segunda-feira, 28 de maio de 2012

Crônicas Classificadas: 20) O centro

A dor, a boa dor, só é boa se doer. Se fizer só cócegas não é dor. A fome, a boa fome, só é boa se causar tonturas, desmaios. Se for só uma pontadinha na barriga não é fome (tome cuidado, pode ser gravidez! Ou, nos homens, solitária...). O amor, o bom amor, é mais ou menos a colisão desses dois trens, o da dor e o da fome. Daí nasce o amor não por uma pessoa, mas pela humanidade! Às vezes daí também nasce o ódio por ela. Aliás, todos sabemos que o ódio é o negativo do amor.

"Eu não tenho papas na língua", como bem poetizou Lúcia Santos. Tenho a barriga cheia e sigo faminto. Sou sadio (pelo menos foi o que o médico me disse da última vez que o visitei) e sigo com essa dor, dor de estimação, dor necessária porque me lembra a cada dia que estou vivo. Minha querida ex-professora Mayra Pinto me indicou uma entrevista com William Faulkner na qual (embora nunca o tenha lido) me reconheci em muitos pontos. Futuramente tratarei dela, por ora deixo apenas uma resposta dele que achei fabulosa:

"A finalidade de todo artista é deter o movimento que é a vida, por meios artificiais, e mantê-lo fixo, de modo que, cem anos depois, quando um estranho o contemplar, volte a mover-se em virtude do que é a vida. Posto que o homem é mortal, a única imortalidade que lhe é possível é que deixe de si algo que seja imortal, porque sempre se moverá. Essa é a maneira que o artista tem de escrever 'Eu estive aqui' no muro da desaparição final e irrevogável que algum dia terá que sofrer."

Meu grande amigo de fé, meu irmão camarada... Não, não se trata do amigo de Roberto Carlos, trata-se do MEU! Este atende pelo nome Élio Camalle. E ele sabe exatamente do que tratei nos três parágrafos acima. Por isso se viu tão bem refletido em meu texto anterior, João Pereira Coutinho e Eu. Tanto a ponto de, em vez de deixar um comentário por aqui, escrever-me por e-mail uma longa e reflexiva carta. Sim, caros leitores, uma missiva à moda antiga. Só faltou vir pelo correio. 

E, como a vida é um bumerangue, o que lhe atirei voltou-me bem no meio da testa! Embora eu tenha mais anos de sala de aula que ele, sempre o achei mais inteligente que eu, mais inspirado, mais ousado. A tal da fome que sinto e que relatei acima, nele é fome ao cubo. A minha é a de um menino de rua olhando pela vidraça de um restaurante, a dele é a de um leão quando a jaula se abre. Mas nossas fomes se completam e, unidas, alimentam. Por isso eu praticamente o obriguei a deixar-me publicar aqui o que me escreveu. Se não fosse pela importância do conteúdo, seria pelo menos por ser, talvez, seu primeiro texto publicado em algum lugar. Que venham outros!

***

O centro

Querido Léo,

Li seu texto no blog, muito bom. Talvez seja a primeira vez que tenha lido, não de verdade, mas com verdade, pois me encontrei nele e vi e fiquei feliz que tenha se encontrado nele, apesar de parecer óbvio.

A questão é muitíssimo complicada. Comecemos pelo átomo; sabemos que a formação do átomo é feita de confusão de elétrons e em seu centro não há nada, por mais que nós o fracionemos. Pois bem, começa aí o maior enigma da existência. Uma vez provado que tudo o que se passa fora da matéria é exatamente aquilo em que esta se transforma e que no centro de tudo isso não há nada, resta a força criadora: Deus, vida, energia, Buda etc., e por aí vai ao além.

Sendo assim, as coisas e nós dentro do mundo atômico estamos sempre em conflito porque talvez (isso sou eu quem diz) não conseguimos tocar o centro, a criação, o amor, ou seja, o caminho de casa, a aproximação natural daquilo que é o nosso lugar de origem. Não conseguindo entrar em comunhão com essa fonte e lutar contra isso dentro de si é exatamente o que constitui uma personalidade atômica, o que quer dizer sempre vinda, oriunda, do nosso sistema material e suas equivalências e seus desdobres, gerando a guerra.

O que é a guerra? Não é exatamente esse desconforto do "positivo e negativo"? Isso se dá em todas as categorias. Adiante com a evolução, assim chamada aqui, conhecemos a guerra como tal, com seu peso e sua medida, calcada no conceito das sociedades, que por sua vez são calcadas nos conceitos de dominação para poderem conter essa necessidade de tocar o centro.

