sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Crônicas Classificadas: 3) Poema em linha reta

Quando eu era jovem, tinha uma ideia errônea de poesia. Assim como quase todos os garotos com quem convivia, fosse jogando bola, fosse em sala de aula, enfim, fosse onde fosse, eu achava que poesia era leitura de menina, daquelas que escreviam em diários e punham o nome do rapaz de quem gostavam dentro de um coração carregado na tinta. Sim, eu carecia de ideia própria. Desgostava sem conhecer de fato. Queria ser popular. E toda popularidade tem um preço. No meu caso, o preço era a ignorância (nos dois sentidos). Passou o tempo, e o mais engraçado de tudo (se é que isso é engraçado) é que fui me aproximar da poesia DE VERDADE só depois que abandonei a escola. Depois que me vi só, quando os amigos, um a um, foram tomando rumos distintos do meu, e eu sobrei ali, solitário como quando era criança.

Daí, pude me entregar de cabeça e coração aos versos de muitos poetas, tantos que fazer uma lista deles nesse espaço seria cansativo. E ainda assim foram menos do que eu gostaria, visto que comecei a compor e passei a manter-me atento mais aos poetas da canção. No entanto, foi já depois de muitos anos compondo, e mesmo depois de haver escrito a letra da canção Navegar É (feita em parceria com Mauricio Lyra e Élio Camalle e gravada por Kana e, posteriormente, por Daisy Cordeiro), cujo título remete a um verso do português Fernando Pessoa (que, por sua vez, o roubara de navegadores antigos), foi muito tempo depois que me caiu nas mãos um livro do referido poeta e que sua poesia me caiu no coração.

Eu, amante das rimas, em princípio não fui tocado pelas palavras ranzinzas dos versos (quase sempre) brancos de Pessoa. Mas tudo mudou quando cheguei à página do livro em que dormia, à minha espera, o Poema em linha reta. Aquilo me causou uma complexidade de sentimentos, fui arrebatado do chão por uma catapulta e me vi voando por sobre as cabeças dos transeuntes até me esborrachar no mesmo chão, mas já do outro lado, o avesso. Aquelas palavras poderiam ter sido escritas por mim. Era assim que eu pensava. Eu, embora conhecesse gente que já tinha levado porrada, nunca havia conhecido quem confessasse isso. No final das contas, mesmo os que sempre apanhavam se vangloriavam de serem os vencedores da(s) briga(s). Até porque, em nossa época capitalista, de alta competitividade, qualquer um que não seja "campeão em tudo" não é interessante a nenhum mercado, seja o do trabalho, seja o do amor. E eu me lembrei dos versos de Navegar É, que escrevera havia muitos anos: "Esse furacão fez do meu peito um deserto/ transformou meu chão num vão que engole o céu aberto/ estou aqui, vendo miragens antigas/ mas aprendi que ninguém ganha as brigas."

E então, tomado pelas palavras de Pessoa, fui lá procurar outras palavras suas, as suas e as de outros Pessoas, e não houve depois disso outro poeta, rimador ou não, que conseguisse me alcançar a alma de forma tão abissal. Tempos depois, recebi uma melodia de Kana pra letrar e, ouvindo aquelas notas melódicas melancólicas, a atmosfera desta me remeteu novamente a Pessoa, e comecei a letrá-la pelo meio, numa estrofe em que cabiam os versos "A boca é um calabouço/ eu me calo e ouço bem:/ todo mundo tem/ todo mundo diz que é alguém/ no mundo". A canção foi batizada de Ímpar. Abaixo postarei a letra na íntegra e  o áudio da canção; por ora apenas explico o porquê de ter tratado de Pessoa e de seu Poema em Linha Reta num espaço que se chama Crônicas Classificadas: Sempre senti os versos dele como muito próximos à prosa. Pareciam quase uma conversa, aliás, um monólogo. Então fiz a experiência de reagrupar esses versos abaixo como se fossem realmente uma crônica. Leiam-nos assim e vejam que interessantes são, e que belo cronista-poeta foi Pessoa:

Poema em linha reta
Por Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil; eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo; eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho; eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo; que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas; que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante; que tenho sofrido enxovalhos e calado; que, quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel; eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes; eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar; eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco; eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas; eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? 

Ó príncipes, meus irmãos! Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, podem ter sido traídos — mas ridículos, nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 


***


ÍMPAR

Solidão
É bom par
Pra ler, beber, compor, chorar
Solidão,
Ombro amigo
Xingo, brigo, e sabe me escutar

Solidão
Toda noite vem
Me ajudar a não dormir
Solidão
Me faz rir só
Gosto muito de você

A boca é um calabouço
Eu me calo e ouço bem
Todo mundo tem,
Todo mundo diz que é alguém
No mundo

Solidão
Me faz tão feliz
Um pôr do sol no meu porão
Solidão,
Sem falar, diz
Fundo no meu coração


***


4 comentários:

  1. Oi Léo!
    Quando recebi seu e-mail convidando para esta página, imaginei que chegaria aqui leria Pessoa e iria embora preenchida de Fernando. Mero engano o meu. Comecei a ler seu texto tão maravilhoso que por longos momentos me esqueci a que tinha vindo e me senti preenchida por suas palavras.
    Acho que sou sua fã.
    Beijos,
    Lucinda

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  2. Nossa! Ganhei o dia! Obrigadaço, queridona!

    Realmente não costumo postar nada por postar. Se gosto de algo a ponto de trazer pra este cantinho, quero conversar com esse algo, trocar figurinhas, não somente deixar aqui sem quê nem pra quê. Afinal, este é um blog autoral.

    Beijão do
    Léo.

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  3. Muito lindo o poema na boca de Kana fica mais doce.

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