1) LOS ABRAZOS ROTOS
Finalmente conheci Pedro Moreno! O mundo tem salvação! Nem tudo está perdido! Sim, sim, Pedro vale uma vida! Ouso dizer que, se ele estivesse em Sodoma, Deus não teria mandado destruir a cidade. É de encher o coração saber que existem pessoas (principalmente no ramo da música, tão competitivo e cheio de egos) tão do bem, completamente desprovidas de mau-caratismo. Em geral, tenho bom olho pra detectar gente boa, mas dessa vez tive 110 % de acerto.
Pedro chegou da Espanha trazendo na bagagem só boas energias. Ou melhor, trouxe-me também um delicioso vinho espanhol, um livro com a obra completa de Joaquín Sabina e, por último, mas não menos importante, seu belíssimo Aposta Mútua, com o qual tive o prazer e o privilégio de colaborar em duas faixas. Numa delas, como versionista: a maravilhosa Vendaval, dele com Sonekka, que me encantou a ponto de me induzir a fazer-lhe uma versão em espanhol só pra entrar, de um jeito ou de outro, na parceria.
Mas a hora é de falar da outra: Los Abrazos Rotos. Esta tem uma história interessante. Como já relatei aqui, ambos participávamos do Di-Versos (que existe ainda, mas perdeu temporariamente o fôlego), um grupo virtual que se propunha a divagar sobre poesia e letra de música. Ali nasceram muitas parcerias. E calhou que, certa vez, Pedro, diretamente de Madri, postou uns versos meio como se fossem prosa. Pra efeito ilustrativo, colo-os aqui:
"Apesar da distância dos continentes estar entre o teclado e os dedos, há um oceano no meio da gente. Eu na ilha a milhas do teu cotidiano. Tuas canções, versões, aversões, as cores dos teus vestidos; eu cego dos teus olhos, nu de tua presença. Tuas notícias chegam por meio de e-mails, e eu não me contenho, tenho anseios de abraços, dos traços da tua face nas linhas do meu rosto. Quero ver o sol brilhando no asfalto da tua rua, esperar o final da tarde para ver a noite banhar a via de lua. Ouvir teus CDs, falar sobre o último filme do Almodóvar, comer mandioca frita e um pão de queijo bem quentinho. Ficar nos teus braços até os passáros anunciarem a presença do novo dia. Ficar contigo assim e por fim lembrar que a internet é uma grande fantasia."
Tomei a liberdade de transformar o texto acima em algo que se parecesse com letra de canção. Até porque, na Di-Versos, a ideia era essa. O que valia era o exercício. Mas pra Pedro, um autoexilado, os singelos versos que lhe fiz significaram algo mais que simples exercício. Tanto que ele os musicou e nasceu daí uma pungente canção, que acabou, como já frisei, entrando em seu novíssimo Aposta Mútua. Abaixo, a letra, tal qual ficou:
LOS ABRAZOS ROTOS
Apesar da distância dos continentes
Estar entre o teclado e os dedos
De haver um oceano entre a gente
E um sol que acorda, aqui, mais cedo
Eu, na ilha a milhas da alforria,
Ouço tuas canções em mim intensas
Fecho os olhos, tua voz me acaricia
Mesmo eu estando nu de tua presença
Eu te leio por meio de e-mails
Nessas linhas percebo até teus traços
Não contenho o pranto e os anseios
De te ter aqui, dentro de um abraço
Quero o sol no asfalto da tua rua
Me sentar pra te ver passar a pé
Ver a noite banhar-te de outra lua
Que é a mesma daqui, mas que não é
Como no filme espanhol Los Abrazos Rotos,
Sinto algo partido a cada dia
Há na tela do micro a tua foto
Internet é uma grande fantasia…
***
Quando pensei em inaugurar esta coluna Trinca de Ouro, minha ideia era trazer as novidades discográficas que contassem com composições minhas. E há mesmo algumas na fila, esperando por sua vez de aparecerem por aqui. Só que um camarada mudou o rumo das coisas: Toquinho.
Esse sujeito tem um lugar todo especial em meu coração. Não vou me estender muito agora, pois pretendo escrever sobre ele em breve. Por ora basta dizer que estou terminando de ler sua biografia, Toquinho - 40 Anos de Música, lindamente escrita por seu irmão, João Carlos Pecci. Pois bem, não tenho vergonha de dizer que o livro me levou às lágrimas várias vezes. Uma das vezes foi justamente quando o autor explicou detalhadamente a história da canção Aquarela. Fechei o livro e fiquei pensando: será que tenho, entre minhas quase 600 canções, alguma Aquarela?
A mente me trouxe à memória, numa velocidade que me desconcertou, Arco-Íris. Esbocei um sorriso e comecei a cantarolá-la no pensamento (que desatina, mas não desafina). Foi por isso que pensei em escrever a respeito dela, que foi gravada já faz alguns anos. Afinal, ela tem uma bonita história, que merece ser contada.
