Foi na casa da família Cerpa, uma gente da melhor cepa e altamente envolvida com música, certa noite, numa das tantas festas que eles davam (dão) por lá, sempre regada a muita cerveja, muita música e grande variedade de comes, que conheci um dos camaradas mais inteligentes com quem já tive o prazer de travar um bom papo. Um galego (como dizemos os nordestinos) dos pampas, mais especificamente, como poderei dizer?, um porto-alegrense de Caxias do Sul (ou seria o contrário?), de nome pomposo: Vinicius Todeschini.
1) Santo Ofício (Vinicius Todeschini)
Ele parecia ser um falso loiro, pois, além da inteligência (ai, que preconceito!), tinha os olhos castanho-escuros (obs.: ele me corrigiu - são verdes - mas quase castanhos). Mas era loiro mesmo. Pois bem, naquela primeira noite a bebida nos destravou a língua (não que precisássemos dela pra isso), além da boa companhia: se não me falha a memória lá estavam Adolar Marin, Élio Camalle, Ricardo Soares (outro gaúcho, porém este bem diferente daquele), Sonekka, os rapazes do Rossa Nova... Esses são os que lembro, mas havia outros. Contudo, não sei bem por qual motivo, Vinicius acabou engatando um longo papo justamente comigo.
Trocamos contato, ele visitou minha casa, mostrou suas composições, e então fiquei impressionado mais ainda, pois tudo aquilo que Vinicius era conversando estava explícito em suas canções, verdadeiros tratados de sociologia e filosofia cantados. Contudo, cheguei a letrar três melodias suas (acho que foram três) que não ficaram de todo ruins. Se não possuíam sua verve, tinham, pelo menos, o frescor da parceria nova.
Pra vocês terem uma ideia, acostumamo-nos a sair pra tomar umas e outras e conversar acerca da vida, da música e do que mais nos desse na telha, e não poucas vezes me flagrei com a maior cara de paisagem por não conhecer um terço dos nomes que ele citava no meio do papo com a maior facilidade (e sem nenhuma afetação), como se se tratassem de pessoas que qualquer José da barraquinha de pipoca conhecesse. Tenho que admitir que foram papos que me acrescentaram muito; pena eu não ter tido a ideia de escrever alguns daqueles nomes pra pesquisar a respeito depois. Assim que muitos se perderam.
Ah, Vinicius era (é) também psicólogo. Tinha mesmo um consultório em Guarulhos, onde morava com a então esposa. Mas isso não o impediu de gravar dois CDs, aliás, acho até que ajudou, pois, sem citar nomes de pacientes, o divã é lugar onde costumam deitar personagens de histórias altamente musicáveis. Na pior das hipóteses, o dr. Todeschini teve o privilégio de, em tendo um contato maior com a alma humana (principalmente a brasileira), descrever com mais conhecimento de causa nossa sociedade em seus muitos sambas e outras bossas.
2) O Guardador de Rebanhos (Vinicius Todeschini)
Mas Vinicius nunca me enganou. Sempre reparei em seu olhar um quê de nomadismo. Afinal, além de ter viajado a América do Sul com sua guitarra jazzista (ou jazzística?) a tiracolo, ainda achou tempo pra morar aproximadamente um ano em Buenos Aires. Contudo, os aires tango-roqueiros dos hermanos não corromperam sua harmonia de jazzista bossa-novista. Por falar nisso, Vinicius, apesar de grande compositor, é da turma que torce o nariz pra praticamente tudo o que apareceu na música brasileira dos anos 80 pra cá. Em nossos papos sempre notei certo ressentimento por parte dele em relação ao legado deixado pelo rock nacional. Eu, que cresci com o chamado Brock, discordava, mas inutilmente.
No parágrafo anterior comecei dizendo, a respeito de seu nomadismo, que Vinicius nunca me enganou, mas minha verborragia me levou a dissertar sobre outro assunto. Voltando, comecei a perceber em nossos encontros certa insatisfação dele em relação ao panorama musical paulistano. Ele criticava, mas eu não via nele a humildade de dar o primeiro passo. Não sei se por timidez ou orgulho, ele, embora frequentasse o Caiubi, não mantinha laços de amizade (muito menos de parceria) com outros artistas, excetuando a mim. Um belo dia, após uma briga conjugal, pôs as malas no carro e se mandou pra Caxias. Apenas me deu um rápido tchau... e "bença"!
