Soube da morte de Marito num sábado, véspera de uma viagem que tinha agendado fazia tempos. As lágrimas me pegaram de jeito; dias depois, transformei-as na homenagem abaixo, num tempinho que encontrei durante essa viagem. Contudo, o tempo passou e perdi a oportunidade de publicá-la. Assim, optei por esperar que chegasse a data de seu aniversário pra fazê-lo. E eis que a data chegou e, cumprindo a promessa que fiz a mim mesmo, venho oferecer flores em morte ao mano Marito, com a consciência tranquila de quem tantas vezes lhe ofereceu também em vida. Feliz aniversário, don Maritón! A festa aí no céu dos compositores deve estar sendo de arromba!
A primeira vez que perdi um amigo pra pálida dama foi traumático. Eu era jovem, e morte era algo que não fazia parte de minha realidade. Eu não morria; meus amigos e parentes não morriam; morte era um acontecimento que passava a outros, e a maioria das vezes apenas no cinema. Creio que não fui o único. Jovens em geral têm essa ilusão de eternidade. Todos nos sentimos meio que vampiros de filmes pra adolescentes. Aí o tempo passa, a fase adulta chega como uma bigorna que caísse em nossas cabeças, e com ela chegam também os fracassos, as desilusões... e a morte.
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A primeira vez que perdi um amigo pra pálida dama foi traumático. Eu era jovem, e morte era algo que não fazia parte de minha realidade. Eu não morria; meus amigos e parentes não morriam; morte era um acontecimento que passava a outros, e a maioria das vezes apenas no cinema. Creio que não fui o único. Jovens em geral têm essa ilusão de eternidade. Todos nos sentimos meio que vampiros de filmes pra adolescentes. Aí o tempo passa, a fase adulta chega como uma bigorna que caísse em nossas cabeças, e com ela chegam também os fracassos, as desilusões... e a morte.
E o pior da morte é que sempre nos pega no contrapé, é dada a imprevisibilidades. Como aconteceu com meus amigos Madan, Zé Rodrix, Lucia Helena Corrêa e mais uns tantos. Como aconteceu com Belchior, que não era meu amigo, mas era como se fosse, visto que suas canções eram tão íntimas minhas. Alguns, ela respeita tanto, que demora anos pra se resolver a levá-los, como fez com dois de meus escritores favoritos: José Saramago e Mario Benedetti. Já em relação a outros, é de uma crueldade ímpar, como foi o caso recente de Vander Lee, que não tive tempo de conhecer pessoalmente.
E eis que agora fico sabendo que ela resolveu levar pra junto de si meu grande amigo Marito Correa. Ah, Marito... Que figura! Quem o via sorrir pensava se tratar de um menino que crescera demais. E era justamente isso que ele era: um menino grande. Seu sorriso era o de um garoto que tivesse acabado de fazer uma traquinagem. Era um cara puro, sem maldade — mas com muita sacanagem. E, se não bastasse, era um compositor fenomenal, dono de melodias lindas e ricas e harmonias idem, bom herdeiro da bossa nova que era; além disso, discípulo de João Gilberto, sempre que cantava de novo uma canção o fazia de modo diferente. Sem falar que era um letrista de muita elegância.
Se o mundo fosse justo, o bairro da Bela Vista teria que erguer um busto pra ele, que foi um de seus filhos mais ilustres. Já tomei com ele memoráveis porres em inesquecíveis madrugadas (que acabei esquecendo, mas devido ao teor alcoólico), ouvindo-o contar muitas histórias sobre o velho Bixiga e vendo-o ser interrompido a cada dez passos pra ser cumprimentado por algum passante. E, apesar de nossa diferença de idade, não poucas vezes me peguei olhando pra ele como se eu fosse um ancião e ele um jovem.
Víamo-nos com certa regularidade, visto que éramos vizinhos, até que ele, indignado tanto com os rumos de nossa política quanto com os de nossa música, resolveu se mandar pro Rio, que, se politicamente falando não estava muito melhor que Sampa, ao menos continuava lindo, e era (é) onde, de quebra, cada nome de rua ou bairro nos lembra uma canção — ou mais de uma. Por causa dessa distância, nossa parceria não avançou muito além das dez canções (número aproximado) que compusemos juntos.
