segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Ninguém me Conhece: 54) Desaguando nos rios de Mauricio Lyra

Naquela manhã, quando o garoto despertou de uma noite mal dormida, a primeira coisa que avistou foi o violão, num canto do quarto. Ainda com os olhos vermelhos do pranto do dia anterior, pegou-o, meio desajeitadamente, e começou a brincar com suas cordas, tirar sons esdrúxulos delas, procurando algo que se parecesse vagamente com música. Naquela hoje distante manhã, ele mal podia saber que esse simples gesto de um garoto que tenta por vez primeira decifrar o mecanismo de um brinquedo iria mudar pra sempre os rumos de sua vida.

1) Beirando o Rio (Mauricio Lyra - Léo Nogueira)

Recuando um dia no tempo, vemos o garoto no cemitério, inconsolável junto a seus familiares, despedir-seu de seu avô, outrora talentoso luthier, agora requisitado a consertar e construir violões em outro plano. Recuando ainda um pouco mais no tempo, descobrimos como aquele violão veio parar no quarto do garoto: como ele sabia do amor de seu avô (que tinha sido luthier e depois, por conta de uma doença no braço, fora forçado a se aposentar) por violões, economizara um dinheiro, à custa de muito sacrifício, pra, junto com um tio, comprar aquele violão pro velho, pra ver se lhe dava certa felicidade na velhice.

O fato é que o avô faleceu abruptamente, e lá ficou o violão, num canto, sem dono, sem canção, sem razão. E assim começa a história do garoto Mauricio, um moleque comum que vivia ao pé de um dos tantos morros cariocas, que gostava de jogar bola, soltar pipa, que fora engraxate, que limpara latrinas, que vendera bugigangas pelas praias do Rio, que podia ter descambado pro outro lado, iludido pelo dinheiro fácil das drogas, mas que foi, de certa forma, salvo por aquele violão que não era pra ser seu.

O tempo passou, o garoto cresceu, descobriu as manhas e as artimanhas daquele instrumento, e com ele encontrou uma profissão. Frequentou as muitas rodas de samba que há no Rio, encantou-se inevitavelmente com João Gilberto e a bossa nova e, por conta disso, meteu-se a trilhar outros caminhos harmônicos. Perdido nesses caminhos, percebeu que tinha uma bela voz que era capaz de passear sem sofrimento por esses complexos caminhos. Passou então a tocar (e cantar) MPB em bares, descobriu os segredos do sexo feminino, beijou algumas bocas, dormiu em diferentes camas, e assim, como num samba de João Nogueira, achou assuntos pra se tornar compositor. E aí, em homenagem ao avô, assumiu deste o sobrenome Lyra e passou a se apresentar com o nome artístico de Mauricio Lyra.

Mas o Rio não vinha vivendo um bom momento, e Lyra viu, com o coração partido, o fechamento de muitos bares onde se apresentava. Tomou uma decisão difícil: corria à boca miúda que era em São Paulo que estavam as boas casas do ramo, que possibilitavam ao músico viver dignamente de seu ofício. Sofreu, verteu algumas lágrimas, despediu-se de alguns xodós e partiu pra Sampa, deixando pra trás muitas histórias... e um filho.

E lá veio ele, gingando, driblando os contratempos, "caminhando na ponta dos pés, como quem pisa nos corações [...], meio assim de viés", pisando nesse chão "devagarim". Abriu os braços, como se estivesse no alto do Corcovado, gritou que qualquer paixão o divertia, e deixou-se devorar por essa tal de Sampa, enquanto tentava decifrá-la.

Caiu na night, de violão a tiracolo, olhou pro céu em busca da lua de São Jorge, mas era difícil vê-la por conta da feia fumaça que subia apagando as estrelas. Em compensação, na Paulista os faróis já iam abrir, com um milhão de outras estrelas prontas pra invadir os Jardins. Iluminado por essas luzes artificiais, sem frescura e sem pose (e sem dinheiro no banco), disse sim a tudo o que pintou. Afirmou que teve, sim, outro grande amor antes do seu, mas agora chegara a vez de amar também a Terra da Garoa. Assim, cantou cenas de sangue nos bares da avenida São João, tomou os trens de Adoniran, desceu a rua Augusta a 120 por hora, beijou a Boca do Lixo, mas não deixou também de cantar seu Rio, cantar a Bahia, enfim, cantar o Brasil.


