Gosto das coincidências. Estava hoje (escrevo no sábado) pensando se deveria escrever algum texto em homenagem ao Dia das Mães. Ok, sou daqueles que não curtem muito essa coisa consumista de “dia disso” e “dia daquilo”, mas as mães em geral adoram ganhar presentes e almoçar com seus filhos. Tive então várias ideias, mas nenhuma que me instigasse a escrever algo. Foi aí que Evanir, uma colega de trabalho (sim, caros, trabalhei hoje), sabendo de meu interesse pela língua de Cervantes, trouxe-me de presente um jornal chileno.
E o quico (quicotenhoavercomisso)? Explico: Evanir tem uma filha que mora em Santiago (Chile) que resolveu lhe fazer uma surpresa vindo passar o Dia das Mães com ela. E Evanir, sempre gentil, lembrou-se de me dar como mimo o jornal que a filha trouxera de lá. A coincidência é que, logo na página 3, encontrei um texto que me deliciou a ponto de pensar: “É este!”. O texto trata com muito lirismo de outono e envelhecimento; pode parecer que não tem nada a ver com o tal Dia das Mães, mas tem, sim! Afinal, ser mãe é também saber envelhecer com dignidade. Por isso resolvi minha dúvida optando por postar esse belo e poético texto, que ofereço a Evanir, Ana Vega (uma amiga chilena), minha mãe e a todas as mães:
Manifesto de outono*
Por Cristián Warnken**, para a Columna de Opinión do El Mercurio
Peço a uma vizinha que, por favor, não varra as folhas de outono que se acumularam estes dias em nossa calçada comum. Ela me olha intrigada. Sorri. Compreendo que seja difícil entender um vizinho que defenda o direito das folhas dos liquidâmbares e dos ginkgo biloba*** de permanecer ali, pra serem contempladas, pra serem pisadas (algumas estalam), pra que brinquemos com elas. As folhas de outono em nossa cidade desafiam nossas tentativas de ter tudo sob controle. Inumeráveis folhas amarelas, vermelhas, marrons, caem e caem sem trégua, como se nos dissessem: “Tudo cai, mas cair tem sua beleza. Você também é uma folha de seu próprio outono, batida pelo vento, deixe-se cair.”
Somos passageiros. Lampejos na noite. Pensamos que aceitar isso com resignação significa assumir uma humilhante derrota, a derrota ante a finitude e a morte. Mas o mesmo outono — grande mestre das estações — se encarrega de nos ensinar que envelhecer e declinar é belo. O outono não faz implantes nem lipoaspirações em si mesmo. Não procura prolongar artificialmente a primavera, brilha com o máximo de intensidade no momento mesmo de se eclipsar, igual às estrelas que, quando entram em colapso, explodem num espetáculo pirotécnico de adeus. O céu se encarregou de fazer do ocaso uma festa e não um funeral. Não varramos as folhas deste outono, deixemos que elas nos acompanhem o máximo tempo possível em nossa fugaz passagem por esta terra! Se as crianças não pisarem as folhas de outono desde cedo, que tipo de adultos serão amanhã? A maior parte de nossas neuroses, frustrações, raivas e falta de sabedoria pra viver nasce porque ninguém nos ensinou a envelhecer e morrer. Exceto o outono.
Mas, pra olhar e aprender com os tapetes de folhas, precisamos de tempo. E quem tem tempo hoje? Não temos nem tempo de deter-nos pra aprender que nós mesmos somos o mesmo tempo que nos escapa. Nestes dias vertiginosos, em que desperdiçamos a pouca vida que nos foi dada em rolos intermináveis, em correr de assunto em assunto, de “evento” em “evento” como sombras, e em que deixamos de vivenciar a vida como o maior acontecimento de todos, é bom que nos encostemos em uma árvore de outono. Que permaneçamos junto dela o máximo que pudermos e digamos como Fausto, encantado e redimido ante Helena: “O espírito não olha pra frente nem pra trás. Apenas o presente é nossa felicidade.” É interessante que o arquétipo do niilista, o Fausto que não sabe gozar o presente — salvo neste diálogo com Helena e na cena final da obra — e é devorado por seus desejos insaciáveis e pelo futuro, encarne por um momento o que o mesmo Goethe chamou “a saúde do momento”.
Enquanto olho encantado o cair das folhas das árvores deste outono, sinto pena dos que vejo correr desaforadamente em busca de um sucesso ilusório e vão. Que presidente da república, político, empresário ou estrela de rock tem tempo pra perder perambulando entre as folhas, com amigos e não com assessores ou seguranças? Quantos de nós mesmos não estamos sequestrados por nossos próprios sucessos?
