quarta-feira, 30 de maio de 2012

Crônicas Desclassificadas: 42) Parabéns pra mim - 2ª e última arte

2ª e última parte:

(leia a 1ª parte aqui)

Eles moravam de aluguel num terreno onde havia mais duas casas. O portão era de ferro e estava aberto, então fui logo entrando. A casa deles era a segunda. Bati na porta e a Suzana abriu.

"Pois não? O que a senhora deseja?" (mais uma que me chamava de senhora)

"Suzana, sou eu, a Roseli", falei, e fui logo entrando. Suzana era uma garota branca como o leite, de cabelos castanhos, olhos negros e penetrantes, corpo bem delineado, embora um pouco magra. Ela dividia o apartamento comigo, até que conheceu o Marcos e resolveu paquerá-lo às escondidas. Continuei: "Onde está o cachorro do Marcos?"

"Senhora (mais uma vez), mais respeito com meu marido! Eu nem te conheço, não admito que..."

"Marido uma pinoia, eu sei muito bem que vocês são só amasiados!", falei, já sentando no sofá, que, diga-se de passagem, já estava caindo aos pedaços.

"O que a senhora deseja, por favor? Se for alguma espécie de brincadeira..."

"Peraí que eu vou te mostrar uma coisa", falei e abri a bolsa, onde eu sabia ter guardado em algum lugar uma foto do Marcos abraçado a mim. Só faltava ter sumido também. Suei frio enquanto procurava, até que, por fim, encontrei. Entreguei a foto à Suzana, que me olhou com uma cara de mulher traída ao perceber a traição. Ela olhou a foto por alguns instantes e me perguntou:

"O que significa isso?"

"Significa isso mesmo que você tá vendo."

"Mas aqui somos eu e meu marido! Quem te deu essa foto?"

Arranquei a foto da mão dela e senti o sangue fugir das minhas faces ao ver que quem estava abraçada ao Marcos era Suzana. Nesse momento ele apareceu na sala, com os braços erguidos num espreguiçamento. Tinha acabado de acordar com o barulho. Estava ainda mais bonito que antes, com os cabelos loiros desarranjados pelo sono e o peito nu e musculoso à mostra. Isso sem falar em seus lindos olhos azuis, mais brilhantes do que nunca.

"Meu bem, o que tá acontecendo?"

Suzana lhe entregou a foto.

"Olha só! Eu nem me lembrava mais dessa fotografia! Onde ela tava?"

"Essa moça aqui que trouxe."

"Como foi que você conseguiu essa foto?", ele me perguntou, e eu fiquei sem saber o que dizer. Eu me sentia presa a um sonho, sem saber como acordar. Ignorei sua pergunta e fiz outra à Suzana:

"Como foi que vocês se conheceram?"

Eu devia estar com um aspecto deplorável, pois a Suzana sentou-se a meu lado, me olhando como quem olha pra um doente sem esperança de cura, tomou minha mão nas suas e me perguntou com a maior brandura:

"Cê tá se sentindo bem? A gente pode te ajudar em alguma coisa?"

Disparei no choro.

"Benhê, vai buscar um copo d'água pra ela, vai!"

"Já tô indo."

Marcos me trouxe um copo de água com açúcar e, na hora em que ele me entregou, nossas mãos se tocaram por um breve momento e eu quase desfaleci. Tomei a água devagar, pra ver se recuperava meu juízo. Entreguei-lhe o copo e nossas mãos novamente se tocaram, ele percebeu a vibração que emanava do meu corpo, porém agiu com discrição e fingiu que não havia notado nada. Quando ele voltou da cozinha, eu falei, entre um riso nervoso e outro:

"Sabem?, hoje é meu aniversário. E tá tudo tão confuso na minha cabeça... Perdi o emprego, perdi o apartamento, o namorado, a amiga, e é como se eu nunca tivesse tido nada disso. Eu... Eu não existo! Simplesmente não existo!", e disparei no choro novamente.

Marcos se ajoelhou bem perto de mim e falou, "Ei, não fica assim, não! A gente vai te ajudar. Fala pra mim se você tem algum parente. Você deve ter família, não tem?"

Então eu me lembrei dos meus pais e disse, "Sim, é verdade. Eu tenho pai e mãe, só que eles moram em Guarulhos, e eu só tenho um múltiplo de dez do metrô. Perdi documentos, dinheiro, casa, perdi tudo... Tudo!

"Olha, como é mesmo o seu nome?", perguntou-me a Suzana.

"Roseli", ri, "Pelo menos ainda possuo um nome..."

"Olha, Roseli, a gente vai te dar dinheiro e você vai pra casa dos seus pais, tá bom? Eles vão adorar ver você no dia do seu aniversário, não é mesmo?"

