Aproveito meu momento de preguiça mental e resgato um texto que estava comigo
havia muito e que eu não achava onde enfiar. Explico: convidei o amigo
Carlos Machado, poeta, jornalista e editor do ótimo (recomendo!) Alguma
Poesia (visite aqui), a escrever sobre algum disco pra coluna Grafite na Agulha. Ele topou, mas acabou me enviando um excelente estudo, mas
sobre uma única canção(!). Nesse caso, não caberia na coluna, e, apesar
de ótimo, ficou o texto guardado, esperando melhor ocasião. Hoje, por
acaso, lembrei-me dele e pensei em trazê-lo pro Crônicas Classificadas. E
por que não? Assim, senhoras e senhores, convido-os a se deliciarem com
a bela prosa "machadiana" (esses Machados são afiados!) que trata de
uma canção antiga, mas com um tema atual. Fosse composta hoje, talvez se
chamasse O Computador. Deleitem-se:
A peleja do homem da rua com a televisão
Por Carlos Machado
Dia desses, eu vinha no carro ouvindo música. Faço seleções de MP3, ponho num pendrive e deixo lá tocando. De repente, entrou o samba A Televisão, composto pelo Chico Buarque quando ainda se assinava Chico Buarque de Hollanda, com L duplo. Originalmente, foi gravado no elepê Chico Buarque de Hollanda - Vol. 2, de 1967. Nessa época o autor tinha 23 anos.
Por Carlos Machado
Dia desses, eu vinha no carro ouvindo música. Faço seleções de MP3, ponho num pendrive e deixo lá tocando. De repente, entrou o samba A Televisão, composto pelo Chico Buarque quando ainda se assinava Chico Buarque de Hollanda, com L duplo. Originalmente, foi gravado no elepê Chico Buarque de Hollanda - Vol. 2, de 1967. Nessa época o autor tinha 23 anos.
Trânsito parado, fiquei prestando atenção à letra. Quem cantava não era o dono da canção. Era uma intérprete pouco divulgada, a brasiliense Adriana Maciel. Na letra desse samba, isso que a gente discute até hoje ― os efeitos da televisão na cultura ― o juvenil Francisco já havia sacado desde ali, quando os aparelhos de TV ainda estavam chegando aos lares brasileiros. A primeira estrofe:
O homem da rua
Fica só por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa não vai não
Em casa a roda
Já mudou, que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão
No céu a lua
Surge grande e muito prosa
Dá uma volta graciosa
Pra chamar as atenções
O homem da rua
Que da lua está distante
Por ser nego bem falante
Fala só com seus botões
O sujeito fica na rua só por teimosia porque não acha uma
boa ir para casa. Ao mesmo tempo, não encontra companhia na rua porque todo
mundo está em casa. Fazendo o quê? Vendo TV. Em casa, continua a letra, “a roda
já mudou”. Creio que ele se refira à roda de samba, à roda de amigos, à roda da
própria família. Versos de primeira, concisos e bem tramados: “Em casa a roda /
Já mudou, que a roda muda / A roda é triste, a roda é muda / Em volta lá da
televisão”. Sensacional essa rima com a
mesma palavra, uma vez como verbo e a outra como adjetivo.
E segue a letra. Claro, se tem rua, também tem lua: ela “Surge grande e muito prosa / Dá uma volta graciosa / Pra chamar as atenções”. Esse “chamar as atenções” parece amplificar o exibicionismo da lua. Mas “o nego bem falante”, que é o homem da rua, nem presta mais atenção à lua, “fala só com seus botões”. Anotem essa expressão: seus botões.
E segue o samba. Lá vem a segunda estrofe:
E segue a letra. Claro, se tem rua, também tem lua: ela “Surge grande e muito prosa / Dá uma volta graciosa / Pra chamar as atenções”. Esse “chamar as atenções” parece amplificar o exibicionismo da lua. Mas “o nego bem falante”, que é o homem da rua, nem presta mais atenção à lua, “fala só com seus botões”. Anotem essa expressão: seus botões.
