Quando Zé Rodrix aprontou a última das suas e, à francesa, retirou-se do cenário, eu, estupefato, após derramar fartas lágrimas, passei a acompanhar, autômato, os noticiários na TV a seu respeito. E o que vi? Uma cobertura preguiçosa e repetitiva que carecia de profissionalismo e, assim, desrespeitava o falecido. Pensei com meus botões que a imprensa escrita, mais investigativa, trataria do assunto com mais riqueza de detalhes. Enganei-me rotundamente. A impressão que dava era que o Zé havia morrido na década de 80 e só agora descobriam seus restos mortais. Não havia um só profissional que encontrasse uma informação satisfatória a respeito do que ele havia feito nesses mais de 20 anos! Minha tristeza foi se transformando em ira e nojo. Então esses almofadinhas, formados pelas melhores faculdades do país, não tinham absolutamente nada a acrescentar ao público além do fato de haver ele morrido disso à tal hora do dia tal no hospital xis, que o velório aconteceria na loja maçônica ípsilon e o enterro, no cemitério zê? Daí pronto, acabou-se, passemos ao futebol...
Quem é que nunca ouviu falar de Zé Rodrix? Na década de 70 o Brasil inteiro cantou com ele as aventuras de desventuras de ser latino-americano e nunca se enganar. Meio mundo foi morar dentro da baleia com Mestre Jonas enquanto a outra metade do mundo sonhava em ter uma Casa no Campo. E ele, com seu cabelo a la Globetrotters, suas calças boca-de-sino cor-de-rosa, suas reluzentes camisas sempre com os botões superiores abertos, seus óculos escuros que não escondiam o olhar de galhofa, seu bigodão aparado num barbeiro mexicano, sua postura de latin lover e sua lábia corrosiva, do alto de seu metro e cinquenta e pouco, parecia se divertir tanto quanto divertia, sabedor de que o mundo não passa de uma grande piada.
Mas esse Zé Rodrix, dos festivais da década de 60, que foi do Som Imaginário, formou trio com Sá & Guarabyra, fez um milhão de shows e apareceu em todos os programas de televisão existentes, esse Zé Rodrix todo mundo conhece. Eu queria falar do outro, do lado B, do cara que parou de compor quando Elis morreu, que se dedicou aos jingles (e também com eles fez o Brasil todo cantar), que tirou onda com o Joelho de Porco, que aprontou mil e uma e que, finalmente, abstêmio, maduro, cozinheiro e pai de família, foi parar, a convite de uns bichos-grilos modernos, numa casinha carente de reforma, porém charmosa, localizada em Perdizes, próximo à PUC, mais precisamente na rua Caiubi, 420. Esse Zé Rodrix ninguém conhece e já passou da hora de alguém falar dele, pra que a justiça seja feita não só a ele quanto aos bichos-grilos supracitados, que naquela casinha fundaram o Clube Caiubi de Compositores.
Zé Rodrix sempre esteve à frente de seu tempo. Pensador, intelectual, poliglota, multi-instrumentista, antes que alguém sonhasse com a internet, trocou o Rodrigues pelo Rodrix e tornou-se único. Mas esse mesmo Zé Rodrix andava um tanto cabisbaixo, descontente com os rumos da canção e sobretudo com aqueles que se deram o direito de pilotar esse planetinha que gira ao redor do próprio rabo em busca de um ensolarado osso. Nessa época ele recebeu um convite pra ser homenageado pelos tais rapazes e passar um par de horas ouvindo umas cançõezinhas despretensiosas. Educado, aceitou o convite, rezando pra que aquelas duas horas passassem depressa. Passaram. Mas seu efeito perdurou, e Zé, já em casa, não conseguia tirar da cabeça aquelas duas dúzias de canções que ouvira. Não acreditava que ainda existiam quixotescos compositores que, quais discípulos de Baco, celebravam o encontro pelo prazer do encontro.
Mas podia ser que os rapazes tivessem se esmerado pra surpreendê-lo. Era preciso tirar a prova dos nove. Sem que ninguém esperasse, voltou lá outra noite. E não é que a mágica se repetiu? Tanto que ele voltou pela terceira, pela quarta, pela décima vez! Quando pensou que não, estava viciado. Estando livre, não passava uma segunda-feira sem ir ao tal Clube. E mais: aquela sucessão de belas canções havia feito o compositor despertar de um longo período de hibernação. O que Elis levara com sua morte, o Caiubi devolvera-lhe: o desejo ardente de compor! E ele se entregou ao velho/novo vício como um adolescente deslumbrado. Ali ele era mais um, sem pose, sem máscara. E vieram as parcerias. Zé sentia-se revigorado compondo com rapazes que tinham até metade de sua idade.