Mas, sem nenhum favor, esquecendo o fator quantidade e pensando no qualidade, acredito que Marito foi, entre todos os meus parceiros, aquele com quem errei menos, com quem as canções, na média, saíram mais certeiras. E, como cedo ou tarde, eufemisticamente falando, todos tomamos o "caminho da roça", mais uma vez cito outro parceiro, Zé Rodrix, que dizia que "o importante são as canções", pois são elas que ficam e pelas quais todo compositor espera ser lembrado. Assim, encerro esta trinca de homenagem com três petardos nossos — modéstia à parte.
Descansa, meu caro Quixote do Bixiga! Suas batalhas contra os moinhos acabaram, mas cá estou eu, um de seus tantos Sanchos Panças, continuando-a em seu lugar, só pra que você possa curtir a eternidade numa boa, sabendo que por aqui alguém continua seu legado. Ah, don Maritón, lembrei mesmo que você havia deixado uma última melodia comigo, apenas mais uma do fundo daquele baú sem fundo que sei que você deixou em algum lugar. Cuidarei com carinho desse nosso derradeiro filho. Espere por mim, mas avise a rapaziada que chegou mais cedo que eu vou, sim, mas que pretendo demorar.
E eis que agora fico sabendo que ela resolveu levar pra junto de si meu grande amigo Marito Correa. Ah, Marito... Que figura! Quem o via sorrir pensava se tratar de um menino que crescera demais. E era justamente isso que ele era: um menino grande. Seu sorriso era o de um garoto que tivesse acabado de fazer uma traquinagem. Era um cara puro, sem maldade — mas com muita sacanagem. E, se não bastasse, era um compositor fenomenal, dono de melodias lindas e ricas e harmonias idem, bom herdeiro da bossa nova que era; além disso, discípulo de João Gilberto, sempre que cantava de novo uma canção o fazia de modo diferente. Sem falar que era um letrista de muita elegância.
Se o mundo fosse justo, o bairro da Bela Vista teria que erguer um busto pra ele, que foi um de seus filhos mais ilustres. Já tomei com ele memoráveis porres em inesquecíveis madrugadas (que acabei esquecendo, mas devido ao teor alcoólico), ouvindo-o contar muitas histórias sobre o velho Bixiga e vendo-o ser interrompido a cada dez passos pra ser cumprimentado por algum passante. E, apesar de nossa diferença de idade, não poucas vezes me peguei olhando pra ele como se eu fosse um ancião e ele um jovem.
Víamo-nos com certa regularidade, visto que éramos vizinhos, até que ele, indignado tanto com os rumos de nossa política quanto com os de nossa música, resolveu se mandar pro Rio, que, se politicamente falando não estava muito melhor que Sampa, ao menos continuava lindo, e era (é) onde, de quebra, cada nome de rua ou bairro nos lembra uma canção — ou mais de uma. Por causa dessa distância, nossa parceria não avançou muito além das dez canções (número aproximado) que compusemos juntos.
Mas, sem nenhum favor, esquecendo o fator quantidade e pensando no qualidade, acredito que Marito foi, entre todos os meus parceiros, aquele com quem errei menos, com quem as canções, na média, saíram mais certeiras. E, como cedo ou tarde, eufemisticamente falando, todos tomamos o "caminho da roça", mais uma vez cito outro parceiro, Zé Rodrix, que dizia que "o importante são as canções", pois são elas que ficam e pelas quais todo compositor espera ser lembrado. Assim, encerro esta trinca de homenagem com três petardos nossos — modéstia à parte.
Descansa, meu caro Quixote do Bixiga! Suas batalhas contra os moinhos acabaram, mas cá estou eu, um de seus tantos Sanchos Panças, continuando-a em seu lugar, só pra que você possa curtir a eternidade numa boa, sabendo que por aqui alguém continua seu legado. Ah, don Maritón, lembrei mesmo que você havia deixado uma última melodia comigo, apenas mais uma do fundo daquele baú sem fundo que sei que você deixou em algum lugar. Cuidarei com carinho desse nosso derradeiro filho. Espere por mim, mas avise a rapaziada que chegou mais cedo que eu vou, sim, mas que pretendo demorar.
