Devo estar ficando velho. Não tenho mais paciência pra certos tipos de chamarizes. Se eu fosse um cavalo, seria daqueles que insistiriam na teimosia de permanecer empacados mesmo ante um torrão de açúcar. É com esse estado de ânimo que venho escrever sobre o que não (ou)vi. Confesso: não assisti a nenhuma edição do tão comentado The Voice Brasil. Pra começo de conversa, já tomei birra do nome, que não está 100% nem em inglês nem em português. Sim, porque ou seria The Voice Brazil ou, sei lá, A Voz do Brasil. No caso da segunda opção, já temos o homônimo – e já folclórico – programa de rádio; no caso do primeiro, o público ao qual se destina acharia estranho esse Brasil com Z, visto sermos um país de monoglotas. Engraçado é que o mesmo público que acharia estranho o tal Z em nenhum momento acha estranhas as interpretações americanizadas e/ou em inglês.
E aqui entra um dos pontos delicados de que vim tratar. Vejam, gosto de dizer que não critico pessoas, critico tendências. Um cidadão tem todo o direito de cantar como bem lhe aprouver (e as cordas vocais permitirem), e, num país em que a tevê e o rádio (sem falar na internet) nos bombardeiam de lixo, é perfeitamente compreensível que nossos jovens tenham perdido (ou melhor, nunca tenham tido) as boas referências no quesito voz brasileira. Só os mais curiosos (como eu) ou os sortudos filhos de pais que tiveram acesso à boa música brasileira sabem que existiram Elizeth, Elis, Nara, Gal... Portanto, criticá-los é criticar o surdo por não ouvir. Não é essa a questão. O buraco é mais embaixo. A parada mora na obrigatoriedade da pasteurização sonora. Mais ou menos como acontece nos tantos festivais que ocorrem Brasil afora (ou adentro, como queiram).
Já devo ter contado aqui esta história, mas vale a pena recontá-la, pois ilustra bem o assunto. Certa vez, num desses tantos festivais dos quais participei (acompanhando Kana na condição de marido/parceiro, deixemos claro, jamais soltando a voice), conheci um compositor bacana, do Norte, com o qual fiz logo amizade. Esse camarada era um bicho-papão, em nove entre dez festivais dos quais participava era premiado. E sempre com umas canções regionais que exaltavam sua aldeia. Até aí tudo bem, louvável até, visto que bem pouca coisa boa do Norte ultrapassa as fronteiras de região. O problema era que ele mesmo me disse que essas canções não representavam seu estilo, serviam apenas pra ele ganhar um troco. Seu lance era uma coisa mais Lenine. Pensei: o cara vem lá do Norte pra cantar um som que não o representa?
... No mais, se seu lance era "coisa mais Lenine", qual seria REALMENTE o som dele? Mas deixemos o moço de lado, o que queria dizer é que, como ele, há muita gente nos festivais, e principalmente no tal do The Voice – que é o assunto do qual viemos tratar –, que deve pagar esses micos. Vejamos: se fulano canta bem, é afinado, possui emoção, mas não se esgoela nem faz malabarismos vocais, não passa da primeira fase. O que me faz pensar que, de João Gilberto a Mônica Salmaso, um sem-número de cantores brasileiros deu a maior sorte de ter surgido em outra época. E sejamos sinceros: não cansa os ouvidos ver uma pessoa se arrebentando pra cantar algo que outro cantaria (e talvez até emocionaria mais) de forma mais econômica? O próprio Roberto Carlos, nosso ídolo pop maior, nunca precisou se esganar pra conquistar plateias.
Ou seja, o problema não são os candidatos, é o formato. Claro, estamos falando de Rede Globo, e ousadia não é o forte da emissora, pois não dá ibope. Trata-se de entretenimento, não há nenhum compromisso do programa com a qualidade e, mais, a propagação da música brasileira. Além do mais (e aqui entramos em outro ponto), eu pergunto: pra que tantas vozes novas a serviço de tanta música velha? Há uma piada manjada que diz que um cara, passando por uma dessas lojas que vendem aves, gostou do canto de um pássaro pomposo, perguntou o preço e quis logo levá-lo. Só que o dono disse que ele teria que levar também outro pássaro, este, miúdo, meio encolhido, feinho mesmo. Quando o cliente perguntou o motivo de tal aquisição, o dono disse: "É o compositor. Sem ele, o outro não canta."
Assim sendo, penso que seria muito mais produtivo e benéfico a todos (sobretudo à nova geração de compositores que vive por aí subaproveitada) que se resgatassem os festivais, mesmo que pra isso tivessem de mudar cenário, regras e o que fosse preciso, pra apagar o velho ranço e atrair a atenção do público novo. Claro que há interesses escondidos por trás da mesmice desses concursos de novos intérpretes, visto que rola por trás uma grana grande no que se refere a direitos autorais. Vejamos: por que ao menos não fazem esses tantos candidatos a ídolos pop cantarem canções novas? Hem? Não é estranho que, em pleno século XXI, com uma série de compositores cheios de viço espalhados por esse Brasilzão, ainda se precise ouvir um Hallelujah? Sou admirador do velho Cohen, mas convenhamos...