Pergunte-se onde está “seu” outono, quantas folhas você contou na calçada de sua rua, e será melhor governante, melhor empresário, melhor artista, melhor homem. As respostas não estão nas pesquisas, nos focus groups, nos indicadores econômicos, nem nos gráficos de chatos e monótonos PowerPoints. A resposta, como disse Bob Dylan — que está cantando melhor que nunca aos 70 anos —, “está sendo soprada pelo vento”. Não é certo que pra fazer um país melhor precisamos só de mais “empreendedores” — como se repete tanto atualmente. O que o mundo precisa hoje com urgência é de mais contempladores, mais sábios, mais habitantes do momento, mais guardiães do outono. Por isso, querida vizinha, não varra essas folhas, que não são folhas, e sim espelhos, letras de um alfabeto imemorial que de novo devemos aprender a ler, pra voltar a ser.
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Abaixo, o texto original:
Manifiesto de otoño
Por Cristián Warnken**
Le pido a una vecina que, por favor, no barra las hojas de otoño que se han acumulado estos días en nuestra vereda común. Me mira extrañada. Sonríe. Comprendo que sea difícil entender a un vecino que defienda el derecho de las hojas de los liquidámbares y los ginkgo biloba*** a permanecer ahí, para ser contempladas, para ser pisadas (algunas crujen), para jugar con ellas. Las hojas del otoño en nuestra ciudad desafían nuestros intentos de tener todo bajo control. Innumerables hojas amarillas, rojas, castaño, caen y caen sin tregua, como diciéndonos: “Todo cae, pero caer es hermoso. Eres también una hoja de tu propio otoño, batida por el viento, déjate caer”.
Somos pasajeros. Destellos en la noche. Pensamos que aceptar eso con resignación significa asumir una humillante derrota, la derrota ante la finitud y la muerte. Pero el mismo otoño —gran maestro de las estaciones— se encarga de enseñarnos que envejecer y declinar es bello. El otoño no se hace implantes ni liposucciones a sí mismo. No busca prolongar artificialmente la primavera, esplende con el máximo de intensidad en el momento mismo de eclipsarse, igual que las estrellas que, cuando colapsan, estallan en un espectáculo pirotécnico de adiós. El cielo se ha encargado de hacer del ocaso una fiesta y no un funeral. ¡No barramos las hojas de este otoño, dejémoslas el máximo tiempo posible acompañarnos en nuestro fugaz paso por esta tierra! Si los niños no pisan las hojas de otoño desde temprano, ¿qué tipo de adultos serán mañana? La mayor parte de nuestras neurosis, frustraciones, rabias y falta de sabiduría para vivir nacen de que nadie nos ha enseñado a envejecer y a morir. Salvo el otoño.
Pero para mirar y aprender de las alfombras de hojas, hay que tener tiempo. ¿Y quién tiene hoy tiempo? No tenemos ni tiempo para detenernos para entender que nosotros mismos somos el mismo tiempo que se nos va. En estos días vertiginosos, en que malgastamos la poca vida que nos fue dada en tacos interminables, en correr de asunto en asunto, de “evento” en “evento” como sombras, y en que hemos dejado de vivenciar la vida como el mayor acontecimiento de todos, es bueno arrimarse a un árbol de otoño. Permanecer junto a él lo más que podamos y decir como Fausto, embelesado y redimido ante Helena: “El espíritu no mira ni hacia delante ni hacia atrás. Tan sólo el presente es nuestra felicidad”. Es interesante que el arquetipo del nihilista, el Fausto que no sabe gozar del presente —salvo en este diálogo con Helena y en la escena final de la obra— y es devorado por sus deseos insaciables y el futuro, encarne por un momento lo que el mismo Goethe llamó “la salud del momento”.
Mientras miro embelesado caer las hojas de los árboles de este otoño, compadezco a los que veo correr desaforadamente tras un éxito ilusorio y vano. ¿Qué Presidente de la República, político, empresario o estrella de rock tiene tiempo para perder deambulando entre las hojas, con amigos y no con asesores o guardias personales? ¿Cuántos de nosotros mismos no estamos secuestrados por nuestros propios éxitos?
Pregúntate dónde está “tu” otoño, cuántas hojas contaste en la vereda de tu calle, y serás mejor gobernante, mejor empresario, mejor artista, mejor hombre. No es en las encuestas, en los focus groups, en los indicadores económicos, en los gráficos de fastidiosos y monótonos power-points donde están las respuestas. La respuesta, como dijo Bob Dylan —que está cantando mejor que nunca a sus 70 años—, “está temblando en el viento”. No es cierto que para ser un mejor país necesitamos sólo más “emprendedores”—como se repite tanto hoy—. Lo que el mundo necesita hoy con urgencia son más contemplativos, más sabios, más habitantes del instante, más guardianes del otoño. Por eso, querida vecina, no barra esas hojas, que no son hojas sino espejos, letras de un alfabeto inmemorial que de nuevo debemos aprender a leer, para volver a ser.
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*Tradução minha.
**É um professor de literatura, comunicador, entrevistador, apresentador de televisão e poeta chileno.
***Segundo a wikipedia, é uma árvore de origem chinesa, considerada um fóssil vivo. É símbolo de paz e longevidade, por ter sobrevivido às explosões atômicas no Japão..