E veio a preocupação: ele tinha que fazer algo por esses jovens. E fez. Usou de sua experiência e sua sabedoria e tornou-se o guru deles. Dirigiu-os mesmo rumo ao profissionalismo. Começaram então os grandes shows. O Caiubi deixava de ser um grupinho de amigos pra se transformar num verdadeiro movimento de grandes proporções. Sob a tutela do mestre, compositores que nunca haviam feito nem um show sequer gravavam belos discos, afiavam o discurso, enfim, preparavam-se pro que desse e viesse. E o que desse e viesse estava por vir. O Clube marcou presença no Festival da Cultura, aglutinou compositores em grupos, e surgiram os Tropeçalistas, o 4+1, a Trinca Caiubi, chegou o Rossa Nova, todos na labuta, produzindo, acompanhados de perto pelo olhar carinhoso e firme do generoso Zé, que lhes abria mesmo sua casa, que em pouco tempo virava o QG da caiubagem.
Quando caiu em si, Zé Rodrix estava num processo de criação com o qual não se deparava havia muito. Os dias eram cada vez mais curtos. Ele escrevia livros, dava palestras, fazia shows, compunha, comandava o Caiubi, chegara mesmo a retomar a parceria com Sá & Guarabyra... Era preciso dividir a responsabilidade. Sedutor, usou de toda sua lábia e acabou por convencer o antigo companheiro de estrada, Tavito, a mudar-se do Rio pra São Paulo e acompanhá-lo na nova empreitada. E não é que o moço veio? E não é que, da mesma forma que o Rodrix, também ele se encantou com o Clube? Retomaram a parceria e caíram de novo na estrada. Seu novo show em dupla era impagável, repleto de sucessos antigos, canções novas, histórias, havia mesmo um bloco em que se divertiam cantando jingles que todos sabiam de cor, mas não imaginavam que eram deles.
Então Zé Rodrix achou que já era hora de ele gravar seu primeiro DVD. Selecionou umas poucas antigas canções, muitas novas canções, entre as quais boa parte havia sido composta com os parceiros caiubistas, e reuniu-as num show. Duas noites de gravação. Banda bem ensaiada, participações especiais, o Zé estava que era um luxo só, e radiante, carismático, 100% Rodrix. Mas, justamente por ser 100% quem era, exigente sagitariano, ao se deparar com o resultado final, achou que não estava bom o suficiente pra ser eternizado em um DVD. Ainda não seria dessa vez. Adiou o projeto enquanto se lançava de cabeça num novo trabalho, o primeiro disco de inéditas do trio Sá, Rodrix & Guarabyra em anos. E com produção de Tavito. O DVD não saiu, mas o disco do trio, sim. Só que o Zé não o viu. O CD foi batizado com o nome de Amanhã. E parece que foi ontem que ele se foi...
Tanta coisa! Tantos projetos! Tantas realizações! Mas naquele 22 de maio e nos dias subsequentes a TV não exibiu. Tampouco os jornais foram atrás do furo. Pra eles bastava dizer que Zé Rodrix, o compositor de Casa no Campo, havia morrido disso à tal hora do dia tal no hospital xis, que o velório aconteceria na loja maçônica ípsilon e o enterro seria no cemitério zê. E agora voltamos ao vivo com o Big Brother...
Dediquei-lhe um soneto, chamado G.A.R.G.A.L.H.A.D.A. (ele gostava de escrever a palavra "gargalhada" assim, como se fosse uma sigla, quando comentava algo espirituosamente, nas muitas listas das quais participou) e mandei-o pro Sonekka, o cara certo pra musicá-lo. E que o musicou. Ficou assim: Já que ele se esqueceu de despertar/ E só restou seu corpo, inerte e frio,/ Não chore, sem o dono, ele será/ Não mais que um mero terreno baldio./ Sua alma deve estar noutro lugar/ Liberta da carcaça que a cobriu/ Mil anos-luz do sistema solar/ Cantando um rock’n’roll made in Brazil./ Com sua gargalhada a ecoar/ Pois morto é quem é vivo e nunca viu/ Que além dessa baleia existe o mar./ Na sua moto alada, além de lá,/ Com Jesus na garupa, a mais de mil,/ Foi pr’onde os anjos não ousam pisar.