Nem eu nem Élio Camalle somos exatamente do tipo de compositores que criam obras pra cima, daquelas que levantam o ânimo de quem as ouve (há exceções, claro). Somos pensadores, reflexivos, e esse tipo de gente, quando resolve compor, na maioria das vezes traz ao mundo canções que pretendem mais fazer pensar que acalentar. Contudo, deu-se que certa vez Camalle me mostrou uma melodia que, não lembro bem por que razão, ele compusera sem pensar na letra. Explico: Camalle é um compositor que é inspirado pela palavra. Assim, dificilmente cria melodias que não nasçam já com alguma ideia poética.
Mas dessa vez ocorreu que a tal melodia nasceu assim, acho que de um despretensioso laialaiá. Na hora percebi que estava diante de uma pérola e arranjei um jeito de gravá-la ali mesmo, naquele exato instante. Eram tempos difíceis (que, na real, não passaram ainda de todo), e Camalle vivia numa angústia danada por se perceber ateu e, ao mesmo tempo, sentir uma necessidade abissal de crer em algo. Pensei: taí o mote! E em pouquíssimo tempo fiz a letra, que, na verdade, foi feita como uma espécie de resposta minha a suas dúvidas.
Mostrei-lhe. Ele gostou, mas ela não o convenceu muito. Mas, como dizem, Deus escreve certo por linhas tortas. E calhou que outro grande parceiro, Adolar Marin, quando a ouviu, caiu de amores por ela. Chegou mesmo a querer mexer nuns versos no intuito de entrar na parceria, mas, como Camalle já tinha tentado o mesmo (em vão) quando lhe havíamos mostrado nossa (minha e de Adolar) Flor Deserta, resolveu ir à forra desta feita, negando-lhe o direito a entrar na parceria.
Adolar não se deu por vencido. Tomou a canção pra si e teve a grandeza de gravá-la em seu excepcional Atemporal. O que muito me encheu de orgulho e alegria, em primeiro lugar porque é a única canção que Adolar gravou até hoje que não é de sua autoria; em segundo lugar porque ele a salvou de um limbo onde fatalmente estaria até hoje, não fosse por sua intervenção. Detalhe: entre tantos parceiros que angariei nesses anos, Adolar talvez seja o que tem uma ligação mais forte com Deus, ou seja, o extremo oposto de Camalle. Assim, a canção (graças a Deus!) caiu em boas mãos. E em melhor voz:
ARCO-ÍRIS
Amanheça
Um novo dia na cabeça
Não esqueça
Que mesmo à noite existe o sol
Enquanto houver farol,
Vá navegando,
Até quando Deus quiser
Nunca chore
Ainda que a esperança core
Se é folclore
Para os ateus que existe um deus
Prossiga duvidando
Porém, brando,
Vez em quando é bom ter fé
E, se hoje o sol não nasceu,
Procure o seu
Que pode estar além-mar
(A esperar)
A pomba em voo é véu
De luz no céu
Terra fértil feito
Flor dentro do peito
Jeito de crescer
Vá, Noé, navegue
Evoé
***
Élio Camalle é um cara surpreendente! Em todos os sentidos. Sempre tira um ás da manga que nos desarma quando menos esperamos. Entre as surpresas com que nos presenteia está, inquestionavelmente, a escolha de repertórios de seus discos. Camalle, quando entra em estúdio, parece Roberto Carlos, reveste-se de uma aura de mistério que, crê, irá protegê-lo de mau-olhado, inveja e demais ziquiziras. E inclui nisso, às vezes, os próprios parceiros. Isso porque, entre outras coisas, odeia que palpitem na escolha de seu repertório. No meu caso, palpiteiro profissional que sou, isso causa uma angústia de dar nos nervos.
Foi o que aconteceu com seu mais recente Receita. Como foi, desde Antes e Depois do Fim do Mundo, o primeiro disco dele no qual não tive a menor participação na elaboração, restou-me a dor da espera. Durante o processo de gravação, encontramo-nos algumas vezes, mas, quando lhe perguntava, sempre desconversava. A única certeza que tinha era que iria entrar o Samba do Amor Eterno, uma de nossas parcerias mais recentes. Saber disso já me deixou, de certa forma, menos ansioso, pois, além de ser recente, é uma de nossas canções cujo resultado mais me agradou.
E olha que temos uma química infernal pra compor. Entre o ano passado e o começo deste ano, Kana viajou duas vezes, e foram inevitáveis as aparições de Camalle em minha casa, sempre em horas em que os justos estão sonhando. E, claro, um vinhozinho aqui, uma cachaça acolá, compor era um ato tão natural quanto respirar. Ou mais. Chegamos a compor três numa só noite. Noite esta que terminou às 8h da manhã!
