempre, e depois de ter passado por um momento de saúde delicado, resolvi amarrar o arado desta prosa a esta sua nova estrela:


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6 comentários:

  1. Oi Léo , oi Kana. Um texto cheio de carinho muito bem escrito você é massa.Abraço de Portugal.

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  2. Léo, que arraso de texto. Tudo que queria ler, após a citação de Você e Você, no outro texto. Passeou bonito por este cd que sumiu de minhas mãos, que era tão importante como os outros da coleção.
    Bonito demais! Você sempre se sobressaindo em sua percepção e "notas".
    Maravilha!
    Abração, mano!

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    1. Ô, Erico, queridão, sempre bom te ler por aqui. Valeu!

      Abraçaço,
      レオ。

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  3. Sensacional Leo e Gil...Texto de chorar de emoção...

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