E segue o samba. Lá vem a segunda estrofe:
O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão
No céu a lua
Que não estava no programa
Cheia e nua, chega e chama
Pra mostrar evoluções
O homem da rua
Não percebe o seu chamego
E por falta doutro nego
Samba só com seus botões
Vejam só o jogo de cintura do letrista. Ele usa
magistralmente os modos populares de dizer as coisas. O tamborim “já pode
esperar sentado” porque a escola (de samba) não vem. Essas coisas dão um molho
todo especial à letra. Por que a escola não vem? Porque a moçada está
aprendendo um “batuque diferente” pela TV. Deve ser o rock’n’roll, o iê-iê-iê.
Quem quer saber de samba?
E surge mais outra expressão popular bem encaixada: “A lua, que não estava no programa”. Aqui a TV, mesmo oculta, continua em cena. A pobrezinha da lua vem toda cheia e nua, bem saidinha, e nada. O homem da rua nem tchum. Esse bloco da letra é rico em sons sibilantes. Primeiro, a lua “CHeia e nua, CHega e CHama”. Ouve-se aí quase o chocalhar das platinelas de um pandeiro. Depois, como ele não dá bola para a lua e não aparecem companheiros para batucar o tamborim ou bater papo, o homem da rua “Samba Só com Seus BotõeS”. Portanto, ele continua matutando sozinho. E os botões, que fecharam a primeira estrofe, fecham também a segunda.
Agora, o bloco final:
E surge mais outra expressão popular bem encaixada: “A lua, que não estava no programa”. Aqui a TV, mesmo oculta, continua em cena. A pobrezinha da lua vem toda cheia e nua, bem saidinha, e nada. O homem da rua nem tchum. Esse bloco da letra é rico em sons sibilantes. Primeiro, a lua “CHeia e nua, CHega e CHama”. Ouve-se aí quase o chocalhar das platinelas de um pandeiro. Depois, como ele não dá bola para a lua e não aparecem companheiros para batucar o tamborim ou bater papo, o homem da rua “Samba Só com Seus BotõeS”. Portanto, ele continua matutando sozinho. E os botões, que fecharam a primeira estrofe, fecham também a segunda.
Agora, o bloco final:
Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro
Não faz mais esforço não
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
E vai ligar os seus botões
No céu a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões
Ninguém mais quer saber de lua, nem de seresta (em Roda
Viva, do mesmo ano, essa ideia reaparece: “Não posso fazer serenata / A roda
de samba acabou”). Enfim, a lua era
dos namorados. Nesse momento, 1967, o romântico satélite já passara a ser dos
russos e dos americanos, da corrida espacial e da guerra fria. Então, “quem
quer riso, quem quer choro” (os amantes, os namorados) nem precisa mais se
envolver com as ondas complicadas do amor. Basta ligar a TV. E aí vem uma
profecia:
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
Agora, as aliterações são em S e depois em V: “Vendo a
Vida mais ViVida / Que Vem lá da teleVisão”. E a própria vida vai perder a fé
em si mesma e vai passar a acreditar na vida que vem da TV. Pronto, se até a
vida se rendeu, a massa desandou de vez. Só resta passar a régua e fechar. Eu
falei para ficarmos de olho nos botões. Eles voltam agora. Sendo um “nego
conformado”, o homem da rua percebe que não tem jeito. Dá as costas à lua (que
a essa altura já se tornou o símbolo de tudo: do amor, do namoro, da amizade,
do samba, do bate-papo) — “e vai ligar os seus botões”!
Alô, fãs do futebol: com essa, só falta a gente sair correndo, dar um salto e gritar: goool! Os botões se deslocam de lugar. Transferem-se de um plano abstrato e indefinido para algo muito concreto. Deixam de ser as conjecturas solitárias do homem da rua e transformam-se nos controles do aparelho de televisão. (Ô semioticistas, que nome se dá a essa prestidigitação?) A lua também se rende. Míngua e se refugia nos sertões. “Não há, ó gente, ó não / luar como este do sertão.”
