quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Crônicas Desclassificadas: 25) O dom de Dona Branca

Quase ninguém onde ela trabalha (tampouco onde ela mora) sabe que seu nome é Antônia. Todos a conhecem por dona Branca, ou Branca, pros íntimos. Dona Branca é uma senhora gordinha, baixinha, de face corada, olhos claros e cabelos loiros, que parece mais ter nascido na Alemanha que no Ceará, seu Estado. Simpática, emotiva, dona de um grande coração, trabalhadora (ou "trabalhadeira", como gosta de dizer de si mesma), dorme de quatro a cinco horas por noite, é querida por todos que a conhecem, faz o bem sem olhar a quem... Contudo, não pense você que se trata de uma dessas beatas submissas que abaixam a cabeça pra tudo. Não, senhor! Experimente pisar no calo dela e entenderá mais ou menos o tamanho da fúria de Jesus contra os mercadores do templo!

Há um bom exemplo pra resumi-la: dona Branca mora numa casa própria, com o marido, seu Pedro. Só que, quando eles adquiriram essa casa, dentro da metragem do terreno, na parte de trás, bem no fundo do quintal, havia um barraco com seus respectivos moradores. Os anos se passaram, mas sempre quando um morador se mudava, vendia o barraco pro seguinte. E não havia jeito de ela recuperar os metros correspondentes à extensão invadida de seu terreno. Até que o barraco foi adquirido por um rapaz viciado em drogas que levara uns tiros (não se sabe se dos mocinhos ou dos bandidos...) e acabara, por conta de uma perna imobilizada, prostrado na cama. Dona Branca não pensou duas vezes. Bateu na porta do rapaz, apresentou-se e acabou cuidando dele durante meses, dando banho, alimento, remédio, lavando-lhe as roupas, até que ele por fim se restabelecesse. 

Finalmente o rapaz melhorou consideravelmente, já até andava, de muletas, mas andava. E eis que ele resolveu ir embora. Foi então que Dona Branca levantou (juntamente com algumas religiosas da paróquia) uma soma considerável em dinheiro pelo barraco, e só então, após tal ato de generosidade, conseguiu derrubá-lo e subir um muro que livrava sua propriedade de tal categoria de sócios.

É assim dona Branca. Não pondera, quando seu coração manda, lá vai ela se meter onde quer que seja pra lhe fazer as vontades. Possui também uma fé inabalável, o que é até complementar à generosidade. E sua fé é tanta, que fez dela profissão. É sacristã. E, ainda falando em generosidade, encontrou o lugar certo pra exercê-la: trabalha no Instituto Meninos de São Judas Tadeu (IMSJT), que existe há 65 anos e é uma instituição que nesses anos todos já cuidou de milhares de crianças, desde filhos de pais sem recursos até órfãos propriamente ditos. Pra ilustrar um pouco da história a seguir, é importante dizer que o patrono dessa instituição, que tinha fama de milagreiro, foi o padre Gregório Westrupp (falecido em 1983), cujos restos mortais, que estão num mausoléu dentro da capela do IMSJT, são visitados diariamente por grande número de fiéis.

Pois bem, os leitores católicos mais atentos já devem ter suspeitado de que o IMSJT fica, sim, atrás do famoso Santuário de São Judas Tadeu, localizado na zona sul paulistana, que recebe milhares de devotos (não só) nos dias 28 de cada mês, sobretudo no de outubro. E foi justamente nesse 28 de outubro último que um fato no mínimo estranho ocorreu com dona Branca. Estava ela retirando do mausoléu de padre Gregório os pedidos dos fiéis, quando sentiu uma mão roçar-lhe os cabelos. Virou-se e recebeu um beijo no rosto. Estupefata, notou que a dona do gesto era uma senhora muito idosa, baixinha e corcunda, de cabelos brancos e roupas claras. Disse-lhe ela, "Faça de conta que foi sua mãe". Dona Branca arrepiou-se e, embora emocionada, teve forças pra dizer, "Minha mãe está no céu". A velha sorriu e respondeu, "É pra lá que estou indo".

