quarta-feira, 25 de março de 2020

Eu Não Vi, Mas me Contaram...: 10) Os gambés e o meliante

Ilustração gentilmente feita — a pedido meu — pelo
amigo Francisco Danielnão por acaso o responsável
pela capa de meu novíssimo A confraria dos mascarados


Capitão, a situação que se apresentou foi a seguinte: tava eu de plantão com o cabo Inocêncio na região em que se desenrolava uma sem-vergonhice, que eles também chamam de Carnaval. Olha, capitão, eu podia tar em casa co'a minha família, eu podia tar no templo orando ou até podia mesmo tar tomando uma branquinha — que ninguém é de ferro, né, capitão? —, mas não, fui logo desiguinado pra dar plantão ali, naquele antro de perdição. Fazer o quê, né, capitão?, o pobre tem que fazer o que desiguinam pra gente. Foi aí que um X9 que presta uns serviços aí pra gente deu a letra de que o meliante em questão podia tar levando na "bagagem" uma farinha ou uns fininhos, o senhor tá me entendendo? Isso, uns entorpecentes. Daí que eu e o cabo Inocêncio, a gente continuou no nosso posto e esperamos a apresentação do sujeito ter seu término. É, sim senhor. Que ele tava num palco próximo fazendo uma apresentação musical. E a situação foi facilitada porque o elemento se viu necessitado de ir a um banheiro químico, o senhor tá me entendendo?, e foi então que eu e o cabo Inocêncio, a gente abordou o mesmo. Cheguei na frente e pedi documentos, e não é que o  descarado perguntou o porquê da gente tar pedindo os documentos dele? O molambento — é, capitão, o indivíduo devia achar que tava bem vestido, mas pra nós aquilo não passava de molambo —, continuando, capitão, o molambo entrou numas de elevar o tom de voz e veio pra cima de mim e do cabo Inocêncio falando grosso, como se fosse um doutor, tá entendendo, capitão? E ainda por cima veio chei' das razão e disse que tava trabalhando, como se aquilo que ele fazia pudesse ser chamado de trabalho. Foi aí que eu olhei pro cabo Inocêncio e o cabo Inocêncio olhou pra mim, e foi desse jeito, capitão, sem carecer de uma palavra, que a gente entendeu que a situação que se configurava podia ser enquadrada como desacato à autoridade. Aí, o jeito foi eu sacar do meu instrumento de trabalho e mandar o vagabundo ter a gentileza de pôr as mãos na cabeça. Aí a coisa mudou de figura; quem começou falando grosso terminou falando fino, e quando eu e o cabo Inocêncio, quando a gente se deu conta, o vagabundo tava entrando em situação de lágrimas. E desandou a choramingar que a gente tava fazendo tempestade em copo-d’água e coisa e tal, falou que tinha três bocas pra alimentar e etc., e ainda por cima, capitão, achou que eu era igual a ele, perguntando se eu não me compadecia dele, eu, que era pretinho que nem ele. Vê só, capitão, se tem cabimento vagabundo xingar autoridade de pretinho. Foi aí que eu confesso pro senhor que saí do meu estado de razão e mandei ele ajoelhar. Aí, capitão, o vagabundo se borrou todo, disse que não era crime tocar lá suas musiquinhas, e olha, capitão, não é porque eu sou um sujeito simples que não sei perceber quando me deparo com um comunista. As tais musiquinhas, capitão, eu tava lá no local onde ocorreu o ocorrido e eu ouvi, o senhor  tá me entendendo? Essas musiquinhas aí queriam mais era causar tumulto, botar a massa contra a ordem. Fazer arruaça, sabe como é, capitão? Coisa de comunista mesmo. Foi aí que eu reconheço que me exaltei um pouco, sabe, capitão?, que a gente não tem sangue de barata, o senhor tá me entendendo? E foi então que ensinei pro sujeito a sola das minhas botas. Só que aí eu vi que o cabo Inocêncio me deu uma olhada meio assim de recriminação, sabe? Meio que balançou a cabeça negativamente. Que o cabo Inocêncio, ele ainda tem pouco tempo no ofício, tá cheirando a almoxarifado ainda, e além do mais ele é meio moreninho, o senhor tá me entendendo, né, capitão? De maneira que ele tem o coração mole. É meio como nesses filmes policiais americanos que tem o policial bonzinho e o policial mau, o senhor tá me entendendo, né, capitão? Mas eu nem dei trela, continuei com o meu interrogatório. Afinal, o X9 tinha garantido que o sujeito era avião. Foi então que eu perguntei pra ele se ele já tinha puxado cana, no que o elemento disse "o que é isso, doutor? Eu sou trabalhador" e tal. Daí então foi que eu perguntei onde é que tava o bagulho, os entorpecentes. E sabe o que ele disse, capitão? "Não tem bagulho nenhum aqui, não, doutor. Eu sou trabalhador." Vê só como quando a gente impõe respeito, capitão, as coisas se configuram de uma forma diferente. Num