terça-feira, 22 de novembro de 2011

Trinca de Copas: 4) Élio Camalle, Guilherme Rondon e Tavito (c/Marcio Lott)

Nesta edição do Trinca de Copas escolhi três canções de que gosto muito e que até hoje não conseguiram escapar ao ineditismo. Antes de mais nada, é importante acrescentar que este não é um texto de cobrança. Teria que ser mais burro do que sou pra tentar chamar a atenção dessa forma. Pelo contrário, foi um modo que achei de homenagear estas canções (e, com elas, meus parceiros), tirar-lhes o pó e lustrá-las um pouco. Afinal, se possuo este espaço, tenho que aproveitá-lo, não? E, de repente, a divulgação delas por aqui pode gerar interesse em alguém que esteja à procura de repertório. Só pra encerrar este prefácio, reitero que O Mar em Mim e Samba do Amor Eterno estão entre as favoritas de meu repertório. Já Sagradas Horas me é muito especial porque é uma parceria com um camarada que admiro tanto a ponto de escrevê-la me pondo em seu lugar, como se fosse ele quem a estivesse escrevendo.

***

1) O MAR EM MIM

Com Tavito só tenho parcerias lindas (na minha opinião, claro). Imagino que deva ser difícil pra ele escolher entre uma e outra. Em seu novo CD ele escolheu Ponto Facultativo, que me levou às lágrimas desde a primeira vez que a ouvi e que tem igualmente emocionado muitos dos que a ouvem por aí. Contudo, nunca escondi de ninguém que minha preferida entre as nossas sempre foi O Mar em Mim, e por uma questão muito particular: ao passo que aquela fala de uma dor geral, que é a da perda de alguém, esta trata de um sentimento que possui apenas certo tipo de gente, os, como direi?, sem-mar.

Há uma canção lindíssima de Gilberto Gil e Caetano Veloso, gravada pelo primeiro em seu Unplugged MTV, chamada Beira-Mar, que tem alguns versos que, sem detrimento da canção, me doeram fundo: "Na terra em que o mar não bate/ não bate o meu coração". Pra mim, que sou um nordestino do sertão, filho de uma terra agreste, seca, banhada por um sol de rachar, que, coincidentemente acabou vindo parar em São Paulo, cidade que, apesar da garoa, não tem mar, ouvir aquela canção sempre foi extremamente doloroso. A canção não me desgostava, ao contrário, me encantava, de uma forma talvez masoquista, mas encantava. Contudo, durante anos pensei em compor algo que, mais do que lhe servir de resposta, mantivesse com ela um diálogo.

O empurrão que faltava quem me deu foi meu camarada Adolar Marin, que, certa vez, durante um papo, disse-me que tinha lido num jornal algum crítico criticar (naturalmente, já que este é o trabalho deles) os compositores paulistanos por falarem estes sempre de mar em suas canções. Segundo o crítico, já que em São Paulo não há mar, deveriam eles tratar de assuntos que lhes fossem mais próximos. Ora, convenhamos, o compositor pode escrever sobre o que quiser. E usar o ritmo que lhe apetecer em suas canções. Esse tipo de censura "geográfica" só poderia vir mesmo de quem não sabe compor.

Pronto! Aí estava o germe que faltava pra que eu finalmente me predispusesse a compor esta letra que ficara adormecida em mim durante anos. Tão logo a finalizei, pensei em Tavito pra musicá-la, principalmente, e obviamente, porque ele é mineiro. Em segundo lugar porque sabia que a letra continha uma verdade que era tão sua quanto minha. Só creio nunca lhe ter contado o porquê de tê-la composto. Bem, agora ele está sabendo. Na gravação a seguir o violão é de Tavito e a voz (brilhante), de outro mineiro, o excelente cantor Marcio Lott:

O MAR EM MIM

Minha cidade não tem mar

Mas eu tenho o mar, sim
Eu trago o mar em mim
No pranto salgado a me derramar

Na onda eterna do verbo amar
Eu tenho o mar em mim quando rio
Eu tenho o mar em mim como um rio
Que é mar até quando lá não está