O IMPÉRIO DOS SENTIDOS
Em Ipanema
Ou Diadema
Nós somos naturais
Mais que dois índios,
Somos lindos
Nus, como os animais
Em Roma, na Lapa,
Rolando no mapa
Inventando capitais
Fazendo turismo
No centro do sismo
Por fora e por dentro de nós
Sobre o tatame,
Dando vexame e mais
No Oriente,
Em São Vicente
Nos pontos cardeais
Pintando o sete
No Tibet
Num zepelim, no Brás
Em Roma, na Lapa…
Olhos sem vendas
Olhos de vendavais
Seja em favelas
Ou Bruxelas
Dois bruxos orixás
Saber morrer de tanto amar
É dom de imortais
Ou Diadema
Nós somos naturais
Mais que dois índios,
Somos lindos
Nus, como os animais
Em Roma, na Lapa,
Rolando no mapa
Inventando capitais
Fazendo turismo
No centro do sismo
Por fora e por dentro de nós
Sobre o tatame,
Dando vexame e mais
No Oriente,
Em São Vicente
Nos pontos cardeais
Pintando o sete
No Tibet
Num zepelim, no Brás
Em Roma, na Lapa…
Olhos sem vendas
Olhos de vendavais
Seja em favelas
Ou Bruxelas
Dois bruxos orixás
Saber morrer de tanto amar
É dom de imortais
MUITO MAIS
Pra provar meu amor
Se eu fosse um jogador
Eu marcaria um gol contra a própria seleção
Nem que fosse com a mão
A favor da Argentina
Mas, me falta proteína
E você vale muito mais
Que a seleção
Pra provar meu amor
Se eu fosse um compositor
Seria um Tom Jobim e diria, na canção,
Sua beleza é um avião
Se eu pudesse, por um dia
Mas eu desafinaria
E você vale muito mais
Que uma canção
Pra provar meu amor
Se eu fosse um trabalhador
Trabalharia em dobro pra não lhe faltar o pão
Compraria uma mansão
Com o dinheiro do fundo
Mas eu sou um vagabundo
E você vale muito mais
Que uma mansão
Se eu fosse um jogador
Eu marcaria um gol contra a própria seleção
Nem que fosse com a mão
A favor da Argentina
Mas, me falta proteína
E você vale muito mais
Que a seleção
Pra provar meu amor
Se eu fosse um compositor
Seria um Tom Jobim e diria, na canção,
Sua beleza é um avião
Se eu pudesse, por um dia
Mas eu desafinaria
E você vale muito mais
Que uma canção
Pra provar meu amor
Se eu fosse um trabalhador
Trabalharia em dobro pra não lhe faltar o pão
Compraria uma mansão
Com o dinheiro do fundo
Mas eu sou um vagabundo
E você vale muito mais
Que uma mansão
UM MUNDO EM NÓS
Eu já falei pra você
Que, se cortarem a luz,
Fechando os olhos podemos ver
A mão do breu nos conduz
Há outra luz / na escuridão
E os olhos são / azuis
Deus, depois que fez a mulher, ordenou:
O dia é sagrado / pra se amar
Se desligarem o gás,
Secarem a água, na foz
O amor é mais / e gera outro mundo em nós
E, se o dinheiro acabar,
O mundo volta a caber
Qual flor, na palma da nossa mão,
Qual grão, na planta do pé
O éden é / qualquer lugar
Em que você / está feliz
Deus, depois que fez a mulher, ordenou
Que o dia é sagrado / pra se amar
Eu já falei pra você
Que a Terra gira em vão
Pra que correr / pra longe do coração?
Se a Terra volta pro mesmo lugar
Pra que pensar em sair?
Ela outra vez vai passar / por aqui
***
Que, se cortarem a luz,
Fechando os olhos podemos ver
A mão do breu nos conduz
Há outra luz / na escuridão
E os olhos são / azuis
Deus, depois que fez a mulher, ordenou:
O dia é sagrado / pra se amar
Se desligarem o gás,
Secarem a água, na foz
O amor é mais / e gera outro mundo em nós
E, se o dinheiro acabar,
O mundo volta a caber
Qual flor, na palma da nossa mão,
Qual grão, na planta do pé
O éden é / qualquer lugar
Em que você / está feliz
Deus, depois que fez a mulher, ordenou
Que o dia é sagrado / pra se amar
Eu já falei pra você
Que a Terra gira em vão
Pra que correr / pra longe do coração?
Se a Terra volta pro mesmo lugar
Pra que pensar em sair?
Ela outra vez vai passar / por aqui
***
Grato, Silvia. Realmente muito triste a perda. Do amigo e do artista...
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