E foi então que o rei de um país longínquo chamado Utopia, sentindo-se cansado, derrotado e com o coração cheio de amargura por não encontrar uma solução pra crise que assolava seu reino, que já havia décadas sofria com miséria, fome, desemprego, analfabetismo, criminalidade e mais uma série de problemas aparentemente insolúveis, dispensou os sábios que o auxiliavam e ordenou que chamassem a sua presença o bobo da corte. Quem sabe este teria algo a dizer que valesse a pena ser ouvido, visto que as ideias dos sábios, quando postas em prática, revelavam-se ineficientes. Após mais de duas horas de reunião a portas fechadas, o bobo saiu, de cabeça erguida e com um maquiavélico sorriso nos lábios.
Na manhã seguinte o rei resolveu enlouquecer. Sim, num piscar de olhos. Da noite pro dia lá estava o rei, louco de pedra. E o primeiro decreto que baixou foi sobretaxar os bilionários do reino. Houve falatório, gritos, revolta, mas, como os bilionários eram minoria, e como todos sabem que não se deve contrariar um louco, tiveram que acatar.
E este foi só o primeiro dos absurdos cometidos pelo rei. Tendo em caixa enorme quantidade de dinheiro arrecadada dos cofres dos bilionários, baixou mais um decreto, este tornando a educação gratuita e obrigatória até a conclusão do ensino superior. Aumentou consideravelmente o salário de professores, diretores e demais trabalhadores do ramo da educação e exigiu destes, em troca, que, sob pena de terem seus direitos cassados, mantivessem-se atualizados a respeito das novidades de sua área. Os donos das escolas particulares, que havia tempos descobriram ser educação um baita negócio, vociferaram, ameaçaram, mas, como o rei lhes ia pagar um bom salário pra que se mantivessem à frente da administração de suas escolas (agora tornadas públicas), resolveram aceitar a proposta, sabedores de que quem mexe com louco sempre acaba perdendo.
E o rei não parou por aí. Da mesma forma que havia feito com a educação, agora fazia o mesmo com a saúde, acabando com convênios e hospitais particulares. Só que dessa vez a ira de alguns foi maior que o temor à loucura do rei. Por isso, o ensandecido monarca se viu obrigado, a contragosto, a efetuar algumas prisões, pra que servissem de exemplo a outros possíveis descontentes. Em contrapartida, aumentou o salário de toda a classe médica, estendendo a estes as mesmas exigências feitas aos docentes.
A situação de Utopia melhorava, mas ainda havia muito a fazer, então resolveu o rei sobretaxar os milionários. Já prevendo a ira destes, escreveu um longo texto explicando seus motivos. Todos incoerentes, obviamente. Argumentava o rei, entre outras coisas, que era impossível erradicar a fome e a miséria se tantos não tinham nada e tão poucos tinham muito mais que o suficiente. Se aqueles que tanto tinham não tivessem o espírito elevado a ponto de abrir mão de seus excessos, a criminalidade não iria diminuir, ao contrário, iria se propagar cada vez mais, e estes que se achavam tão inatingíveis iriam ter que conviver com o medo diário, medo de roubo, sequestro e outros termos menos nomináveis. O texto foi afixado em postes, muros, praças... Além de ser enviado por e-mail a todos os cidadãos cadastrados pelo recenseamento. É, a loucura do rei estava chegando a níveis insuportáveis!
Durante meses o rei se negava a receber quem quer que fosse, exceção feita ao bobo, que continuava a visitá-lo, e, diga-se de passagem, cada vez mais amiúde. Viúvo, o rei recebia muitas propostas de casamento, pra que reinos se unissem, mas ele parecia interessado apenas nas questões de caráter nacional. E eis que o rei, apesar de louco (ou por isso mesmo), conquistou de vez a simpatia do povo, quando diminuiu a carga horária de trabalho pra seis horas diárias numa semana de cinco dias. Segundo o rei, com tanto desemprego, era injusto que outros trabalhassem demais. Que essas duas horas que sobravam então à população fossem gastas em cultura ou lazer. Quem fosse obrigado pelo patrão a trabalhar um minuto a mais por dia podia denunciá-lo. A situação chegou então a níveis de insatisfação intoleráveis, por parte dos patrões, claro. E estes se viram obrigados a implorar por uma audiência com o rei.
Enfim, o rei os recebeu. Mas com o bobo a seu lado. Após uma tarde inteira ouvindo as reclamações dos patrões, o rei prometeu que faria algo a respeito e os dispensou. O bobo ficou com ele mais alguns minutos. No dia seguinte, o rei baixou um decreto que rezava que a partir daquela data todos os presos das centenas de cadeias que existiam espalhadas pelo reino passariam a aprender um ofício e teriam liberdade de sair de suas celas pra efetuar algum tipo de trabalho (por um período em nenhuma hipótese superior a seis horas diárias) nos mais variados estabelecimentos do reino, como uma maneira de suprir as exigências feitas pelos patrões na já citada reunião. Claro que os presos tinham que receber um salário, e este ficaria por conta dos empregadores, assim como o custeio do aprendizado do ofício pelo preso. Quem já tivesse uma profissão seria imediatamente aproveitado onde esta fosse necessária.
