Gastava duas horas (e duas conduções) pra chegar ao apartamento dos patrões, por isso os atrasos eram frequentes. Dona Dulce, em sinal de doçura, foi magnânima e lhe deu duas opções: ou ela passava a dormir no trabalho (havia no apartamento – de andar inteiro – um cômodo minúsculo usado como depósito de tralhas que lhe poderia servir perfeitamente de quarto) ou ia pra rua. O problema era que Chirlei estava em vias de se casar. Josué, o noivo, era um pedreiro pernambucano, moço bom, trabalhador, não bebia, frequentava até os cultos da igreja Universal do Reino de Deus. No entanto, quando soube que a futura esposa viria pra casa só sábado à tarde e voltaria pro trabalho domingo à noite, não vacilou: "Mulher minha não dorme fora de casa. É o trabalho ou eu! Você escolhe."
Chirlei também não titubeou: escolheu o trabalho. Afinal, Josué não era lá grande partido, e, pra piorar, com o salário que ganhava não conseguiria sustentá-la, muito menos quando ela realizasse o sonho da maternidade. Chorou, claro, mas lágrima de pobre seca rápido, pois não é moeda corrente que se aceite na hora de pagar as contas. E Chirlei era uma vencedora, não viera da Paraíba com uma mão na frente e outra atrás pra ficar choramingando por marmanjo. Não, senhor, ele que ficasse lá com sua Bíblia, que ela tinha mais era que trabalhar. E foi o que fez. Vendeu a pouca mobília que tinha, botou o que sobrou numa mala daquelas antigas, sem rodinhas, e, sem olhar pra trás, se mandou pro apartamento dos patrões, deixando pra trás placa de "aluga-se" no barraco onde até um dia antes fora seu lar.
Pensando bem, era até melhor, porque ia economizar o dinheiro do aluguel. Depois que Luzanira, a prima que vivia com ela, juntara os trapos com o bebum do Weldinho e a deixara sozinha com os gastos da casa, quase pensara em voltar pra Paraíba, mas suportou com dignidade a crise, bateu perna e conseguiu esse trabalho na casa da dona Dulce. Agora tinha cabimento pedir as contas? Ah, tá! Chirlei era uma moça decidida, apesar de pequenininha e um tanto subnutrida, tinha personalidade pra dar e vender. No ônibus, a caminho do novo lar, chegou mesmo a pensar em retomar os estudos, fazer um curso de computação, agora que ia economizar com o do aluguel. Mas, calma lá, tinha que ver antes como as coisas se ajeitavam. Primeiro o pão, depois os livros.
O tempo foi passando e Chirlei começou a reparar que agora praticamente não tinha mais vida própria. Morando no trabalho, tinha que estar à disposição dos caprichos de dona Dulce nos horários mais insólitos. Uma vez, como dr. Olavo estivesse com dor de cabeça, teve que ir à farmácia por volta da meia-noite. Já tinha até se deitado quando dona Dulce bateu à porta. A patroa vinha sempre educada, com jeitinho, usando de simpatia, mas o fato era que lhe estavam sugando o sangue, essa era a verdade. Quando percebeu isso, esperta como ela só, começou a dar seus pulos e a sair nos fins de semana (até pra evitar que lhe pedissem algo) levando seu currículo (feito com a ajuda da Luzanira) pra cima e pra baixo.
Foi quando chegou dezembro e com ele Olavinho, de férias da faculdade. Ia ser advogado. Como o pai. E era tão lindo, com os "cabelo louro cacheadim" e aqueles "olhão azul". Parecia um anjo! Chirlei deu mesmo pra sonhar com ele, às vezes acordada. Até andava se esquecendo de sair nos fins de semana. E ele era tão educado! Não era à toa que dona Dulce tinha o maior orgulho do moço, filho único. O xodó da mãe. Quando chegava visita, ela não tinha outro assunto, era o Olavinho pra lá, o Olavinho pra cá, uma babação só! Fazia todos os gostos do filho. Pagou-lhe até uma viagem pro Rio de Janeiro, pra ele passar a virada do ano vendo os fogos. Quer dizer, quem pagou foi o marido, mas se não fosse ela... Mas ó como o tempo passa depressa! E não era que o Olavinho já ia voltar pra faculdade?
E claro que a mãe fez o último gosto do filho: uma festa de despedida com seus amigos. Mas sem os pais, que festa com os coroas não era festa. Dr. Olavo quis chiar, mas dona Dulce não permitiu. No mais, ela estava precisando mesmo dar uma olhada na chácara, afinal, deixar muita responsabilidade na mão de caseiro não é bom negócio. Essa raça, quando vê que os patrões nunca aparecem, começa a achar que eles é que são os donos. Se não tomar cuidado, até a piscina começam a usar. Não, estava decidido. Eles viajariam pra Itu e o filho organizaria a festa como quisesse. E o menino nem bebia, o que de mal podia acontecer? Prometeu pagar hora extra pra Chirlei ajudar no que fosse necessário e sábado cedinho ganharam o mundo.
