terça-feira, 26 de novembro de 2013

Eu Não Vi, Mas Me Contaram...: 2) A 8 da sorte

... era corintiano roxo. Todos os domingos, jogasse seu clube na capital, lá estava ele no estádio, com a mesma camiseta velha de guerra (dizia que dava sorte), já desbotada e com três ou quatro furos, a eterna 8 do "doutor" Sócrates, da época do bicampeonato paulista e da famosa Democracia Corintiana. Este nem jogava mais pelo Timão, mas o rapaz era enfático: pra ele não tinha Pelé nem Garrincha nem Cruyff nem Beckenbauer nem Rivelino nem Zico nem Deus do céu! O maior craque de todos os tempos era Sócrates, e ponto final. Tanto, que os amigos o apelidaram de "Dotô". Com o tempo, a maioria das pessoas que o conheciam nem sabia mais seu nome de verdade. Pra todos era apenas o Dotô.

Mas aconteceu que certo dia a empresa em que ele trabalhava contratou pra uma das tantas vagas de estágio de que dispunha uma morena de parar o trânsito. Seu nome era Soraya, e Dotô parou na dela. Sua primeira paixão era o futebol, ou melhor, o Corinthians, mas a segunda era um rabo de saia. Já no primeiro dia, gavião (duas vezes), apresentou-se e foi logo puxando conversa. Descobriu que a moça era de Marília, viera pra São Paulo estudar, estava no último ano de administração, e, como o curso exigia um período de estágio, após muito procurar, conseguira uma vaga naquela empresa. Morava com uma tia solteirona que era pior que seu próprio pai, controlava seus horários, suas amizades, sua roupa, enfim, em linguagem que Dotô entendia: era um verdadeiro zagueiro!

O tempo foi passando, e Dotô e Soraya foram ficando cada vez mais íntimos. Uma coisa era certa: o rapaz, embora não fosse nenhum galã de cinema, possuía um charme impressionante, em parte pela mais completa falta de vergonha na cara. Sim, porque estava pra nascer quem o fizesse ficar constrangido. Sua cara de pau era de deixar queixos caídos. Saía-se das mais vexatórias situações sempre com um deslavado sorriso no rosto, aquela frase de impacto no momento mais inesperado, aquela graça nonsense que transformava a raiva alheia em gargalhada, enfim, ninguém podia com ele. E olha que essa característica sua já o salvara em não poucas ocasiões. Atrapalhado que era, estivera em vias de ser despedido um sem-número de vezes, mas seu chefe, na hora H, era sempre desestabilizado pelo carisma do funcionário. Dizia de Dotô que este era um "mal necessário".

Apesar de todas essas qualidades, as investidas de Dotô paravam no cafezinho da tarde. Por mais que argumentasse, não conseguia arrastar a morena nem pra um simples sorvete. Não que ela não quisesse, notava-se que estava na dele, o problema era um só: sua tia. A anciã era carne de pescoço! Carola até umas horas, religiosa até a medula e fofoqueira profissional! Não havia acontecimento na vizinhança de que ela não se inteirasse, e com direito às mais altas críticas. Soraya vivia debaixo do mesmo teto da velha sempre sob ameaças. Ai dela se se desviasse um milímetro que fosse da disciplina de quartel que lhe impunha a tia! Era ra-re-ri-ro-rua! Não sem antes dar a ficha completa ao pai da moça. A Soraya, que não tinha condições financeiras pra alugar um quartinho que fosse, só lhe restava se submeter aos rigores da generala.

Chegou o fim do ano. Dotô, pelos cantos, em nada se parecia mais com aquele cara sorridente e charmoso de pouco tempo atrás. Respondia a tudo com monossílabos, frequentemente era flagrado pelo chefe como que fora do ar, fitando o vazio, desligado do mundo. Este agora não o despedia por pena. Dotô esquecera até os rabos de saia. Desde que conhecera Soraya, não saíra com nenhuma outra garota, mas não por falta de oportunidades, afinal, suas velhas paqueras o viviam perseguindo. O fato era que ele simplesmente não queria mais sair com ninguém porque... porque... estava apaixonado! E, pra piorar a situação, naquela sexta-feira Soraya lhe comunicou que ia voltar pra Marília domingo à noite. Sua mãe se encontrava doente já fazia um tempo, e ela só não voltara antes porque seu pai fizera questão de que ela antes terminasse os estudos. Agora, com o término do curso, nada mais a impedia.

Dotô fitou a moça, e em seu olhar havia desespero. Só não caiu no pranto ali mesmo porque homem que é homem pode até chorar, mas corintiano, nunca! Pelo menos em público. Mas foi aí que recebeu a primeira notícia boa em meses. Soraya puxou-o de canto e sussurrou-lhe ao ouvido que domingo, antes da viagem, eles poderiam se encontrar. Ela já havia planejado tudo: mentira pra tia, dizendo que o ônibus partiria de tarde, e não à noite. A velha fizera menção de acompanhá-la até a rodoviária, mas a sobrinha convenceu-a de que não havia necessidade, pois já havia reservado um táxi. No dia, pediria ao taxista que, em vez de deixá-la no local combinado, deixasse-a no motel X. E lançou-lhe um sorriso maroto. O rosto de Dotô se iluminou. Pegou com Soraya o endereço do paraíso e voltou, radiante, pra sua mesa. Foi então que se lembrou de que domingo...