Dona Branca sentiu a vista escurecer e não teve como não cair num pranto convulso. Ainda com o rosto banhado em lágrimas, procurou a velhinha por todos os lados da capela, mas não achou nem sinal dela. Ficou assim durante muitos minutos, emocionada, chorosa. Quando o padre João Back a viu, perguntou-lhe o que acontecera, e, quando ela lhe explicou, disse-lhe ele, "Você tem dom, Branca. E hoje é um dia de graças". A mãe de dona Branca, também chamada Antônia, era outra mulher de grande fé. Faleceu há quatro anos.

A vida; os estudos; a filosofia; a ciência; a maldade, o egoísmo e a hipocrisia do homem; as frustrações do dia a dia; o passar dos anos; e as desilusões profissionais e afetivas (além de mais uma série de acidentes de percurso) acabam nos tornando pessoas céticas. Não quero fazer deste um relato tendencioso, tanto que não exerço julgamento sobre ele. Simplesmente achei uma bonita história, digna de ser contada. Sobretudo por se tratar de uma história de vida (o que dá um belo contraponto a este Dia de Finados), eu, que durmo demais, que tenho dúvidas demais, que tenho medo demais, que sofro e que choro demais, queria homenagear com este texto esta protagonista de tantas certezas, dona Branca, minha mãe.

***

5 comentários:

  1. Que texto bonito, Léo. Fiquei emocionado antes mesmo de chegar na capela na hora do beijo. Nessa hora claro que uma lágrima rolou. Que bela mulher, meu caro, que exemplo de ser humano... Parabéns pra D. Branca por ser exatamente do jeito que é. Ser filho de alguém assim é uma responsabilidade, viu? O legado é profundo e imenso. Abraçãooo, Veleiro.

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  2. Caro Léo:

    Muito bonita a história de Dona Branca, ainda mais narrada por você, com seu estilo ímpar, infinito de longo, mas ímpar (se bem que, dessa vez, vc passou perto daquela palavra cujo significado vc diz desconhecer: síntese).

    Muito legal.

    Pegando carona, 20 dias atrás, publiquei no meu blog também dois/três textos sobre morte e cercanias. Um leitor me escreveu e perguntou pq não deixei para publicar no Finados. E eu achei que ele estava certo. Pegando carona nos seus leitores, deixo aqui o link desses meus textos, opostos do seu. O seu, singelo; os meus, tentando ser divertidos.

    http://colunistas.ig.com.br/bocanotrombone/2011/10/21/morte-velorio-cemiterio-da-ate-para-se-divertir-com-isso-1/

    http://colunistas.ig.com.br/bocanotrombone/2011/10/20/epitafio/

    http://colunistas.ig.com.br/bocanotrombone/2011/10/21/epitafios-da-ate-para-se-divertir-e-muito-com-isso-2/

    http://colunistas.ig.com.br/bocanotrombone/2011/10/24/leitor-sideney-barbosa-conta-historia-morbida-hilaria/

    Caro Léo, qdo quiser, também faça chamada para seus textos no meu blog. Assim fica esse tal de jogar confete para o alto e entrar embaixo, como estou fazendo agora.
    Mais uma vez, lindo texto. Parabéns!!!

    Abraços

    Paulinho das Frases

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  3. Veleiro:

    Você adivinhou! É uma responsabilidade! Em todos os sentidos! Hahaha!

    Brincadeiras à parte, realmente é uma sorte ter pais (meu pai é outra figuraça!) que nos dão amor, mas, sobretudo, uma base ética imensa, que é o que nos molda pro futuro.

    Outro abração,
    Léo.

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  4. Paulinho:

    Mi blog es tu blog! Fique à vontade! Vou lá ler também.

    Abração do
    Léo.

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  5. Obs.: Minha mãe me corrigiu de um equívoco. No texto eu dizia que ela e meu pai tinham dado uma quantia x ao rapaz pelo barraco. Mas, como ela não gosta de mentira, me lembrou que conseguiu o dinheiro com o auxílio de algumas religiosas da paróquia. Já alterei no texto.

    Beijos gerais do
    Léo.

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