Eu tenho um mar em que me embriago
E me devolve um mar de ressaca
Um mar nas veias da carne fraca
Em outra carne onde me fiz lago

O mar-sertão que há na minha dor
O vertical que cai com a garoa
O mar das mãos de quem me abençoa
O mar do qual eu sou inventor

Eu tenho o mar de um rosto que sua
Eu tenho o mar da praia de asfalto
Já que o mar é propriedade sua
Eu tenho o mar dos sonhos que assalto

Minha cidade não tem mar
Mas eu tenho o mar, sim
Eu trago o mar em mim

No cais de um peito onde fui me afogar

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2) SAGRADAS HORAS

Procurando pela gravação desta canção em meu e-mail, constatei, espantado, que ela é de 2008! Como o tempo passa! Fui atrás dela pegando carona no novo CD de Guilherme Rondon, que acaba de ser lançado. Confesso que sabê-la de 2008, inédita e filha única, causou-me uma tristeza danada e uma inveja daquelas de Alexandre Lemos e Zé Edu Camargo, que são parceiros constantes de Rondon. Sobretudo me deu uma angústia que só sentem aqueles que já repetiram de ano na escola ou não passaram em uma entrevista pra trabalho.

É que, admirador de longa data de Rondon, me esmerei muito na feitura dessa letra. Já falei dela aqui quando escrevi um texto sobre ele. Fui lá reler e tá tudo explicadinho. Então colo aqui o que escrevi lá: "certo dia, abri meu e-mail e lá estava uma mensagem dele desafiando-me a uma parceria. Rapaz, minha alegria não foi pouca, mas confesso que o medo também foi grande. Ignorei o bicho, disse-lhe sim, obviamente, e lá fui eu labutar. Escutei a melodia não poucas vezes, de repente, a mágica se deu e as palavras começaram a brotar como se fossem petróleo em solo propício. Na letra procurei resumi-lo a meus olhos. Quando, depois de terminada, passei-lhe um pente fino, meti-a dentro de uma e-carta e despachei-a pro Pantanal. Fiquei exultante com sua resposta. A letra havia sido aprovada. Mas foi aí que começou meu calvário... Dias depois ele me escreveu dizendo que não estava satisfeito com a melodia e resolvera fazer-lhe uns ajustes. Afrouxa daqui, aperta dacolá, a melodia recauchutada ficou pronta. E lá fui eu, de novo, aparar as arestas e fazer a velha letra caber na melodia nova. Aí ocorreu um problema: a mágica havia se empirulitado. Restou só a labuta. E haja labuta! Resumindo: trocamos e-mails creio que por mais de um mês até batermos o martelo. Depois disso ele ainda encasquetou que havia uma frase meio ambígua ("Eu gosto de um abraço, dar e receber"), mas acabou cedendo (sem ambiguidade)."

Continuo daqui: como eu ficasse muito espantado com todo aquele vai e vem de e-mails pra lapidar a letra, Rondon me tranquilizou dizendo que costumava trabalhar assim mesmo, no intuito de chegar ao melhor resultado possível. Pois bem, aparentemente chegamos. Só que, depois disso, ele nunca mais se animou a me mandar outra melodia. Não vou julgá-lo, afinal sei que não basta ser bom pra conseguir uma parceria consistente com alguém; sobretudo há que se ter química. E certas parcerias carecem do olho no olho, do tête-à-tête. Nesse quesito, morando ele no Pantanal e eu em Sampa, admito que essa relação fica um tanto comprometida. Independente disso, gosto do resultado da canção, apesar de ter falhado em meu intuito de fisgá-lo. Colo outro pedaço do texto anterior, no qual cometi uma inconfidência: "quando escrevi 'há de chegar a hora de eu conquistar você', estava enviando-lhe uma mensagem cifrada. Nas entrelinhas era um desabafo, meio como se eu dissesse: 'Até que enfim me mandou uma melodia!'. Mas isso fica entre nós, certo?". Como veem, eu não podia estar mais equivocado. Jogo-a, contudo, à cova dos leões (vai que me sai um Daniel):