Pouco tempo depois a mulher o chamou de volta e lá veio ele de novo. Mas as coisas estavam ficando cada vez piores. Não vou entrar em detalhes de sua vida privada, afinal este é um espaço de música, não de fofoca. Apenas a título de interesse, digamos, biográfico, acrescento que a segunda separação não deixou margem pra volta. Vinicius ainda tentou se estabelecer por aqui, mas sua falta de amigos não ajudou. Além do mais, como seu consultório (e, consequentemente, seus pacientes) ficava em Guarulhos, a mudança pra outro bairro (e cidade, visto que ele viria pra São Paulo) não era algo exatamente fácil em termos profissionais.
E resultou que Vinicius voltou de vez pra Caxias. Fiquei triste à beça, pois, apesar das diferenças, era claro que houvera entre nós uma afinidade que vinha resultando numa parceria à qual não faltava química. Mas, se ele era um presidente, digo, um compositor bossa nova, sua volta pro sul foi digna de um Axl Rose, pois, enfurecido com o fim do casamento, com a cidade e com os amigos (que não tinha), Vinicius nem se deu ao trabalho de tirar a lama paulistana das botas. Jogou-as logo fora. E, com elas, um passado de vários anos na cidade de oficinas de florestas e deuses da chuva. E, pelo silêncio que se fez de lá pra cá, parece-me que no mesmo cesto de lixo onde repousam as tais botas também deixou, inadvertidamente, nossa amizade. Pena. Espero, do fundo do coração, que trocar a Terra da Garoa pela estética do frio tenha feito bem a seu coração e deixado sua alma mais leve.
LÉO, FIQUEI EMOCIONADO COM A SUA ESCRITA, NEM SEI MEREÇO TAMANHA CONSIDERAÇÃO. FIQUEI MAGOADO SIM, MAS A MÁGOA, NO MEU CASO, ACABA POR SE TRANSFORMAR EM ALGO CRIATIVO, EMBORA O PROCESSO SEJA PROPORCIONAL AO TAMANHO DELA, OU SEJA, AS VEZES DEMORA. A MINHA VIDA EM SÃO PAULO FOI REALMENTE CONTURBADA, MAS VOCÊ SEM DÚVIDA FOI UMA RELAÇÃO QUE MARCOU. E AGORA AO LER ESTE BELO TEXTO COM A SUA VERVE QUALIFICADA, PERCEBO QUE VALEU MUITO MESMO. UM FORTE ABRAÇO E OBRIGADO POR TUDO. A PROPÓSITO, NÃO SEI SE COINCIDÊNCIA, OU NÃO, EU O LI HOJE, QUANDO COMPLETO CINQUENTA ANOS. ABRAÇO DE IRMÃO-AMIGO-CAMARADA.
ResponderExcluirPS: SEGUE UM PRECIOSISMO MEU - MEUS OLHOS NÃO SÃO CASTANHO-ESCUROS SÃO VERDES, RS, RS, RS...
Salve, green eyes! Já adicionei um acréscimo ao texto!
ResponderExcluirA escolha do 11 do 11 do 11 não foi mera coincidência. Parabéns pelo cinquentenário! Dentro de vinte dias também terei meu "quarentenário". Bom saber que você está "por perto".
Feliz aniversário!
Abração do
Léo.
É MEU IRMÃO A VIDA PASSA, MAS DE TUDO QUE PASSA ACABA POR NOS REFINAR OS SENTIDOS E ALMA. EU PASSEI POR SOFRIMENTOS EM MINHA VIDA QUE ACABARAM POR ATINGIR O SEU PONTO NODAL, OU SEJA, AONDE EU DEVO MUDAR E MUDAR, MEU AMIGO, NÃO É BRINCADEIRA NÃO. QUEM SABE VOCÊ FAZ UMA LETRA SOBRE ISTO E ME MANDA QUE EU COLOCO A MÚSICA. ABRAÇO FORTE!!!
ResponderExcluirMaravilha, queridão! Bora retomar essa parceria!
ResponderExcluirAbração do
Léo.