"É, acho que vão", enxuguei as lágrimas com um lenço que o Marcos me deu, depois o cheirei, rapidamente, pra Suzana não perceber, e o devolvi, agradecendo.

Eles me deram dinheiro suficiente pra ir a Guarulhos e um pouco mais. Me levaram até o portão e se despediram de mim com uma bondade inesquecível. Não se esqueceram nem de me dar os parabéns. Fui andando até a estação, quando reparei que alguém se aproximava. Era o Marcos.

"Olha, eu conversei com a Suzana e nós achamos melhor que um de nós acompanhasse você, e como eu não tô fazendo nada..."

Olhei pra ele sem nada dizer e tentei dar o melhor sorriso que ainda conseguia. Marcos se mostrou uma ótima companhia, falou dele, me fez rir, enfim, quase me fez esquecer o péssimo dia que eu estava vivendo. Quando chegamos na estação Armênia, ele me levou até o ponto de ônibus e fez menção de me acompanhar, porém, não sei por que cargas d'água, minha consciência resolveu se manifestar contra e eu apenas lhe falei: "Olha, eu já tô melhor, você não precisa me acompanhar até Guarulhos, depois, sua mulher pode ficar preocupada e..."

Ele me calou com um beijo que foi amplamente correspondido. Minha consciência não abriu o bico. Afinal, ninguém é de ferro. Depois ele me falou, "Feliz aniversário", sorriu e foi embora sem olhar pra trás. E então eu pensei, "puxa, se é verdade que ele não me conhece... Todos os homens são realmente iguais, com uma diferença ou outra, mas são todos iguais!".

Peguei o ônibus Jd. Moreira e desci na praça principal de Guarulhos. Andei cerca de quinze minutos a pé e finalmente avistei a casinha simples onde eu crescera. Diminuí a velocidade de meus passos, com medo do que poderia acontecer quando eu os visse. Lembrei-me de uma música do Roberto Carlos que meu pai gostava de ouvir quando eu ainda era uma menininha e chorei, por causa da semelhança das situações. A música chamava-se O Portão, e era justamente onde eu estava agora. Sequei as lágrimas, criei coragem e bati palmas com todas as forças que ainda me restavam. Minha mãe apareceu.

"Pois não?"

Um frio me subiu pela espinha e invadiu todo o meu corpo. Minha mãe não me reconhecera!

"Ma-mamãe, sou eu, a Roseli..."

Minha mãe ficou lívida e desmaiou. Gritei. De repente um senhor idoso apareceu na porta e tentou reanimar minha mãe. Era meu pai. Nossos olhos se encontraram por um ou dois segundos, porém se desviaram sem que eu notasse qualquer sinal de reconhecimento por parte de meu pai. Ele segurou minha mãe nos braços e entrou. Esperei alguns segundos, sem ter coragem de dar nem um passo sequer. Meu pai surgiu novamente e se dirigiu a mim, perguntando:

"O que você quer?"

"Como ela está?"

"Já está melhor. Por que você fez isso?"

"Isso o quê?

"Nós tivemos uma filha há muito tempo chamada Roseli, mas..."

"Mas o quê?"

"Viveu apenas algumas horas e faleceu."

Seus olhos estavam marejados de lágrimas. Gaguejei um "sinto muito", virei as costas e fui embora. Andei até o anoitecer, sem destino. De repente, parei em frente a um espelho grande que estava numa vitrine de uma loja e... Não vi minha imagem refletida. Soltei um grito sobre-humano e corri pra avenida. Então vi um ônibus vir em minha direção e... E passar por entre meu corpo como se eu não existisse.

FIM

São Paulo, num dia qualquer da década de 1980.

***



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4 comentários:

  1. parabens pra você!! vc nao continuó escrevendo contos depois?

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    1. Gracias, Marce! No, no continué. No sé porqué, tal vez porque empecé a trabajar, por las novias, por no creer que podía llegar a algun buen resultado con eso... No lo sé. Sólo después de muchos años, cuando empecé a escribir canciones, me volviero las ganas de escribir cuentos (y novelas). Que lástima que no lo hice durante todos esos años. Pero lo que vale es el hoy, verdad?

      Besos,
      Léo.

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  2. Léo...tem certeza que foi na década de 80?
    Sensacional!
    Fico muito orgulhosa em ter você conosco no livro doido,eu? - Como contista e também como nosso revisor.
    Parabéns pelo teu "velho e encantador"talento.
    Beijos de carinho e admiração.

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    1. Sim, Lucinda! É um conto do tempo da olivetti! Hahaha! Que bom que você gostou. Não é nada especial, mas pra idade até que tava bom, né?

      Sobre minha participação no nosso livro, o prazer foi meu.

      Beijos e até já,
      Léo.

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