Aos presos foi uma excelente oportunidade, pois voltavam a ser inseridos na sociedade ainda durante o período de cumprimento de sua pena, e, além disso, aprendendo um ofício. Claro que, em caso de fuga e recaptura, o preso seria sumariamente executado. Afinal, o rei era louco, mas não era bobo (quer dizer, vocês me entenderam). Tanto que pôs em prática a tão falada reforma agrária. Afinal, havia muitos campos que não produziam por negligência de seus proprietários. Da mesma forma a cultura melhorou muito, pois todas as crianças passaram a aprender a tocar pelo menos um instrumento musical. Também as bibliotecas se espalharam pelo reino, praticamente uma por bairro. Da mesma forma, passou-se a investir muito no turismo e foram contratados muitos jovens estagiários, que seriam preparados a atuar na área. O rei assim divulgava aos estrangeiros as belezas de Utopia. Também os investimentos em teatro e cinema aumentaram consideravelmente, graças à sobretaxa.
Em relação às religiões, o rei foi enfático: o Estado passava a ser laico, não se submetendo mais a nenhuma religião. Contudo, estas podiam continuar existindo, mas seria feita por parte de funcionários do rei uma varredura por todos os templos e igrejas, uma espécie de CPI, pra averiguar a lisura das instituições. Além disso, ficava terminantemente proibida a partir daquela data a criação de novas religiões, visto que o rei percebera que, da mesma forma que ocorrera com as escolas particulares, a religião também se tornara um negócio rentável. Aos descontentes o rei ordenou que fossem reclamar com Deus.
Foi quando apareceu na história personagem que até então se mantivera à margem dos acontecimentos: o filho único do rei. Corrigindo, à margem não é o termo apropriado, visto que ele já viesse tendo uma ação de bastidores digna de nota. Por meio de conchavos, promessas, bajulações, ameaças, chantagens e demais meios de persuasão, o príncipe conquistara aliados importantíssimos em defesa de sua causa. Sim, porque corria o boato de que o rei pretendia convocar eleições pra presidente dentro de poucos anos. A monarquia daria lugar à democracia. E isso era algo que o príncipe não admitiria em hipótese alguma, visto ser ele, com isso, o maior prejudicado.
Aconteceu durante o Carnaval. Enquanto o povo, feliz da vida, invadia ruas e passarelas com suas multicoloridas fantasias, homens encapuçados e fortemente armados invadiram o palácio, renderam os soldados, assassinaram o rei e prenderam o bobo, que, sob tortura, confessou ter sido ele o mentor intelectual das mudanças por que o reino vinha passando nos últimos tempos. Na quarta-feira de cinzas o povo, ainda inebriado após tanta estrepolia, soube que o rei havia sido assassinado e que o autor de tão cruel crime fora... o bobo. Rei morto, rei posto. O príncipe foi coroado rei, e seu primeiro ato foi condenar o bobo à morte por execução, sendo esta televisionada pra todo o reino, pra que ninguém jamais se esquecesse de que o bobo fora o pior e mais cruel vilão de toda a história de Utopia.
No sábado seguinte, antes da apuração dos votos das escolas de samba, milhões de pessoas viram, na hora do almoço, via satélite, a execução do bobo, que, ironicamente, mantinha um maquiavélico sorriso nos lábios, mesmo após a rajada de balas que o fulminou. Daquele dia em diante Utopia viveria dias bem distintos dos que vivera nos últimos meses, mas essa é outra história.
Sensacional, Léo!!!
ResponderExcluirMerece um samba enredo... (vamos??)
Parabénsss!!
Contrata um bobo desses aí pro Brasil, mas num mata ele não hahahhaa!!! Legal...abraços
ResponderExcluirDenis Martino
Cava, sumidão! "E por falar em saudade, onde anda você?". Bora lá fazer este samba!
ResponderExcluirBeijão do
Léo.
Salve, Denis!
ResponderExcluirSabe que não era uma má ideia? Vou mandar um e-mail pra Dilma. Hahaha!!!
Abração do
Léo.
No final, um sorisso maquiavelico no rosto... O que teria o bobo deixado de presente para esse povo eufórico, que enganadados com vendas nos olhos não conseguiram decifrar? Sei não... Será que ainda há uma esperança?
ResponderExcluirMarta:
ResponderExcluirComo dizem, a esperança é a última que morre. Em geral os bobos morrem antes. Principalmente se forem metidos a espertos. Espero apenas que a "Utopia" do lado de cá chegue um dia se acerte.
Beijos do
Léo.
ESPETACULAR COMO SEMPRE!
ResponderExcluirAbraços
Ricardim Moreira
Salve, Moreirinha!
ResponderExcluirGentil e exagerado como sempre. Hehe!
Abração do
Léo.
Gostei demais. Queremos Utopia II - O plano B do Bobo :)
ResponderExcluirHahaha!
ExcluirEra uma vez um bobo, Anja! Sobraram só os bobos pra contar a história! E quem souber que conte outra!
Adorei, Léo! Pena que utopia voltou a ser realidade a partir do assassinato do bobo da corte... bj, da lia.
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