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E, pra quem teve paciência de chegar até aqui, um último presentinho:
NAVE MÃE
NAVE MÃE
Adolar Marin – Léo Nogueira
E eu, que sei tudo, nada sei, sem o seu colo
A sabedoria é vã
E eu que sou rei, não tendo súditos nem solo
Sou de noite de manhã
E eu, que sou Deus, me desgarrei do universo
A sabedoria é vã
E eu que sou rei, não tendo súditos nem solo
Sou de noite de manhã
E eu, que sou Deus, me desgarrei do universo
Quase morri, sendo imortal
Me fiz ateu, anjo caído do seu berço
Me nino só, no quintal
E eu, que sou puro, pintei quadros no inferno
Me fiz ateu, anjo caído do seu berço
Me nino só, no quintal
E eu, que sou puro, pintei quadros no inferno
Com as tintas que há no breu
Construí muros e tornei-me um interno
Desse hospício que sou eu
Eu sou um astro em colisão com meteoros
Construí muros e tornei-me um interno
Desse hospício que sou eu
Eu sou um astro em colisão com meteoros
Eu me devoro as entranhas com as mãos
Se sou feliz, eu não sei bem porque é que eu choro
Eu sou um Ícaro com asas de bufão
Eu sou um ser perfeito dentro do seu ventre
Se sou feliz, eu não sei bem porque é que eu choro
Eu sou um Ícaro com asas de bufão
Eu sou um ser perfeito dentro do seu ventre
Um exemplar do seu poder de criação
Pois abra o mundo, pra que eu mais uma vez entre
E tente ser de novo civilização
***
Pois abra o mundo, pra que eu mais uma vez entre
E tente ser de novo civilização
***
Excelente o texto. Saber outonar é fundamental. Mas vamos aprendendo, vamos aprendendo. É minha estação preferida, pena que aqui no Ceará ela não apareça.
ResponderExcluirbjos
Sergio-Veleiro
Velerim, o Ceará tem outras lindezas. Mas vamos, sim, aprendendo. E, além do outono, quem tá precisando aparecer por aí sou eu. Vamos ver se uma hora rola...
ExcluirBeijão do
Léo.
É tudo o texto. Sem mais a comentar.
ResponderExcluirApenas que o dia fica melhor começando assim, e quem sabe, encontrando uma folha de outono caída aqui por perto de casa.
A canção no fim me brinda e me traz um sorriso de alegria.
Beijo, Léo!
Adolar
Tamo junto, Dodoô, o rocker! Haha!
ExcluirBeijão do
Léo.
Esse tal Jota Paella (?????), não sei como apareceu. MESMO!!! Deve ser porque tive um blog e depois o excluí. Será castigo do Google?
ResponderExcluirAdolar, com a permissão do Jota aí acima.
Não sei quanto ao jota, mas paella eu adoro! Hahaha!
ExcluirMuito poético o texto, adorei! A música não condegui escutar, você pode me enviar por e-mail, por favor? beijos
ResponderExcluirTe la envié, Ana.
ExcluirBesos,
Léo.
Hola Léo...
ResponderExcluircomo vai?
ahhh qué bom texto pra um dia como hoje.... eu não savia que no Brasil é também o dia das mães... gracias por compartir este texto de Cristián Warnken....
yo también a veces no creo mucho en la fechas especiales, como esta, porque es algo muy comercial.... sólo para que las personas gasten dinero... para que compren y compren... porque en realidad, día de las madres sería (debería ser) cualquier día, todos los días... en fin, y sin embargo, nos envolvemos en estas festividades... hihihih
curti muito a referência que você faz... o fazer esta comparação desta festa das mães com o outono... en verdad nos hace reflexionar sobre las pequeñas cosas, sobre mirar los detalles, y tanto que le hace falta a muchas personas....
すごいいい。。歌が大好き !!!!!!!
woww..... me llegó al alma esta canción !!!! es muy profunda !!! me encanta !!! woww.. soy todo y no soy nada... pero en su vientre, soy perfecto ......
adorei, adorei.... ありがとう !!!!
Hola, Javier!
ExcluirSí, sí! El día de las madres hay que ser todos los días, como el de los padres, de los novios etc. Y qué bien que te gustaron el texto y la canción!
Un fuerte abrazo desde el frío y la lluvia de Sampa,
Léo.
maravilloso Leo! justamente hoy estuve caminando por mi barrio ...lleno de hojas secas y coloridas...por suerte tengo tiempo y lo uso para eso...no se si eso me hará mas sabia...pero si mas feliz!!
ResponderExcluirsaudade!!
Hola, Marce! Tú (vos) y Buenos Aires me extrañan muchísimo. A ver si este año encuentro tiempo de volver ahí.
ExcluirUn gran beso,
Léo.
Lindo texto, Léo!
ResponderExcluirA gente está cada vez mais querendo controlar o mundo, e não é bem assim. A beleza da vida está na caminhada.
Um beijão,
Danny.
E a natureza sabe se defender dos imbecis, não, Danny? Nos fazemos parte dela, quando lhe queremos ser superiores vem ela e nos passa um pito. Caminhemos, pois.
ExcluirBeijão do
Léo.