domingo, 11 de janeiro de 2015

Crônicas Desclassificadas: 154) A Comissão Nacional da Verdade vs. o "outro lado"

Um ser humano em pleno domínio de suas faculdades mentais que sai às ruas bradando pela volta da ditadura é, em minha opinião, ou mal-intencionado ou um completo imbecil. No caso do mal-intencionado, é óbvio que tem interesses particulares pra soltar tal brado; pode pertencer à família de algum militar ou ser ele próprio um (ou ainda pode ser simplesmente um inimigo da liberdade de expressão e dos direitos humanos). Se bem que também nesse caso uma coisa não exclui a outra: não é impossível (diria mais, é até provável) que ele seja igualmente um imbecil. A diferença é que se trata de um imbecil que sabe pelo que está bradando. Já o completo imbecil é, na maioria das vezes, um mal-informado, pra não dizer um ignorante... e não vou chamá-lo de quadrúpede pra não ofender a quem de direito use as quatro patas.

O irônico da coisa é que essas pessoas que saem às ruas pedindo intervenção militar só têm esse direito porque vivem num país democrático. Se vivêssemos ainda numa ditadura, tal aglomeração seria imediatamente entendida como baderna, o que faria a polícia (ou o exército) entrar em ação e descer o cacete. Portanto, parece a história da solteira que sonha em ser mulher de malandro. Ou seja, o livre que deseja a mordaça. Donde constatamos o paradoxo – pra não dizer a ignorância – de tal manifestação. A democracia, por pior que seja, é, ainda, entre todos os regimes políticos já testados, o menos ruim. Afinal, é o único regime no qual tanto o esclarecido quanto o ignorante podem, com igualdade de direitos, sair às ruas reclamando contra o que lhes dê na veneta sem, com isso, atentar contra a própria vida.

Quem pede intervenção militar defende ou ignora a tortura, esse método tão monstruoso quanto ineficaz pra se conseguir uma confissão. Além do mais, um torturador parte do princípio de que todo torturado é culpado, portanto não quer que este lhe diga a verdade, e sim o que ele, torturador, deseja ouvir. É o exato oposto do princípio que diz que todos são inocentes até que se prove o contrário. Não à toa, nesses 21 anos que vivemos sob o regime militar, tivemos inúmeros casos de inocentes que foram torturados e mortos, muitos dos quais permanecem desaparecidos até hoje. E eu pergunto: quem, em sã consciência, gostaria de viver num sistema tão opressivo como esse? Afinal, ao sair à rua, ninguém estaria totalmente tranquilo. Bastaria você ser confundido com algum procurado e... vai saber se um dia ainda voltaria pra casa. 

Claro, sempre há os corajosos de plantão, como é o caso do compositor Bobã... digo, Lobão, que trocou o rock e (aparentemente) as drogas pelo discurso moralista. Logo ele, que dizia preferir viver dez anos a mil a mil anos a dez. E agora tá devagar quase parando. Aliás, ele não vê nada de mais em uns milicozinhos arrancarem umas unhinhas de uns suspeitinhos. Se bem que é fácil falar hoje, distante dos fatos e da época. Duvido que ele fosse assim tão simpatizante se tivesse aprontado o que costumava aprontar, mas uma década antes. Outra figura digna de nota é o deputado Jair Bolsonaro, que, a despeito do ódio que emana, atualmente parece um inocente Tiririca da direita, um pit bull banguela; mas imaginem do que um sujeito desses seria capaz com a volta da ditadura... Sairia estuprando até árvore! Se bem que cão que ladra...

Agora, entremos numa questão mais complexa. A Comissão Nacional da Verdade, que entregou no fim do ano passado o resultado de seus trabalhos, foi considerada por muitos direitosos parcial, pois só investigou crimes cometidos pelo Estado, e, dizem, há pouco mais de uma centena de mortos pelos insurgentes. Aqui, deparamo-nos com uma balança capenga. Em todos esses anos de governo ditatorial, houve perseguições, prisões a torto e a direito, torturas, estupros, assassinatos (inclusive de inocentes, como já relatei), enfim, métodos de deixar orgulhoso o Führer. E esses camaradas nunca foram julgados. Em contrapartida, os que se rebelaram tiveram sua cota de punição, sendo a mais leve delas o "direito" ao exílio. Então, pois, se ainda há mortos do lado de lá que não foram julgados, com todo o respeito, não o foram por incompetência do Estado à época.

