2006
JUNHO
SEXTO DIAViernes, 23.
“Thank you very much” disse-nos o músico, após termos falado com ele uns cinco minutos em espanhol e comprado o CD de seu grupo, que continha grandes sucessos da música cubana. Este fato reflete bem um sentimento de subserviência que acomete não só os cubanos, mas todos os latino-americanos. Por que cargas d’água, se eu sou brasileiro, o músico em questão é cubano, falamos em espanhol (ou quase) e ainda por cima compramos um CD suyo, POR QUE tinha ele que agradecer em inglês? Pra mim soou mais como ofensa, despeito. E, diga-se de passagem, a maioria dos músicos aqui vive uma situação entediante, repetindo diariamente as mesmas guantanameras da vida. Claro que no Brasil há os músicos de bar, mas estes podem galgar postos mais elevados, ao passo que aqueles ficarão eternamente ali, dizendo “thank you very much”.
Por outro lado, aquele menino que me agradeceu com um “thank you, sir” me comoveu deveras. Explico, cada caso é um caso. E, no caso deste menino, jogava ele futebol com um amigo, a bola veio em minha direção, eu a peguei e lha devolvi. No caso, ele não sabia minha nacionalidade, mas o que me emocionou não foi o agradecimento em si, foi a situação. Estávamos eu e Kana caminhando por um bairro estritamente residencial, nem posso dizer periferia, pois Havana toda é uma grande periferia, mas disso trato daqui a pouco. O que me pegou de jeito foi que vi aquele menino negro, de bermuda, sem camisa e chinelos, me dizendo “thank you, sir”. Imagine a mesma situação num morro qualquer do Rio, ou numa dessas mil favelas que há em São Paulo… Imaginou? Qual moleque de lá responderia “thank you, sir” a um estrangeiro?
Agora voltemos à “grande periferia”. Com raras exceções, Havana lembra uma grande periferia, ou um daqueles sub-bairros do centro paulistano (há trinta ou quarenta anos). Tudo é muito parecido, tirante o fato de que aqui eles moram num patrimônio histórico, em casas que têm, muitas delas, duzentos anos (ou mais). Pra mim, às vezes, chega a ser inadmissível que um país tão caro para os turistas tenha pessoas nas ruas pedindo sempre “una monedita, por favor”, ou crianças pedindo caramelos (balas). Pra onde vai esse dinheiro? No Brasil sabemos pra onde vai, mas aqui… É um mistério. No vidro traseiro de um carro, estava escrito num adesivo autocolante “no es que no quiero, es que no puedo”, não é que não quero, é que não posso. Essa frase significa uma infinidade de “não poderes”.
Bem, acordamos hoje perto das 10h da manhã, tomamos o desayuno, saímos pra caminhar e fomos até a Taverna de la Muralla. Não é meu intuito escrever este relato como si fuera um guia turístico (pra isso há a Internet), mas essa casa possui um chope que, se eu deixasse passar em branco, seria um crime. Inclusive, pra grupos de três ou mais (ou de dois bons bebedores) pode ser servido numa espécie de jarra de três litros, com gelo no meio, separado, pra manter a temperatura, claro. E com música ao vivo praticamente ininterrupta. Foi lá que conhecemos el Señor “thank you very much”. De lá fomos a uma sorveteria gigante, onde há um belo sorvete, mas nada que não haja em qualquer parte do Brasil (digo sobre o sabor, não sobre o estabelecimento).
Momento didático: quem quiser visitar Cuba (Havana principalmente) deve vir com anotações de vários lugares interessantes, principalmente casas de shows ou restaurantes (porque a comida em geral não é das melhores, e quem me disse isso foi um garçom); deve trazer xampu, escova de dentes e creme dental; o fio dental vem me salvando (o dental); e façam como eu fazia quando era mais novo, repleto de traumas e acidentes de percurso, tenham sempre à mão papel higiênico, pois mesmo nos lugares mais chiques sempre há uma senhora (que devia estar aposentada e cuidando de seus netos) à porta dos toaletes que vai lhe pedir una monedita pelo privilégio de usar um banheiro onde, com muita sorte, haverá água pra lavar as mãos.
Foi o que aconteceu conosco no Dos Gardenias, um estabelecimento que tem no piso térreo um restaurante (dos melhores que visitei) e no piso de cima uma casa de espetáculos que me lembrou o extinto Supremo Musical, em São Paulo. É uma casa que se dedica aos boleros e recebe diariamente turistas do mundo inteiro, artistas, inclusive. O fato é que terminamos a noite em estado de graça, ouvindo quatro grandes intérpretes desfilando um repertório belíssimo de boleros, pra um público majoritariamente de tiozinhos, como diria Vlado Lima. Tirantes eu, Kana e mais dois ou três jovens perdidos.
Antes de terminar o relato do dia, me lembrei de falar sobre os olhos dos cubanos (sobretudo das cubanas). São olhos estranhos, que mesclam uma sensualidade maliciosa com uma certa opacidade da falta de perspectiva (acho que já mencionei isso, mas, na dúvida, repita-se a informação). Uma coisa, como direi?… Inefável, como diria Fernando Cavallieri.
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