sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 113) O homem e seu falo, digo, carro

O homem ia a pé atravessando o deserto de sua existência, até que um dia percebeu que podia subjugar alguns animais, e a partir daí sua vida nunca mais foi a mesma. Cavalos, burros, camelos, elefantes e mais uns tantos exemplares do reino animal, escravizados, passaram a gastar a vida levando em seu lombo esse outro animal esquisito que caminha sobre duas patas. A roda do tempo girou e a coisa foi se sofisticando, até chegarmos ao dia de hoje, que nos oferece uma gama de modelos de automóveis pra todos os gostos e/ou bolsos. Porém, se nos primórdios se tratava de necessidade, hoje esse novo animal de quatro patas que nos leva pra onde quisermos (desde que o embebedemos) há muito deixou de ser uma necessidade pra se transformar em sinônimo de status.

Alguns dizem (e lhes dou razão) que um automóvel hoje é tão importante pro homem, que representa mesmo a extensão de seu falo. Há bem pouco tempo, só os ricos podiam possuir um carro. Hoje esse sonho de consumo, ou melhor, de poder, está ao alcance de todos que se predisponham a pagá-lo em infinitas prestações. Um sujeito pode viver no aluguel, ou mesmo morar em um barraco, mas um carro é imprescindível pra que ele seja visto pela sociedade (principalmente pelos vizinhos que estão com o nome sujo) como um vencedor. Atrás de um volante ele pode pegar mulher, pode se fazer de piloto de corrida e ultrapassar todos os veículos a sua frente, como se se tratassem de adversários, e mais, pode pegar a estrada e "voar", como diz a canção, "só pra ver até quando o motor aguenta".

Esse desejo é incutido no indivíduo já desde sua mais tenra infância. Tenho um primo que, quando pequeno, nem mesmo brincava de ser motorista: brincava de ser um carro! Freud explica. Seu pai, quando comprou o primeiro carro, não ia mais nem mesmo à esquina a pé. Enfim, não os culpo, cada um com seus sonhos. Já eu, tenho cá pra mim que devo ser alguma espécie de retardado mental, pois nunca tive orgasmos sonhando com (ou vivenciando) tais prazeres. Vivi muito bem sem carro até meus 20 e poucos anos, em parte por culpa dos livros, pois sabia que não os poderia ler enquanto dirigisse. Mas eu era jovem, e, mesmo sem sentir esse tesão todo, acabei comprando um pra ficar bem na fita. 

Confesso que gostei da experiência. Sobretudo porque me possibilitou ser dono das madrugadas, não ficar mais dependente de caronas ou dos preços exorbitantes dos táxis. Só que aí, passada a lua de mel, começou o longo período de traições. Sim, porque carro pode até manter um relacionamento estável com um motorista, mas será sempre sem amor, porque seu coração pertence mesmo aos mecânicos. Desde a primeira vez que tive a infeliz ideia de apresentar um carro meu a um desses destruidores de relações automotoras, pronto, acabou-se o sossego! Não passava um mês... que mês o quê? Não passava uma semana sem que eu precisasse ir lá, tipo corno conformado, levá-lo pela mão àquele engraxado antro de amor. Se eu fosse político, abriria uma CPI pra investigar tais profissionais, pois seguramente há mutreta aí.

E então, com o coração partido, divorciei-me de meu último carro, vim morar no centro e, de lá pra cá, vivo muito bem, obrigado. Não digo que não tenha minhas recaídas, mas nada que um trago não resolva. Inclusive, por falar nisso, se restava em mim ainda alguma dúvida, a Lei Seca veio demovê-la de meus ébrios pensamentos. Claro que às vezes me sinto um tanto inferiorizado quando alguém, ao saber que sou motorista abstêmio, faz aquela carra de horrorizado, como se eu fosse portador de alguma doença contagiosa, mas depois, quando penso em IPVA, seguro, pedágio, inspeção veicular etc., o sentimento de inferioridade passa. Daí sou eu que lanço um olhar de reprovação pra tal sujeitinho mais "maria vai com as outras" e, sem falar nada, penso: "sou folgado e moro perto."

Pois bem, resolvi escrever esta ode aos desmotorizados após ler tantas reclamações a respeito das medidas que o prefeito Haddad vem implantando no intuito de melhorar o trânsito de São Paulo. Vejam bem, estamos vivendo uma fase de experiência, é claro que algumas coisas não funcionarão, mas eu acho melhor errar tentando acertar que não fazer nada. Afinal, o problema do trânsito de São Paulo já é algo quase folclórico, vem de priscas eras. E grande parte dessa problemática sem solucionática reside no fato de que paulistano adora reclamar... confortável, sozinho dentro de seu veículo, com ar-condicionado, vidro fechado e som no talo. Ah, e, claro, com a mão esquecida na buzina, pois aprendeu desde criança que buzinando o trânsito melhora.

Agora tiremos um segundinho o olho do umbigo (e a mão da buzina) e pensemos na enorme massa que pega diariamente trem, metrô e ônibus. Pensou? Pois é, meu fofo, em vez de chorar de barriga cheia, como em outra canção, que tal, só a título de experiência, experimentar uma vez ou outra deixar o falo, digo, carro em casa e se unir à boiada, digo, massa? Tenho certeza de que você sobreviverá. Talvez até perca esse excesso de gordura localizada típica de quem passa o dia todo sentado. Ou então invente estratégias, socialize o veículo e leve dois ou três colegas ou vizinhos pro trabalho e cobre um valor x. Quando a cabeça existe pra algo mais que servir de plantação de cabelo, saídas sempre há. No dia em que a maioria dos solitários motorizados se unirem à massa, um grande passo terá sido dado. 

Quer uma dica? Há algumas cidades mundo afora onde as pessoas trocaram o carro pela bicicleta. Hum, pensando bem, por aqui não funciona, algum motorista pode levar seu braço embora... Mas, ó, você, que é uma pessoa culta e bem-informada (lê até blogues!), deve saber que em muitas metrópoles de primeiro mundo o automóvel é usado apenas em fins de semana, pois até funcionários com altos cargos (desses que aqui têm nojo de povão) usam transporte coletivo. Tóquio é um exemplo clássico. Claro que por aqui, em pleno século XXI, a abrangência do metrô ainda é muito limitada, mas dá pra, de repente, ir de carro até uma estação, não dá? Agora, se você é desses que se julgam melhores que os outros, desculpe qualquer coisa. Vou sair de fininho e abrir espaço pra seu possante. E tenha um bom congestionamento.


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