Olavinho piscou pra Chirlei, abriu-lhe aquele sorriso encantador e lhe enfiou cinquentinha no bolso do uniforme. Era o preço de seu silêncio, claro. E chegava em boa hora. Naquele fim de semana ela ia se dar bem. Rolou de um tudo na festa. No começo estavam todos muito comportados, mas chegou aquele ruivinho com um tal de um talco que todo mundo cheirava, e a coisa foi pegando fogo. Chirlei nunca tinha visto tanta garrafa vazia na vida. Sem falar naquele cigarro cheiroso, que a deixava até zonza! E as músicas então? Tudo em língua de doido! Foi quando um tapa zuniu no ar. Fez um barulhão danado, deu pra ouvir por cima da música. Em seguida um bate-boca. Deu a maior pena ver a cara do Olavinho quando a loira oxigenada saiu batendo a porta. Dispensar um moço tão bom! Uma burra.
A zinha acabou com a festa. O moço ficou de mau humor, destratou os amigos, que foram saindo aos poucos, até que o apartamento ficou vazio. Quer dizer, vazio não. Estavam ele e ela. Já ia arrumar a bagunça, mas Olavinho disse pra ela arrumar amanhã, que seus pais só iam chegar no final da tarde. E o menino era tão fofo, que quando lhe ofereceu o copo ela nem conseguiu dizer que não bebia. Afinal, um golinho não ia matar ninguém. O treco parecia guaraná, mas era forte! Apalpando os R$ 50 no bolso, não quis fazer desfeita. Viu com que dedos ágeis ele preparou e lhe ofereceu o cigarro cheiroso. Quis dizer não. Conseguiu? Engasgou, mas pior foi quando ele lhe enfiou a mão por entre as coxas. Ah, isso, não! Ela era moça de família! Quis gritar, ele lhe tapou a boca. Tentou correr, cadê força? Tão perfumado o moço...
Escondeu a gravidez o quanto pôde. Quando dona Dulce disse que ela estava "cheinha", tomou coragem, procurou o número do celular de Olavinho na agenda e, numa tarde em que a patroa foi ao cabeleireiro, ligou. Estivera tão agoniada esses meses todos, que despejou no pobre uma série ininterrupta de impropérios. Quando passou das palavras ao pranto, foi a oportunidade de Olavinho dizer que não era o pai e que, além disso, quem ia acreditar numa doméstica? Ele nem sequer bebia, como ia fazer uma coisa daquelas? Que imaginação a da Chirlei! O melhor que ela tinha a fazer era procurar o verdadeiro pai e obrigá-lo a se casar com ela antes que fosse tarde. Afinal, ela não tinha um noivo? Ainda teve a desfaçatez de lhe desejar boa sorte, não sem antes de dizer que, se precisasse de um advogado...
Dona Dulce, quando ouviu o disparate, botou-a no olho da rua, sob sérias ameaças. O meu Olavinho? Que descaramento! Josué expulsou-a com xingamentos impublicáveis. Onde teria aprendido aqueles nomes todos? Luzanira sentia muito, mas o Weldinho costumava lhe dar uns tabefes quando chegava "beudo", de maneira que não era seguro pra prima ficar ali. Além disso, o barraco era pequeno, e tinha a neném... Voltar pra Paraíba buchuda? Nem pensar! Sabia o pai que tinha. Não, ela não era mulher de voltar derrotada, com o rabo entre as pernas, e de barriga... Zanzou por esse mundo de meu Deus, descolou uns trocados limpando sujeiras outras e morreu parindo num beco (sem saída). Teve tempo só de suspirar, ao ver o menino. Tão lindo, com os "cabelo louro cacheadim" e aqueles "olhão azul". Parecia um anjo!
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Há alguns dias li na Folha bela crônica de Carlos Heitor Cony, Desprezo ao homem comum (leia aqui), da qual roubo um pedaço: "Na semana passada, soube de um caso que não foi noticiado, talvez pelo fato de ser comum e com personagens comuns. Uma doméstica de 22 anos foi estuprada pelo filho do patrão e engravidou. Ela se virou como pôde até chegar a hora do parto. Um motorista de praça rodou com ela por vários hospitais, até que encontrou um que a aceitou. Teve a criança na pia da cozinha hospitalar. O filho nasceu, a mãe morreu por infecção. Nelson Rodrigues faria disso uma peça que, certamente, seria proibida pela censura". Nem a doméstica nem Nelson Rodrigues estão mais entre nós. Sobrei eu pra "recontar" o assunto em forma de conto. Fazer o quê? Cada época tem sua "vida como ela é".
É... Enquanto ainda houver casos assim, não temos muitos motivos pra comemorar...
ResponderExcluirBeijos,
Danny.
Pois é, Danny! Sou obrigado a concordar. Mas aqui estamos como vozes dissonantes.
ExcluirBeijos,
Léo.
à la clara dos anjos
ResponderExcluirChirlei dos anjos. rs
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