O fato de ser letrista (e não cantor) possibilitou-me conhecer muitos bons compositores e com eles "parceirar". Pra isso, valeu-me também o exercício diário de vencer os preconceitos musicais e abrir olhos e ouvidos pro novo... e pro que é considerado velho. Por conta disso pude trazer a meu convívio compositores de gerações distintas da minha e com estes construir um vínculo (não só musical). E, dentre esses parceiros da, digamos, velha guarda, tenho um carinho todo especial por Marito Correa, um compositor com C maiúsculo! E também um cara muito bom de papo, de tiradas geniais, engraçado até a medula, e partícipe de encontros etílicos, sobretudo os regados a boa música.
1) Balada das Artes (Marito Correa - Nelson Angelo)
Conheci Marito meio que por acaso, certa noite em que havia ido com Kana ao Caiubi. Não sei exatamente como começou, mas de repente nos vimos papeando com ele, e, na hora de ir embora, descobrimos que éramos vizinhos (mundo pequeno!). Marito morava a uma quadra de nossa residência, no charmoso e decadente bairro do Bixiga. E mais: era dono (juntamente com sua mulher, a simpatissíssima Cida) de uma aconchegante casa chamada Saracura, na rua Rocha, que servia boa comida, cerveja gelada, e tinha um ambiente familiar, pois era realmente uma casa, com quintal e tudo, no fim do qual algo parecido com um velho depósito de ferramentas fazia as vezes de palco onde ele fazia seus showzinhos despretensiosos.
Não preciso dizer que nos tornamos figurinhas fáceis do lugar. Íamos a pé, e costumávamos voltar tarde. Contudo, embora as apresentações de Marito fossem sussurrantes, teve problemas com a vizinhança, pessoas honestas e matinais, que queriam dormir e, de preferência, sem a companhia da boa música. A casa fechou, mas a amizade, não. E, progressivamente, esta se fez parceria. Marito, descobri, possuía um baú sem fundo de melodias, e fui me deliciando em fazer letras pra elas. Foi ele, inclusive, quem me ensinou uma tática de compor da qual me utilizo até hoje. Explico: a primeira letra que lhe fiz era essencialmente masculina, e Marito, sempre à procura de cantoras que lhe gravassem as canções, me recriminou: "Parceirinho querido, como é que, em sã consciência, uma cantora vai cantar versos como esses? 'Quem é você, mulher?/ Que estranha vocação/ Ser anjo da guarda/ Da fera bastarda/ Do reino animal/ Eu sou um vampiro/ Em pleno retiro/ Espiritual'. Seja mais sutil. Deixe o sujeito oculto!" E soltou uma de suas gargalhadas múltiplas, misturadas com tosse, que, por vezes, por pouco não resultavam em internação. Foi aí que aprendi a fazer letras que, embora tivessem uma essência feminina, podiam ser cantadas por homens. E vice-versa.
2) Asa Delta (Marito Correa - Sidnei C. Vale)
Caetano Veloso
Perseverante, Marito descobriu uma casa melhor e mais bem localizada, com vedação acústica, palco grande, dois ambientes, o fino! Batizou-a de Saracura do Bar. Ficava no coração do Bixiga, na rua Treze de Maio, 180. Ele dizia que, de tanto procurar, sem encontrar, lugar pra tocar, resolvera abrir sua própria casa, onde podia fazer seus shows e possibilitar aos amigos que tivessem, também eles, um palco aberto e democrático. Até mesmo o Caiubi, quando perdeu a casinha em Perdizes, mudou-se de mala e cuia pra lá por uns tempos. Mas o tempo passou, as dívidas vieram, o público não entendeu a proposta, e, imprensado entre o forró e o rock, novamente viu os vizinhos serem responsáveis pelo fechamento da casa. Era uma vez um Saracura. Assim como o rio que deu origem ao nome do bar, viu um asfalto de ignorância sobrepor-se a suas águas.
Além de perseverante, Marito podia ser considerado também um cara turrão, teimoso ao cubo. Bossa-novista por excelência, não admitia impurezas que, segundo ele, empobreciam a MPB. Suas canções possuíam linha melódica extensa e harmonia sofisticada. E, embora paulista, vivera muito tempo no Rio, chegara a ser amigo de gente como João Gilberto e João Donato. Uma vez me contou certa história que, verdadeira ou não, é bastante interessante. Disse-me ele que, quando morava no Rio, costumava receber ligações de João Gilberto, de madrugada, pedindo-lhe que lhe cantasse ao telefone "aquela". E ensinava: "Mário, faça assim, ponha o fone sobre três listas telefônicas, assim posso ouvir de forma igual a voz e o violão". Marito punha o fone sobre duas listas e, nem bem começava a execução, ouvia o berro do outro lado da linha: "Eu disse três, não duas!". Foi no Rio também que gravou seu belo CD Verena - Os Sinos e os Meninos, que teve muitas importantes participações, entre elas a de Caetano Veloso. E isso não é história. É História!
Mas Marito é mais um entre tantos quixotes que conheci. Com a bossa nova em seu auge na Europa e agonizando no Brasil, não pensou duas vezes: arrumou as malas, pegou um Air France e se mandou pra Paris, tocar em bares. Certa ocasião, estando num trem atravessando território belga, gostou do som do nome de uma estação, desceu, perambulou sem rumo, descobriu uma casa que o atraiu, entrou, trocou duas ou três palavras com o proprietário e, na mesma noite, estava instalado num quartinho dos fundos, contratado a fazer apresentações de música brasileira no palco do estabelecimento. Acabou morando na Bélgica durante anos.
Voltou ao Brasil longos anos depois, e, tal qual a personagem de O Príncipe, longa de Ugo Giorgetti, encontrou uma São Paulo mudada, com a qual jamais se readaptou. Marito sofre do mesmo mal de muitos brasileiros que partiram do país em busca de condições de vida melhores e, no exterior, passaram a sonhar com um Brasil fictício, utópico. Voltando ao seio da terra natal, encontrou-o murcho, sem leite, muito provavelmente igual a anos antes, porém completamente diferente daquele em que jorravam leite e mel, que era o de seus sonhos. O remédio que Marito encontrou foi mudar-se novamente pro Rio de Janeiro, que, embora certamente também não seja o que sonhou, ao menos continua lindo.
Marito, aquele abraço!
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