minuto, eu era um pretinho, no minuto subsequente eu já passava a ser promovido a doutor. Juro por Deus, capitão, pode perguntar pro cabo Inocêncio; ele me chamou de doutor. Daí, pra não cair na lábia do sujeito — que eu percebi que ele tava querendo é me enrolar —, eu falei que "Não tem nenhum doutor aqui, não, cidadão, eu sou um oficial da polícia. Mas num desconversa não! Eu quero saber é onde tá a muamba. E, se o cidadão não conseguir encontrar, eu mesmo garanto que, revistando essa sua mochila, eu posso encontrar". Aí, capitão, ele começou a soluçar e a repetir que tava limpo; falou assim mesmo, capitão, que tava limpo. E, pra ser sincero, capitão, até o presente momento eu tava apenas apertando o elemento, mas reconheço que tinha lá um pinguinho de dúvida; mas, quando ele disse que tava limpo, foi aí que eu vi que ele tava era sujo. O senhor tá me entendendo, capitão? Quando o camarada usa um linguajar desses só pode mesmo é tar sujo, né não? E se tem uma coisa que eu aprendi com todos esses anos servindo ao estado foi a conhecer de cara quando um sujeito tem ficha. Tá me entendendo, capitão? Vê só se o senhor concorda comigo: se o sujeito não deve, ele não teme. É ou não é? Pra mim, chorou já configura atestado de culpabilidade. Foi aí que eu ordenei pro cabo Inocêncio manter o meliante sob a mira, que eu mesmo ia efetuar a busca na mochila do mesmo. Aí, capitão, foi que ele se desesperou e disse "Não faz uma coisa dessas, não, seu doutor! Eu sou pai de família" e tal, o senhor tá me entendendo, capitão? Foi aí que eu deixei um pouco a razão de lado, falei logo pra calar a boca e mandei o bizu: que ele que decidia se queria ir pra delegacia ou se mudar de vez pra cidade dos pé-junto. Olha, capitão, eu tô levando esse papo com o senhor aqui na base da informalidade, o senhor tá me entendendo? O senhor sabe que eu não tinha a intenção de fazer nada fora do regulamento com aquele elemento, só queria dar um susto no mesmo que era pra ver se ele poupava o nosso tempo e deixava logo a gente confiscar a mercadoria, o senhor tá me entendendo? Foi aí, capitão, que chegaram duas gringas, e olha pro senhor ver: as duas eram brancas, mas usavam cabelo de preto, o senhor tá me entendendo? Meio assim que nem os jamaicanos. Parecia mais um ninho de ratos do que cabelo. E olha, capitão, pelo jeito como vinham abraçadas, eu acho que eram um casal, se é que o senhor me entende; gostavam da mesma fruta que eu gosto, sabe como é? E aquelas roupas, capitão, uma pouca vergonha! Além de esmolambadas, cheias de decotes! Uma perdição! Também, ali a gente havia de esperar o quê, né, capitão? Moças de família era que não. Elas pareciam mesmo eram umas hippies, vai ver eram até daquele tal de Green Peace... E foi então que o cabo Inocêncio, que até o presente momento se encontrava em estado de mudez, achou por bem intervir, de maneira que abriu a boca pela primeira vez e, com todo o respeito que ele tinha pela minha hierarquia, ele falou que se não era melhor a gente liberar o suspeito. Mas falou assim meio pedindo, o senhor tá me entendendo? E, capitão, dadas as circunstâncias, e como esse povo comunista adora pôr a culpa na polícia, o jeito foi relevar. O que eu queria mesmo não era nem prender o elemento em flagrante delito, eu tava mais era com vontade de... Deixa pra lá, capitão, que eu já tô é variando... Daí, como não tinha outro jeito, eu impostei a voz, joguei a mochila no vagabundo e gritei "Se manda, malandro! Dessa vez ficou de barato pra você, mas da próxima eu garanto que a sua sorte não vai se repetir!". De maneira que o mesmo saiu correndo sem olhar pra trás. E batendo os calcanhar na bunda. Se tinha um culpado no mundo, ali ia um! Mas também, capitão, a verdade é que durante a apreensão não foi encontrado nada na mochila do indivíduo suspeitoso que pudesse depor contra a sua pessoa. E o senhor sabe bem que eu não sou desses de plantar provas. Longe de mim! O que eu pude constatar foi que ele podia até ser inocente, mas que não parecia, ah isso não parecia mesmo! Mas o pior, capitão, foi que depois disso o cabo Inocêncio pediu transferência pra outra unidade. Eu acho, cá pra nós, doutor, que esse aí num dura muito na polícia não, viu? Sempre tive cá pra mim que esse tinha um pezinho no comunismo. Ele nunca confirmou, mas parece que o pai era um desses rebeldes que na época da revolução tomaram um corretivo dos nossos e sumiram no mundo, nunca mais foram vistos. Se é que o senhor me entende, né, capitão? Ah, se não fossem aquelas sapatas...


