domingo, 1 de dezembro de 2013

Grafite na Agulha: 12) "Essas recordações me matam"

Minha ligação com Roberto Carlos já vem de antes de meu nascimento. Minha mãe costumava me contar que, quando estava prestes a me trazer a este mundinho de meu Deus, ainda lá no meio do nada, pra além das fronteiras dos cafundós, numa cidadezinha cearense de nome pomposo, Senador Pompeu, não poucas vezes chorou ouvindo Amada, Amante, canção com a qual embalava meus últimos dias de pré-rebento. Aliás, o disco que contém a supracitada canção (e também DetalhesComo Dois e DoisTraumasTodos Estão SurdosDebaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, entre outras), intitulado simplesmente de Roberto Carlos (como a maioria dos discos do Rei), nasceu praticamente junto comigo, naqueles fins do ano da graça de 1971.

Alguns anos depois, meu pai, cansado de calejar as mãos no trabalho duro e nem sempre justo da roça, se mandou pra Sampa City, pra onde, após ter conseguido trabalho numa fábrica, acabou trazendo o resto da família: minha mãe, eu e uma tia adolescente, por parte de mãe. Já instalados num bairro da zona sul (não confundir com a homônima carioca), a tal tia se encantou com Robertão e virou ávida consumidora de seus discos. Já contei essa história antes (aqui), não é o caso de repetir; por ora, pra enfatizar tal influência em meus impúberes anos, basta dizer que foi por causa dessa tia que meus cabelos não viram tesoura durante muitos anos, quando eu, uma espécie de Roberto Carlos mirim, animava as festas, cabo de vassoura em mãos fazendo as vezes de microfone, desfilando desafinadamente (e de cor) todo o repertório do Rei.

Claro, veio então a adolescência, e descobri que naquela época RC não andava em alta com os jovens. Diria mais, quem admitia curtir o inimitável mais imitável do Brasil chegava a ser mesmo praticamente alvo de bullying. Daí que, na marra, tive que aprender cedo a arte da hipocrisia: na rua ouvia rock, em casa, o Rei. Contudo, as leis da natureza venceram, e, com o advento do rock nacional em parceria com meus hormônios em polvorosa, Robertão (que naquele então já começava a soar repetitivo) foi aos poucos desaparecendo de meu toca-discos. E creio mesmo que teria desaparecido por completo não fosse um detalhe dos mais significativos: com a chegada da puberdade, começava então minha eternamente complicada relação com o sexo feminino. E, após foras homéricos e conturbadas relações com namoradas que nem sequer sabiam de minha existência...

... as canções que ele fez pra mim foram, ainda que timidamente, voltando a exigir seu quinhão de "tocabilidade" (ui!) em meu aparelho de som. E foi justamente nessa época que descobri, de maneira indelével, que um disco do Rei estava condenado a fazer parte de minha vida pra todo o sempre. Obviamente, pela foto do campo superior esquerdo deste texto, vocês já adivinharam a qual deles estou me referindo. Sim, trata-se do Roberto Carlos, safra de 1972, que, sem medo de errar, considero um dos melhores LPs de música popular brasileira de todos os tempos. Músicas, letras, interpretações, arranjos, tudo um primor. E o repertório? Garanto que até quem não é fã de carteirinha do Rei conhece mais da metade dessas canções: À Janela, Como Vai Você, Acalanto, À Distância, A Montanha, Quando as Crianças Saírem de Férias, O Divã etc.

Algumas das canções desse disco são de fazer um adolescente fragilizado cortar os pulsos depois de voltar pra casa após levar um fora enviesado. Vejamos: "[...] Mas se um dia/ Se um dia você voltar/ Então eu vou ter chance de me levantar/ Pois só você me pode/ Estender a mão/ Mas se não for por amor/ Me deixe aqui no chão" (Por Amor); "Nunca mais você ouviu falar de mim/ Mas eu continuei a ter você/ Em toda esta saudade que ficou/ Tanto tempo já passou e eu não te esqueci" (A Distância); "Como vai você?/ Que já modificou a minha vida/ Razão da minha paz já esquecida/ Nem sei se gosto mais de mim ou de você" (Como Vai Você); "[...] É noite amor/ E o frio entrou no quarto que foi seu e meu/ Pela janela aberta onde eu me debrucei/ Na espera inútil e você não apareceu" (Você já me Esqueceu).

Mas no disco há outras preciosidades que passam ao largo do romantismo, a existencialista À Janela ("eu às vezes penso até onde essa estrada pode levar alguém"), a psicanalítica O Divã ("eu venho aqui, me deito e falo pra você que só escuta, não entende a minha luta"), a canção de ninar Acalanto (de Dorival Caymmi!), a biográfica Quando as Crianças Saírem de Férias, a gospel A Montanha, a filosófica Agora Eu Sei ("mas agora eu sei o que aconteceu/ quem sabe menos das coisas sabe muito mais que eu")... Pra não dizer que o repertório é perfeito, há um deslize, a canção Negra, de Mauricio Duboc e Carlos Colla, que, apesar da bela melodia, traz uma ideia que flerta com o racismo: "Ah! Quem dera eu esquecer/ Da minha cor tão branca e me perder/ Nessa ilusão tão pura/ Nessa ilusão tão meiga/ Nessa ilusão tão negra". Será que os autores da canção nunca ouviram falar em miscigenação?

Esta coluna trata, claro, de gostos pessoais, mas é aí que tá a graça. As verdades absolutas não trazem surpresas. Ex.: a revista Rolling Stone Brasil publicou em 2007 uma edição com os cem maiores discos da música brasileira (segundo algumas pessoas influentes do ramo), mas, apesar de haver quatro discos de Roberto entre os cem eleitos, este de 1972 não consta da lista... Azar o dela! De quebra, ainda segundo meu gosto pessoal, este LP traz uma canção que, se não é a melhor de RC, é, seguramente, uma das mais pungentes: O Divã, na qual ele trata de maneira até poética seu já folclórico acidente. O Roberto Carlos de hoje é outro, mas nada do que "esse cara" fizer ou disser diminuirá a importância de sua obra, queiram ou não os puristas da MPB. Bem, vocês me desculpem, mas agora eu vou me dar de presente de aniversário uma audição deste belo LP. Báai!

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Roberto CarlosRoberto Carlos (1972 – CBS)

Lado A
1. À Janela
    (Roberto Carlos Erasmo Carlos)
2. Como Vai Você
    (Antônio Marcos Mário Marcos)
3. Você É Linda
    (Roberto Carlos Erasmo Carlos)
4. Negra
    (Maurício Duboc Carlos Colla)
5. Acalanto
    (Dorival Caymmi)
6. Por Amor
    (Roberto Carlos Erasmo Carlos)
Lado B
1. A Distância
    (Roberto Carlos Erasmo Carlos)
2. A Montanha
    (Roberto Carlos Erasmo Carlos)
3. Você já me Esqueceu
    (Fred Jorge)
4. Quando as Crianças Saírem de Férias
    (Roberto Carlos Erasmo Carlos)
5. O Divã
    (Roberto Carlos Erasmo Carlos)
6. Agora Eu Sei
    (Édson Ribeiro Helena dos Santos)

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Ouça o LP na íntegra aqui:


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