... era dia do clássico Corinthians x Palmeiras, e ele já havia combinado com os amigos que, obviamente, iria. Aliás, o futebol vinha sendo sua única fonte de alegria naqueles meses; e ele, desde que se entendia por gente, jamais passara um fim de semana sem ir a  um jogo do Timão, quando este jogava na capital. E agora, o que fazer? Após um longo solilóquio, com o coração partido ao meio, decidiu-se pela segunda paixão. Afinal, outros jogos viriam, mas aquela oportunidade seria única. Se deixasse Soraya escapar dessa vez, podia ser que jamais a voltasse a ver. No mais, dava até pra conciliar as duas coisas: levaria um radinho de pilha, que esconderia estrategicamente num canto do banheiro. Assim, era só dizer que precisava fazer as necessidades fisiológicas, ligar o rádio e acompanhar o placar.

Naquele domingo, foi pontual. Quando o táxi parou em frente ao motel X e dele desceu Soraya com sua mala, lá já a esperava Dotô. A moça só estranhou aquela camisa rasgada que o rapaz vestia (a famosa 8 da sorte), mas preferiu não fazer nenhum comentário. Entraram. O coração de Dotô parecia que ia escapar pela boca a qualquer momento, batendo mais que tamborim em ensaio de escola de samba. Ele só não contava com um detalhe: o centroavante, do nada, resolveu desmaiar no meio da partida. E não houve jeito; a moça fez até respiração boca a boca, mas, pelo visto, a partida acabava ali pra ele. Dotô levou-o até o banheiro, onde tentou de tudo pra reanimá-lo: conversa, reza, promessa, chantagem, briga, tapa, mas o impávido matador jazia ali, morto. Sentado na privada, qual o pensador de RodinDotô, pra piorar, ainda teve a infeliz ideia de ligar o radinho pra saber quanto estava o jogo. E aqui não valeu a máxima "infeliz no amor, feliz no jogo": o Verdão abrira o placar. Seu pranto rolou. No banheiro podia, desde que não fizesse barulho...

Abatido, enxugou as lágrimas com a camisa 8 e voltou pro campo, mas, como o matador permanecesse sem sentidos, a cruel sentença "isso acontece" fê-lo desabar de bruços, escondendo o choro no travesseiro. Soraya ainda teve presença de espírito pra montar em suas costas e lhe fazer uma massagem, no intuito de relaxá-lo. E não era que a garota tinha boa mão pra coisa? Dotô, deliciado, já estava quase dormindo, quando um inesperado fio-terra veio despertá-lo. Quis argumentar, mas Soraya, numa rápida demonstração de força, manteve-o preso entre suas pernas, enquanto dedos e língua trabalhavam. E eis que o "gigante acordou"! Dotô, com insuspeita habilidade, virou-se, dominou a massagista, e o que se viu (e ouviu) nos minutos subsequentes foi um verdadeiro olé do lázaro centroavante. Os fogos de artifício explodiram pela cidade anunciando o empate do Timão no mesmo instante em que Dotô marcava um orgástico gol de placa. Sentindo-se o mais realizado dos machos, com a boca colada ao ouvido da goleira, em vez de sussurro, soltou um sonoro "Vai, Curíntia!".


***


O conto acima é inspirado em fatos reais. Ver eu não vi, mas quem mos relatou, com riqueza de detalhes, foi um amigo muito chegado, que, coincidentemente, foi quem os protagonizou. Claro que acrescentei um ou outro detalhe à trama, mas, pra ser sincero, tenho há tanto tempo essa história na lembrança, que nem sei mais quanto disso é verdade, quanto é ficção. Afinal, quem conta um conto...

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6 comentários:

  1. Como é bom ler seus contos. Esse em especial me despertou a atenção pela chamada e a promessa de ROMANTISMO,mas encontrei um texto derramando humor dos bons.Ta perdoado Dotô,digo,Leo Nogueira.
    Claro que adorei cada linha.
    Beijos e muita admiração.

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    1. Oi, Lucinda!

      Que raro prazer te ler por aqui! Bom que gostou. Mas você não achou o conto romântico? rsrs

      Beijos,
      Léo.

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  2. Como boa corintiana que sou, engrossaria o coro do Dotô: Vai, curíntia! hahahaha

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  3. Meu caro Moacyr Scliar do agreste (e melhorado)...
    O dia em que eu abrir uma editora, vc será meu centroavante...
    Vc nunca falha... Nem precisa a 8 da sorte... muito menos o tal de fio terra...kkkkkkk

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    1. Hahaha! Ô, Moreirinha, eu espero que Papai Noel te dê de presente de Natal uma editora. rs

      No mais, boa lembrança! No primeiro texto desta coluna eu citei Nelson Rodrigues, mas devia ter citado também Moacyr Scliar, que era mestre em transformar pequenas histórias do cotidiano em ficção.

      Grande abraço,
      Léo.

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