E eis que chegou a tal da (tão esperada) Receita. Sim, havia duas canções minhas lá, mas o Samba do Amor Eterno ficou pra outra eternidade... Uma delas era uma regravação. Camalle, entre tantas novas canções esperando na fila, achou por bem regravar nossa Triste Figura, agora rebatizada de Dulcineia. A gravação ficou linda, pra cima, dançante. Mas, confesso, em meu coração não superou a pungência da gravação original. Já a outra...
Demência é o nome dela. E, surpresa das surpresas, é uma letra minha (antiiiiga, do tempo da pastinha verde) musicada por Daisy Cordeiro e Márcia Salomon. No texto que escrevi a respeito de Daisy expliquei um pouco como se dá seu modo de compor. Leiam lá. Acrescento a isso apenas que numa daquelas noites no apartamento de Camalle apareceu Márcia. Naquela época, depois que Camalle extraíra o que julgava bom naquela minha malfadada pastinha verde, deixara as, digamos, sobras, com Daisy. Por sorte, o que ele considerava sobras era pra Daisy um prato cheio. Sim, porque sua sensibilidade feminina enxergava preciosidades onde aquele só vira pedras brutas.
A verdade é que Daisy, com sua maravilhosa musicalidade, transformava tais pedras brutas em verdadeiras joias. Ela tinha o dom da lapidação. Exemplo foi o que aconteceu naquela noite. Márcia, além de ser uma grande cantora, tem especial talento quando se trata de letras passionais. Uma verdadeira blueswoman. Depois que a ouvi cantar Não Vale a Pena, dos irmãos Jean e Paulo Garfunkel, sinceramente não pude ouvi-la nunca mais com ninguém. Pois bem, nessa noite Daisy se enamorara da tal Demência. E, como tinha Márcia à mão, pediu a esta que improvisasse alguns acordes de blues ao violão, enquanto cantarolava uma melodia em cima da harmonia de Márcia.
E eu ali, assistindo a tudo, embasbacado como um babaca, vi aquelas duas fazerem aquela pobre letra (que sozinha não passava de versos vãos) virar, dentro da canção, uma coisa maravilhosa. Daí o tempo passou, ninguém a gravou, e, vez em quando, Camalle me perguntava dela. Chegou mesmo a tirá-la ao violão. Um dia me pediu permissão pra mexer nuns versos. Quando autorizei, soube que a pergunta era só pra sondar o caminho, pois ele já tinha mexido neles. Contudo, quando mos (ui!) cantou, foi impossível não lhe tirar o chapéu. As alterações, poucas, pontuais, conseguiram melhorá-la ainda mais.
Agora lá estava ela no Receita. E ele nem colocou seu nome na coautoria (talvez por não ter colocado o meu numa outra canção do disco, sua, na qual dei uma força num ou noutro verso). Assim somos nós. Assim é Camalle. E assim ficou Demência:
DEMÊNCIA
Daisy Cordeiro - Márcia Salomon - Léo Nogueira
Ainda sinto o gosto
Do sal do seu corpo suado
Recordo o prazer estampado
Nas linhas dum atônito rosto
Ainda sinto o cheiro
Do mel meu e seu entre os dedos
Mistura de amores e medos
Dois meios formando um inteiro
Em minha mente eu faço (caço)
O êxtase, efiemero, eterno
O vão entre o céu e o inferno
As unhas, cadeado do abraço
Demente, sua presença
Reinvento e multiplico
Quanto mais penso, mais doido fico
E creio: nosso crime compensa
***
***
cara!
ResponderExcluiradoro essa canção tua com o Pedrim... escuto por horas a fio, horas a fio... aliás esse disco do Pedro é muito bom, só preciso sentar um dia para escrever... fiquei feliz com tua impressão do Pedro, foi exatamente assim que fiquei, desconcertado diante de algo muito puro, nobreza nos gestos, pureza no olhar... Estou ouvindo aqui Los abraços rotos pensando em vocês, em abraçá-los, abraçãooooooooooooo. Veleiro
Trinca Maravilhosa mesmo...certo é que ainda preciso conhecer o Pedro, né? Depois de desfiar tanto elogio, fiquei curiosa pra encontrar pessoa tão bacana! Ontem vi uma música sua no programa do Tio Ronnie, "Avelã"...até o Tio Ronnie se rendeu à sua escrita. Vc viu que ele elogiou? Fiquei toda orgulhosa! beijo e saudades
ResponderExcluirDaisy
Velerim:
ResponderExcluirBom que você curtiu. E o Pedro é isso mesmo, a nobreza e a pureza em pessoa. Nossos abraços nunca serão rotos!
Daisoca:
Pena que o Pedro esteve aqui por pouco tempo, adoraria apresentá-lo a você, mas vai ficar pro ano que vem.
Nossa, que novidade boa essa do Ronnie! Fiquei feliz à beça!
Beijão do
Léo.