É, os tempos estão duros! Soube há alguns dias que mais um querido amigo e parceiro resolveu abandonar o barco antes da hora. Quem foi fazer um som do lado de lá desta feita foi Sydney Valle, o eterno Palhinha, grande guitarrista, compositor e arranjador (arranjou recentemente, inclusive, o belo trabalho da cantora Iris Salvagnini, que contou com uma canção minha e de Kana — Cruzeiro — no repertório; ouça aqui) com quem tive o privilégio de compor umas poucas, mas belas, canções. Aliás, ele se foi sem me dar oportunidade de lhe pagar uma dívida. Explico: como soube que sou revisor de texto, deixou em minhas mãos um esboço de um livro inédito seu, que, segundo ele, seria uma espécie de romance autobiográfico a ser lançado em vários volumes. O material que me entregou seria referente ao primeiro. Como me mudei pro Japão pouco tempo depois e minha vida virou de ponta-cabeça, acabei adiando a leitura/revisão. Demorei demais...
Claro, não foi só a viagem o motivo; o certo é que Palhinha foi mais um entre tantos amigos que, nessa atual dicotomia política em que o Brasil se transformou, optou por se posicionar do lado contrário ao meu. Dizia-me ele que havia vivido muito e por causa disso adquirira certo cinismo, não acreditava mais em políticos; entretanto, tinha opiniões surpreendentemente mais raivosas com o pensamento de esquerda em geral e não poucas vezes invadia minhas postagens pra deixar algum comentário sarcástico e/ou ofensivo. Eu pacientemente lhe respondia que economizasse sua opinião, visto que eu não tinha o costume de devolver as visitas com o mesmo intuito.
Parei de lhe dar bola, e ele acabou desistindo de sua inútil empreita. O que me chateava era que ele não trazia algo construtivo de quem "viveu muito", mas simplesmente escrachava minhas opiniões e a de meus amigos. Sua atitude se assemelhava à de alguém que tivesse um poder aquisitivo que, eu sabia, não era o seu. Só que agora ele se foi e todas essas questões perderam a importância e o que passa a valer é a obra, e a de Palhinha é vasta e respeitável. Infelizmente, nossa parceria não vingou. Fui apresentado a ele por outro que pegou o boné mais cedo, o querido Marito Correa, com quem eu tinha uma parceria cheia de empatia. Parceria é assim, como relações amorosas: com umas pessoas rende e é duradoura, com outras não passa de, digamos, marolinha.
Entretanto, convidado por mim, Sydney foi supergentil e atencioso em sua contribuição com esta coluna. Primeiro, escreveu sobre The Hollies, banda que era uma espécie de rival dos Beatles (segue o link aqui); depois, acerca do disco sobre o qual vamos tratar, Você Ainda Não Ouviu Nada, de Sérgio Mendes & Bossa Rio. Esse texto também esteve "na geladeira" por alguns anos. Confesso que, depois de seu comportamento acima exposto, havia perdido o tesão de publicá-lo, pois apresentar seu autor a meu grupo de amigos era algo que me seria difícil, dado que ele havia batido de frente com alguns deles em seus comentários em minhas postagens. Agora, tudo isso é passado. Em meu coração, ficaram apenas a dor pela perda do amigo e a tristeza pelas oportunidades desperdiçadas.
Vá em paz, velho Palhinha! E, em meu nome, dê um abraço bem apertado em don Maritón e todos aqueles com quem seguramente você fará um som da pesada aí onde estiver. Saudações, amigo! Termino citando aquele velho clássico que dizia que "amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito" (pois é, também o coração é "de esquerda").
Você ainda não ouviu nada!
Por Sydney Valle
Foi assim: numa tarde de inverno do ano de 1972, meu amigo pianista Guilherme Vergueiro levou-me à casa do baterista Edison Machado. Machado (para os que não o conhecem) era então uma lenda viva da música instrumental brasileira, gênero que aos poucos, e cada vez mais, já naquela época perdia espaço no mercado fonográfico e no cenário cultural tupiniquim. Machado, gênio da raça, criador da levada de bossa nova na bateria, com direito a verbete nas páginas da Enciclopédia Britânica, recebeu-nos muito bem e convidou-nos para um café. Enquanto a água fervia, acendeu um baseado e pôs um disco para tocar. Não pude mais me ligar na conversa, minha atenção foi imediatamente tomada pela música contagiante que vinha do toca-discos. Machado, percebendo o que ocorria, passou-me a capa do LP, perguntando-me:
"Você conhece esse som?"
Respondi-lhe que não, que me era desconhecido e que aquela era minha primeira audição. Ele continuou:
"Gosto muito desse disco; nós o gravamos no Rio, em 1963, eu, o Sérgio Mendes, o Tião Neto de baixo, o Hector Costita no sax tenor e, nos trombones, aqueles dois malucos, o Edson Maciel e o Raul de Souza. Os arranjos, assim como algumas músicas do repertório, são de autoria de um grande amigo, o maestro Moacir Santos. Acho que você vai gostar."
Naquela época, só o nome de Sérgio soou-me conhecido, o que não veio ao caso, pois saquei de cara — e com apenas nove anos de atraso — que o disco era bom demais e os caras que ali estavam tocavam pra caralho! Machado passou-me sua capa com fotos dos músicos em preto e branco, onde li, "Sérgio Mendes & Bossa Rio". Numa faixa vermelha mais abaixo, vinha escrita a frase-título que me marcaria para sempre, "Você ainda não ouviu nada". Era verdade! A música do sexteto Bossa Rio era moderna, vibrante, maravilhosamente brasileira, e até hoje me arrepio ao ouvi-la. Se você ainda não conhece esse disco, ouça-o, pois, sem fazê-lo, você corre o risco de que eu também venha a lhe dizer: "Você ainda não ouviu nada!!!"
PS(1): Alguns meses depois, Edison Machado convidou-me para fazer parte de seu grupo; partimos para Niterói, e lá fizemos uma longa temporada no Restaurante Casarão, na praia das Charitas, o que até hoje me enche de secreto orgulho!
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Sérgio Mendes & Bossa Rio — Você Ainda Não Ouviu Nada! (1964 — Philips)
Lado A
1. Ela É Carioca
(Tom Jobim – Vinicius de Moraes)
2. O Amor Em Paz
(Tom Jobim – Vinicius de Moraes)
3. Coisa Nº 2
(Moacir Santos)
4. Desafinado
(Tom Jobim – Newton Mendonça)
5. Primitivo
(Sérgio Mendes)
Lado B
1. Nanã
(Moacir Santos – Mário Telles)
2. Corcovado
(Tom Jobim)
3. Noa Noa
(Sérgio Mendes)
4. Garota de Ipanema
(Tom Jobim – Vinicius de Moraes)
5. Neurótico
(Meirelles)
Ouça o LP na íntegra aqui:
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PS(2): O primeiro PS foi dele; este é meu. Ouça abaixo um belíssimo disco de Sydney que encontrei disponível no Spotify:
PS(3): Finalizando este texto às 3h de la madrugueides, tomando uma nipocanjebrina e ouvindo o disco acima, não tive como não soltar um "PQP, como a vida é injusta!!!"(fiquem tranquilos; como me ensinou a saudosa Lucia Helena Corrêa, amanhã eu reviso sóbrio).
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOi, Érico, queridão! Sempre bom te ler por aqui.
ExcluirEntretanto, tenho que corrigir um erro de interpretação seu: o Sydney não participou da gravação do disco, ele o conheceu na casa de um dos membros do Bossa Rio.
Abração,
レオ。