***
***
O legado de conhecimento ético e musical que o Zé nos deixou não é facil substituir
ResponderExcluirMas graças a Desu não precisamos substituí-lo, Sonk. Basta tentarmos a cada dia aperfeiçoar o amor à verdade que ele nos incutiu (e que ainda é tão difícil de exercer).
ResponderExcluirAbração do
Léo.
Dizem que ninguém é insubstituível, mas quem substituiu Ze Rodrix, heim?
ResponderExcluirBelo trabalho, meu camarada!
O Zé Rodrix e o Caiubi se confundem e por causa do Caiubi, voltei a compor, depois de 20 anos sem fazer nenhuma música, pois havia perdido o interesse. Mas, só com parceiros caiubistas já são 69 composições.
Tá vendo como o Caiubi mudou a vida?
Grato pela visita, Vuldembergue! E fico feliz em saber que o Caiubi também te fez voltar à ativa. Qualquer hora devolvo a visita!
ResponderExcluirAbração do
Léo.
Maravilhosa a matéria sobre o inesquecível e inimitável Zé Rodrix. Zé acabar por confundir-se com o Caiubi? Normal. É uma casa acolhedora e com tantos talentos. É sempre uma lúdica viagem surfar nas belas ondas musicais que batem nesse pico. Luz e paz profunda a todos!
ResponderExcluirParabéns pelo depoimento tão rico em sensibilidade e tão cheio de verdade, Léo!
ResponderExcluirSalve, Chico e Márcia! Grato pela visita e pelas palavras! Luz e farol pra vocês.
ResponderExcluirBeijos do
Léo.
Salve Zé...
ResponderExcluirBelíssimo soneto Leozinho !!!
Bjo do Giah
Parla, Giah! Brigaduu!
ResponderExcluirBeijo do
Léo.
Muito profundo e verdadeiro o que escreveu sobre o Zé. Ele marcou não so época, mais o coração de seus admiradores. Felicitação pelo carinho.
ResponderExcluirOlá, Célia! Que bom te receber por aqui. Eu que agradeço por sua visita e suas palavras.
ResponderExcluirBeijão do
Léo.
Zé era um querido.
ResponderExcluirEu o conheci através de Moreno, quando a banda dele, o Faia, começou a tocar na peça "Tem Piranha na Lagoa".Todas as músicas eram do Zé. Eu assisti a quase todos os espetáculos, pois tomava conta de Moreno (nós éramos namorados) com as "gostosas"atrizes do musical....ehehe
Daí para estarmos juntos,tocando, mostrando músicas foi um pulo.
E ele se foi, sem me dar a gravação de uma m'sica dele chamada "Cozinhando Milho", que eu curtia demais!
Tenho muito pra contar desse cara!
Vou falar mais em meu blog.
Mas deixo minha alegria por vê-lo sempre lembrado com carinho por todos do Caiubi.
Com certeza ele e Moreno estão curtindo todas lá em cima!
Oi, Irinéa. Belo depoimento. Dê o link de seu blog, pra gente acompanhar essas e outras histórias.
ResponderExcluirBeijão do
Léo.
ohhhhhhhhh leo que lindo seu texto cara !! é ZÉ FOI UM PAIZÃO PARA NOS ,nos deu encentivo ,nos colocou no palco ,eu com um puta vergonha ,cantei no crown plaza ,,parabens ,desculpa voce tem algum livro escrito ? abraços tim max
ResponderExcluirSalve, Tim! Você é gente que faz! Hehe! Curti te ver na Paulista mandando ver, sem medo de ser feliz. É isso aí!
ResponderExcluirCara, tenho dois romances inéditos à procura de editora. E mais uns cinco ou seis esperando tempo e tranquilidade ($) pra serem terminados. Se souber de algo, sou todo ouvidos. Hehe!
Abração do
Léo.
Belíssimo texto Leo.
ResponderExcluirTributo mais que merecido
Izabel
Valeu, Izabel!
ResponderExcluirBeijo do
Léo.
Excelente homenagem, Leo, parabéns! Saudade do gajo.
ResponderExcluirSalve, Alan! Só vi hoje (por acaso) seu comentário! Valeu!
ExcluirAbração,
Léo.