Vou além: todos sabemos que aqueles jovens que pegaram em armas durante esse período negro de nossa história o fizeram por amor à liberdade. Claro, havia muita ingenuidade no ar, acreditava-se ainda que Cuba era o melhor dos mundos; contudo, se eles não tivessem dado o primeiro passo, seria possível que até hoje estivéssemos vivendo sob tal regime. Hoje, vemos nossos jovens zanzando pelas ruas, sem rumo, egoístas, dilacerando seus corpos como uma forma de se rebelar contra algo que não sabem bem o que é, tentando, assim, exercer uma muda espécie de crítica que é a única que lhes está à mão, visto que, intelectualmente falando, não têm algo por que lutar. E eles só podem se dar esse luxo porque décadas atrás os que tinham sua idade abriram mão de prazeres burgueses pra lutar por um país livre.

Tenho lido artigos e depoimentos dos dois lados. Muito se tem falado dos cento e poucos mortos do "outro lado", as tais "vítimas das vítimas"; muito se tem falado da tal "bolsa-ditadura", indenização paga a perseguidos políticos ou a seus familiares; enfim, muito se tem falado a respeito da unilateralidade dos trabalhos da CNV. Mas esses que falam não conseguem entender uma coisa: tal comissão é uma forma de o governo fazer um mea-culpa. Os tais rebeldes – ou terroristas, como prefiram – já foram devidamente presos, torturados, estuprados ou até mortos por um governo infame, que usava táticas de guerra pra lidar com uns poucos gatos pingados; no entanto, até hoje jamais se buscou fazer justiça em relação aos excessos desse governo autoritário, que julgava e condenava nos "porões". E me vêm com esse nhem-nhem-nhem de unilateralidade?

Pra terminar, umas palavrinhas a respeito da Anistia de 1979: esta foi uma lei promulgada pelo então presidente da República João Batista Figueiredo – frise-se: ainda durante o período ditatorial – pela qual se concedia o "perdão" a todos aqueles que cometeram crimes políticos entre 1961 e aquele ano, independente do lado em que se encontrassem. Naquele momento, tal lei foi importante, pois muitos exilados puderam retornar ao País. Contudo, passados tantos anos, é importante atentar ao fato de que, no longo prazo, tal lei beneficiou mais àqueles que estavam em vias de deixar o poder que a seus opositores. Porque, ao passo que estes já haviam sido punidos ao bel prazer do sadismo vigente, aqueles puderam gozar de liberdade e lavar as mãos (sujas de sangue) em relação à carnificina que durante mais de duas décadas foi praxe. Espero que o governo atual tenha fibra pra fazer algo a respeito antes que não sobre nenhum carrasco vivo. Não dá pra seguir em frente de cabeça erguida sem acertar as contas antes com o passado.

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2 comentários:

  1. Ótimo texto. E os ultra conservadores, cada vez mais próximos do poder, apoiados por uma parte da população, alienadamente (ou nem tanto), conservadora também. A julgar pelo recheio que se movimenta em nosso congresso, logo percebemos um Brasil reacionário e defensor de cruéis discursos fundamentalistas, infelizmente, o que mais me entristece é minha falta de surpresa. Continuo caminhando, porém com um medo, danado, dessa movimentação ao meu redor.

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    1. Olá, Vanessa! Bem-vinda a meu espacinho multicultural!

      É, querida, nosso congresso anda cada vez mais congesso. Por isso devemos estar atentos, pois a imbecilidade coligada à rapinagem pode fazer um estrago ainda maior do que o que tem feito. E o pior é que andamos mal de esquerda...

      Abração,
      Léo.

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