Há ainda uma última transformação. Se a lua é o símbolo do namoro, do bate-papo, da roda de samba ― de tudo aquilo que se perdeu ―, o homem da rua também não é mais aquela pessoa lá, matutando sozinha. Na verdade, ele é você e eu. Nós somos o homem da rua.
*
Respeitáveis membros do Júri: que nota dareis a este singelo sambinha, que nunca fez sucesso nenhum e sempre ficou na condição de uma musiquinha de lado B dos elepês?
Só sei dizer que não me contive. Ao ouvir a música ― que obviamente eu já conhecia, mas não lembrava ―, logo pensei: preciso, urgentemente, conversar com alguém sobre essa letra. Corri e escrevi este texto e o enviei por e-mail a alguns amigos.
*
Antes de terminar, peço desculpas aos muitos músicos que frequentam este blog. Sei que cometo ofensa grave ao entrar em recinto de músicos e só falar em letra. Entenderei perfeitamente quem apontar essa falha. Afinal, uma canção constitui um todo indissociável de melodia + letra + arranjos etc. Não pode ser analisada apenas por uma das partes. Mas relevem: não sou músico. Minha praia é o (X do) poema.
A versão original, com Chico Buarque, do LP Chico Buarque de Hollanda – Vol. 2 (1967):
E a gravação que me levou a escrever esta crônica: Adriana Maciel, do CD Poeira Leve (2004):
Alô, fãs do futebol: com essa, só falta a gente sair correndo, dar um salto e gritar: goool! Os botões se deslocam de lugar. Transferem-se de um plano abstrato e indefinido para algo muito concreto. Deixam de ser as conjecturas solitárias do homem da rua e transformam-se nos controles do aparelho de televisão. (Ô semioticistas, que nome se dá a essa prestidigitação?) A lua também se rende. Míngua e se refugia nos sertões. “Não há, ó gente, ó não / luar como este do sertão.”
Há ainda uma última transformação. Se a lua é o símbolo do namoro, do bate-papo, da roda de samba ― de tudo aquilo que se perdeu ―, o homem da rua também não é mais aquela pessoa lá, matutando sozinha. Na verdade, ele é você e eu. Nós somos o homem da rua.
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Respeitáveis membros do Júri: que nota dareis a este singelo sambinha, que nunca fez sucesso nenhum e sempre ficou na condição de uma musiquinha de lado B dos elepês?
Só sei dizer que não me contive. Ao ouvir a música ― que obviamente eu já conhecia, mas não lembrava ―, logo pensei: preciso, urgentemente, conversar com alguém sobre essa letra. Corri e escrevi este texto e o enviei por e-mail a alguns amigos.
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Antes de terminar, peço desculpas aos muitos músicos que frequentam este blog. Sei que cometo ofensa grave ao entrar em recinto de músicos e só falar em letra. Entenderei perfeitamente quem apontar essa falha. Afinal, uma canção constitui um todo indissociável de melodia + letra + arranjos etc. Não pode ser analisada apenas por uma das partes. Mas relevem: não sou músico. Minha praia é o (X do) poema.
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A versão original, com Chico Buarque, do LP Chico Buarque de Hollanda – Vol. 2 (1967):
E a gravação que me levou a escrever esta crônica: Adriana Maciel, do CD Poeira Leve (2004):
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A letra na íntegra:
A TELEVISÃO
Chico Buarque
O homem da rua
Fica só por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa não vai não
Em casa a roda
Já mudou, que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão
No céu a lua
Surge grande e muito prosa
Dá uma volta graciosa
Pra chamar as atenções
O homem da rua
Que da lua está distante
Por ser nego bem falante
Fala só com seus botões
O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão
No céu a lua
Que não estava no programa
Cheia e nua, chega e chama
Pra mostrar evoluções
O homem da rua
Não percebe o seu chamego
E por falta doutro nego
Samba só com seus botões
Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro
Não faz mais esforço não
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
E vai ligar os seus botões
No céu a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões
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Valeu, queridona! Palmas para o autor!
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