SAGRADAS HORAS

Eu gosto de abraços, dar e receber
Prossigo nesse passo rumo a você
Quem sempre está com pressa não vê o luar

Se a hora não é essa,
Ela chegará


Tem vez que a gente chora
Tem hora pra chover
Dinheiro vai embora

E aquele amor, cadê?
Há de chegar a hora
De eu conquistar você
Há de chegar a hora
De eu conquistar você


Eu viro madrugadas com meu violão
As horas são sagradas, não retornarão
Eu gosto da demora, ver a flor brotar

O que hoje me devora
Me alimentará


Tem vez que a gente chora…

***

3) SAMBA DO AMOR ETERNO

Dia desses dei uma entrevista ao programa Olho Clínico, de Marta Nascimento (segundo ela, deve ir ao ar em 4/12), e falávamos sobre esse tema tão debatido que é poeta vs. letrista. E eu dizia que me sinto mais letrista que poeta, pois minha inspiração é musical. Aliás, não tenho travas, costumo compor de todas as formas possíveis, mas a que prefiro ainda é letrar melodia, que, apesar de mais trabalhosa, é também mais prazerosa. No entanto, como a maioria de meus parceiros me pede letra pra musicar, acostumei-me a usar de alguns artifícios. Às vezes pego alguma canção pronta (famosa ou não, não importa) e faço-lhe outra letra, que será enviada a algum desses parceiros em questão. Outras vezes, começo a cantarolar qualquer coisa pra sentir a métrica da letra e a pulsação das palavras. Em algumas ocasiões sinto que a melodia que cantarolo não é de todo ruim. Quando isso ocorre, aproveito-a.

Foi o que aconteceu com Samba do Amor Eterno. O verso "eu creio na eternidade do amor" já nasceu com melodia. E, na hora, percebi que tinha acertado. Animado, cheguei a compor a estrofe toda. Só que, como não conseguisse ir adiante, guardei-a, à espera de que a ocasião propícia pra terminá-la se me apresentasse. Nessa época dava os primeiros passos em direção a uma parceria com Kléber Albuquerque, então resolvi convidá-lo a me ajudar a terminá-la. Só que, em duas oportunidades, quando estava já prestes a lhe mostrar o fragmento de samba, algo me impedia. Timidez, não sei, ou falta de naturalidade na relação. Enfim, o tempo passou, a oportunidade não se repetiu, e acabei mostrando-a a outro parceiro, Mauricio Lyra. Só que Lyra usou duas notas de minha melodia e levou o samba pra outro caminho completamente distinto do que eu pensara. Curti o que ele fez, mas não praquela letra; além do mais, não queria jogar fora aquela melodia.

Então apareceu em casa Élio Camalle. Foi aí que percebi que não se pode fugir ao óbvio: a tal da química de que falei acima, em relação a Rondon. Tiro e queda! Em cinco minutos ele não só havia harmonizado o pedaço que eu compusera (mudando uma ou duas notas), como também começava a cantarolar algo parecido com uma parte B. Pra resumir a história, terminamo-la a quatro mãos, letra e música, e ficou exatamente do jeito que eu imaginara. Aliás, ficou melhor. Só não ficou melhor porque ele a sacou de seu novo CD, Receita, que foi gravado ao vivo, sob o pretexto de que a interpretação não ficou boa. Bem, mas isso é outra história. Deixemos que o amor fale por si (perdoem apenas a gravação, que saiu parecida com som de AM em radinho de pilha):

SAMBA DO AMOR ETERNO

Eu creio na eternidade do amor
Sim, eu creio
Por mais que dissabores nasçam
O amor troca de endereço, bate em outro coração
É que os amantes passam
amor, não

O amor que tu me deste
Era vidro e não quebrou
Nos lugares onde eu vou
Ele ainda é quem me veste
Ele ainda te reflete
No retrovisor

O amor que tu me tinhas
Era muito, transbordou
Era louco, desandou
Onde havia erva daninha
Veio assim como quem vinha
Transformando tudo em flor

***


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