Pra terminar, adianto que fui ao youtube atrás de vídeos dos quatro finalistas, pra não dizer "não (ou)vi e não gostei". Claro que encontrei o que esperava: bons cantores, seguros, cheios de técnica, mas que – à exceção de Lucy Alves, a cantora sanfoneira – podiam ter saído de um programa estadunidense (e um saiu mesmo). A impressão que dá é que agora, com o Brasil em plena ascensão, em vez de mostrarmos ao mundo nosso potencial, preferimos tentar ser os novos EUA. Tivéssemos um pingo de amor-próprio, a paraibana Lucy Alves teria vencido com um pé nas costas (entre os quatro finalistas, claro, pois os outros não vi). Mas minha maior tristeza foi saber que o vencedor, conterrâneo meu, não trazia no canto um pingo de molejo cearense. Fiquei com saudade dos tempos em que Fagner, Belchior, Ednardo, Amelinha, entre outros arretados, eram as verdadeiras vozes do Brasil. Sinal dos tempos?
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Leozito, lembra-se do mote ' o que é bom para os EUA é bom para o Brasil"?
ResponderExcluirPois, meu caro, esse 'ainda' é o mote da Globo. E tá cheio de brasileiro xiita, que odeia o governo atual dizendo que preferiria ter nascido gringo.
Esse amor-próprio musical/cultural ao qual você se refere, já caiu há tempos. Pra mim, o jeito é cuidar das novíssimas gerações, provavelmente as crianças até 5 anos.
É, meu caro Adolar, de um lado temos os United States of Globo, do outro a Unidos do Mundo Cão. Tá difícil encontrar programação que nos represente. Programação que forme, então, aí já é esperar por milagre. Sigamos tocando nosso barco, contra a corrente, que é sempre a melhor direção.
ExcluirAbraço,
Léo.
O pior, amigo Léo, é ter que ler impropérios dos que defendem esse tipo de "aculturamento" (sic) da música brasileira, muitos desses impropérios vindo de artistas que costumam reclamar da pouca visibilidade de suas obras musicais.
ResponderExcluirDenilson, meu caro:
ExcluirHá uma certa parcela de artistas anônimos que procura sempre se postar ao lado de quem está em evidência, pra ver se ao menos sai na foto. Esse deve ser o raciocínio de muitos desses "seres pensantes" do país do BBB.
Abraço,
Léo.
tivesse vc visto o Marcos Lessa no you tube além do The Voice e vc teria visto bastante música nova e autoral dele e do nosso pessoal aqui do Ceará.. :)
ResponderExcluirAveriguá-lo-ei, querida Apá. Tenho certeza de que há muita gente boa "além do The Voice". Sou, inclusive, testemunha ocular de muitos deles.
ExcluirBom te ler por aqui!
Beijos,
Léo.
Meu caro Carlos Machado, salve!
ResponderExcluirNossa linha de raciocínio coincide. Veja você: no que se refere ao programa em si, a Globo paga pra usar o formato, assim como no caso do BBB e de outros importados. É a preguiça falando mais alto. Ela vê o que dá certo lá fora, importa e paga. Mais esperto foi Silvio Santos, que "adaptou" sua "Casa dos Artistas" pra não pagar.
Mas, voltando à música, o que não gera interesse midiático não vale o investimento, segundo o pensamento reducionista deles. Compositores são bem menos interessantes que canários. Azar o nosso.
Mas agradeço pela bela exposição.
Abraço,
Léo.
Querido parceiro, sempre antenado! Acontece que este modelo de programa é universal, tipo, Ebemol (Holandesa, salvo erro) a tal que lançou o big brother. Eu nao vi o tal the voice Brasil, mas acredito ser parecido com os tais ídolos, chuva de estrelas, etc, etc. Onde os participantes precisam imitar os interpretes das composiçoes. Confesso nao ter paciência para isso, meus espírito nao suporta. Música americana, da boa, ouvia e continuo ouvindo, alias, música verdadeira" nao tem nacionalidade. Mas que os americanos conseguiram minar o planeta com a interpretaçao do grito, isso la é verdade! Abraçao
ResponderExcluirPois é, Pedro, também não tenho lá muita paciência pra isso, mas o falatório tava tão grande, que fui dar uma espiada, só pra ter base pra escrever uma crítica. Falou bem, "música verdadeira não tem nacionalidade", porque, como diz Fernando Pessoa, ser universal é falar de sua aldeia. Por essas e outras não vejo motivos pra um programa de vozes brasileiras alardear a aldeia americana... rs
ExcluirAbração,
Léo.