Você, homem inteligente, vai com certeza perguntar: por que então não se faz a paz e se toca o centro? A resposta é: medo. Tocar o centro das coisas significaria exterminar o humano, alto sacrifício em nome do segundo passo, o pulo para uma nova forma de ouvir seu coração, não o coração do corpo, mas aquele que bate dentro de sua origem, o desconhecido, mas, de novo, o caminho de casa, o ser ideal, sem máscaras, sem a limitação da humanidade que se faz tão degustativa e viciante no aqui, mas perde o agora.

Tudo isso não passa de pequenos indícios das características da relação do humano a partir de seu genoma universal, se é que se pode chamar assim. O homem, sendo expressão sintomática desse contexto, não escapa do mesmo medo e se arma contra si. Quem é o (si) outro? O homem dentro do homem dentro do homem dentro do homem, a infinita reprodução do modelo de dominação que a matéria tende a obedecer pra fugir de si mesma, é ela o outro.

Penso que a questão do poder é coisa muito profunda e aprofundada, enraizada na espinha dorsal do primeiro instante atômico... Como diz a canção, "tudo isso aconteceu pra quê, se você não me quer?"*... Quer, mas tem medo, porque querer é também querer-se e além disso é também querer ser. Como fazer pra querer de fato algo que me transforma em outro que não serei mais eu? Não faz, entende? Reluta-se! Cria-se uma base sólida de resistência, com estudos aprofundados, com grandes exércitos disfarçados de cidadãos do bem, disfarçados de homens com ideais, de homens fortes e fracos, disfarçados de doenças, disfarçados de humanidade como nós nos disfarçamos todos os dias. 

Mas agora basta, começamos a entender a organização criminosa de dominação que, no caso específico nosso, como reais cidadãos, dentro da nossa realidade (aquela que criamos pra nós), não passa de guerras de categorias. Dentro desse critério nossa categoria também vem dividida em duas partes, pela eterna concepção da matéria. Aqui sim nos dividimos em homens brancos e ricos e homens de toda espécie que por hora buscam um meio dentro da confusão para ascender em sua organização de dominação, mas é outro caso paralelo. 

O que se tem aqui é essa guerra sem medidas, sem fronteiras, para eliminar este signo ora denominado pobre e preto, fêmea, criança, estrangeiro etc... A solução para que se inverta esta situação nada mais é do que ter a consciência de que esta categoria dominante não passa de poucos militantes, embora muito bem armados, mas empoeirados, duvidosos. Ter a visão clara para ver um mundo embaixo desse mundo, um mundo novo que, não sendo o ideal,  não há como aqueles o impedirem de ir além... Uma nova humanidade vem aí!

Não se admire se quanto mais o tempo passar mais haverá esses homenzinhos do jornal dizendo coisas que seu coração, o coração do Léo Nogueira, já falou e escreveu com sangue nos olhos, com verdade tocada, vivida. Sim, tenho certeza de que o próximo, que não será prodígio, será ainda mais jovem, e você o olhará com seus olhos de sexagenário e verá que, desta vez, este está falando sozinho. O mundo está mudando, nós estamos mudando o mundo porque a cada dia ousamos tocar o centro e enfrentar o medo. Se não nos transportamos a ele ainda, já podemos dar uma espiadinha.

***

*Verso da canção Baião de Um, minha e de Adolar Marin.

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4 comentários:

  1. O mundo está mudando, nós estamos mudando o mundo porque a cada dia ousamos tocar o centro e enfrentar o medo. Se não nos transportamos a ele ainda, já podemos dar uma espiadinha.


    Valeu a cronica...
    Bjins

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    1. Valeu, Unknown! Da próxima vez assine, pra gente saber quem gostou!

      Beijo do
      Léo.

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  2. Só vou me manifestar depois de ler 20 vezes.
    Cada dia que leio este texto aprendo/entendo/compreendo algo novo.Ah! e depois desaprendo tudo que já havia aprendido (pensava que havia aprendido)
    Camalle você deu um nó nas minhas ideias! Obrigada por isso.
    Parabéns aos dois amigos - Léo e Camalle
    Adoro vocês!
    Beijos e daqui uns dias voltarei.

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    1. Hahaha! Lucinda, não li umas 20 vezes, mas de umas três precisei pra sacar (ou pensar que saquei) o que Camalle expôs tão corajosamente em seu texto. O bom é isso, fazer pensar!

      Beijos e até já,
      Léo.

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