***

O conto acima é livremente inspirado em fatos reais. Queria de antemão dizer que tenho familiares, amigos e parceiros que são, digamos, homens da lei e sei perfeitamente que há nesse ofício muitos profissionais honestos e que merecem todo o nosso respeito. Entretanto, nós sabemos que há também nesse meio — como, aliás, os há em todos — muitas laranjas podres. Portanto, peço aos que venham a se sentir ofendidos que não levem pro lado pessoal. Quem pode — e deve — levar pro lado pessoal é meu amigo Élio Camalle, que, mais do que ter me contado o caso, foi dele protagonista. E não na pele dos policiais; o senhor me entende, né, capitão?


***

PS: O mesmo Élio Camalle, que se viu vítima da história acima, compôs esta belíssima canção há alguns milênios já. Pra ilustrar o ocorrido, compartilho com vocês um momento especial de um show (ím)par dele com o não menos genial Adolar Marin, na Sala Adoniran Barbosa, do (meu tão distante e paulistano) CCSP, dia (ano) desses. Né, capitão?


***

PS2: Encontrei no fb o depoimento do próprio Camalle logo após o ocorrido. Deixo aqui pra quem quiser saber a história real. O link é este.

***



4 comentários:

  1. Respostas
    1. Quem dera fosse apenas surreal, né, caro Escobar?

      Abração,
      レオ。

      Excluir
  2. Brasil escravocrata e polícia conivente. Eu sempre tive, com razão, medo da polícia.
    Valeu pelo texto real, Leozito!
    abraço pra você e meu afeto solidário para o Élio.
    Aliás, que bacana o vídeo de nosso show AÉ.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, Dodô. Ainda temos muito o que caminhar. Caminhemos, pois, com nossas armas, que são bem outras.

      Abração,
      レオ。

      Excluir