2) Navegar É (Mauricio Lyra - Élio Camalle Léo Nogueira)

E cantou muito no Villaggio Café, charmosa e saudosa casa que pulsava no coração do Bixiga. Foi lá que o conheci. Nessa mesma noite nos fizemos amigos. E foi também nessa noite que ele convidou Kana pra dar uma canja, fazendo o bar se calar pra ouvi-la, o que possibilitou o convite dos donos da casa pra que ela fizesse lá seu primeiro show. Por falar em Kana, na época ainda éramos namorados, e ela ainda morava no bairro da Liberdade, onde passei a noite e onde escrevi uma letra chamada Cântico, que, na tarde seguinte, um domingo, fui entregar a Lyra, no mesmo Villaggio, onde ele tocava choros e sambas, pra que os paulistanos vissem o fim de semana acabar com menos tristeza.

Na semana seguinte Cântico estava pronta. Então vieram muitas outras. Em pouco tempo já tínhamos repertório pra mais de um disco. Paralelamente Lyra lapidava cada vez mais suas próprias letras, que ele tão bem musicava. Embora se considerasse um sambista, era muito bom também em ritmos nordestinos. Coincidentemente, nessa época ele me levou a conhecer Oswaldinho do Ocordeon, que acabou arranjando grande parte do primeiro disco de Kana, Do Japão ao Ceará, e que arranjou também uma canção de Lyra... um xote!

Mas Lyra tinha um problema: assim como tantos outros artistas, julgava-se o melhor e cria piamente que cedo ou tarde apareceria alguém disposto a bancar seu CD. E Lyra gostava de conforto. Um bom lar, um bom carro, família... Não investiria jamais seu dinheiro num CD, esse dinheiro tão imprescindível pra bancar o tal conforto. Nesse meio tempo, outros artistas de meu convívio não pensavam assim e, às próprias custas, produziam seus trabalhos, entre eles a já citada Kana, Élio Camalle, Daisy Cordeiro... E Lyra sentia-se cada vez mais deslocado em meio a nós. Nossos papos giravam em torno de repertório, gravação, estúdio; um universo distante da realidade de Lyra.

Foi assim que nos perdemos de vista. Eu ligava pra ele, mas o número dava como inexistente. Cheguei a visitá-lo, mas o porteiro avisou que ele havia se mudado e não dera o novo endereço. Até que finalmente, completamente por acaso, depois de muitas mudanças (minhas e dele), esbarramo-nos e descobrimos que éramos vizinhos. Tentamos então uma reaproximação. Lyra contou-me suas andanças nesse meio tempo, relacionamentos que começaram e acabaram, mais um filho, seus muitos trabalhos tocando bossa nova em hotéis cinco estrelas, sua grande fase como músico da prestigiada casa Passatempoonde conhecera a nata da MPB, novas derrocadas, recomeços...

Agora ele assinava Mauricio do Samba (aposentara o sobrenome do avô), tinha um grupo com o qual se apresentava em várias casas paulistanas; contou-me que ia muito bem, obrigado, sua agenda estava cheia e blablablá. Tentamos retomar a parceria, mas as letras que eu lhe mandava não lhe agradavam, e, quando ele me mandava alguma ideia de letra, eu acabava não a desenvolvendo.

Vejo-o esporadicamente hoje. A consideração e a amizade não foram abaladas. Quando nos encontramos, parece que o tempo não passou. Lyra (pra mim será sempre o Lyra) continua o mesmo de sempre, bem-humorado, desbocado, consumidor de alta literatura e de livros de autoajuda, espiritualizado, filósofo de botequim, dono de um carisma e de uma gargalhada inconfundíveis que fazem qualquer um gostar dele de cara. De quebra, continua sendo um dos caras com mais presença de palco que já vi na vida. Ele fez suas escolhas. Pelo que me parece, vive feliz e em paz. E, no fundo, no fundo, não é isso que queremos todos?


3) Roendo (Mauricio Lyra)

Só que de vez em quando eu me flagro pensando nele, lanço um olhar nostálgico pra todos esses anos que se foram, ciente de que a obra de um compositor é contada por seus discos e por suas canções gravadas, e não tenho como não pensar: e se ele tivesse gravado um disco? Certamente seus caminhos teriam percorrido outros trilhos. Podia não ter dado em nada, como acontece na maioria dos casos. Mas me dá um aperto no coração saber que, com essas escolhas, o Brasil perdeu a chance de entrar em contato com a obra desse grande compositor, grande violonista, espetacular cantor... E um boa-praça, fanfarrão, mulherengo, carioca da garoa, figura ímpar dos palcos, seja onde for que toque. Enfim, senhoras e senhores, tenho o prazer de dizer que Mauricio Lyra (ou do Samba), com disco ou sem disco, é, como na canção, meu amigo de fé, meu irmão camarada!

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PS: Não encontrei no youtube nenhum vídeo autoral dele que prestasse...

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