domingo, 22 de outubro de 2017

A Palavra É: 32) Vampiro

Hoje é sábado. Aliás, já é domingo — passou da meia-noite. Ouço o barulho da chuva lá fora. Nessas noites, quando escrevo, componho, leio, ouço música, vejo um filme, bebo etc. (e esse etc. pode ser o que você imaginar) — às vezes mais de uma coisa ao mesmo tempo — e me lembro de que preciso dormir... me dá uma inveja danada dos vampiros. Quisera ser um deles e aproveitar a noite toda — a eternidade toda? Ir do livro de poesia ao filme clássico em preto e branco, lapidar aquele verso manco, ouvir um bolero instrumental — como faço agora — ou simplesmente bebericar uma vodca — como faço agora. A vida não é justa. Trabalhamos muito mais tempo do que gostaríamos (e ganhamos, em geral, muito menos do que achamos que merecemos), e durante esse tempo as horas se arrastam...

Daí, temos por descanso essas pífias 48 horas... que, tirantes as 16 (em média) que passamos dormindo, viram... sei lá... umas 13 ou 14 — não, leitores, não sou tão ruim assim de matemática (sei que são 32 — fiz as contas usando os dedos, confesso), refiro-me à sensação, não a térmica, mas a temporal. Tudo é muito rápido. Ou eu é que serei lento? Quiçá as duas coisas. Hoje, dei uma folga pra meu Kindle e tenho à mesa três livros de papel. Fui de um pra outro, de outro pra um, do terceiro pro segundo... E a vontade de engolir o mundo, de ter tudo de uma vez, me fez não fixar a atenção em nenhum dos três (em compensação, brotaram-me essas rimas involuntárias). Acabo de espirrar... Definitivamente, não sou um vampiro.

Agora, que as palavras e os pensamentos começam a se/me embaralhar (quase se/me chocando), me bateu uma preguiça de escrever. Hmmmm! Penso que, nesse momento em que rabisco, podia estar gastando meu tempo com algo melhor, mais prazeroso ou ao menos mais produtivo (estarei me repetindo?). O que significa que por ora abandonarei esta prosa. O que significa também que, quando a retome, não estará mais chovendo, não será mais sábado — aliás, domingo —, esta vodca que bebo já terá acabado, estarei ouvindo outra coisa que não esta playlist de boleros instrumentais roubada ... E sabe lá se não será mais outubro. Ou não serei mais eu... Digo, este eu de hoje, visto que estamos em constante mudança, que é o que nos faz humanos. E o que, definitivamente, não nos faz vampiros.

Voltei — ainda é hoje — apenas pra acrescentar algo, antes que esqueça. Na verdade, é que queria dizer que o problema REALMENTE não é a necessidade de dormir. É a fatalidade de morrer! Fosse eu imortal — como os vampiros —, não me sentiria perdendo meu tempo ao tirar um cochilo vespertino (desses que duram a tarde inteira, como suele hacer mi padre) ou mesmo ao gastar uma noite toda dormindo, visto que teria a eternidade pra compensar esses "lapsos de tempo". Quer dizer... Nesse caso, não seriam noites de sono, mas sim dias. Mas pouco me importaria o ataúde que me calhasse por cama (nem o alaúde que me fosse incumbido tocar), já que a vida eterna tem seu preço, e tudo o que eu pagasse me sairia barato. Agora, sim, paro por ora. Até qualquer dia desses...


*

Hoje já não é mais aquele hoje. É outro (embora parecidos, os hojes não se repetem — só se imitam). É sexta-feira (ainda é outubro), são exatamente 18h20 da tarde. Não tenho nada pra fazer, acabaram-se as prioridades da semana, e espero que os ponteiros corram rápido em direção às 19h porque sou assalariado e tenho que cumprir um horário, haja demanda ou não (e porque haja quem manda). Fosse eu um vampiro, estaria de buenas, nem me preocuparia estar aqui agora muito menos me abalariam os rumos da Reforma da Previdência, pois a Providência estaria a meu favor. Só que não sou um vampiro. E foi justamente por isso, por não ser um, que a agonia de esperar 40 minutos, 40 minutos desperdiçados de minha vida, fez que eu me lembrasse desta prosa misto de papo-furado com crônica de terror (no sentido pejorativo da palavra) que jazia numa pasta de rascunhos.

Olho discretamente pro semblante de meus colegas de trabalho (que não escrevem, muito menos leem — não são todos; não posso ser injusto, apenas 99,9% deles) e vejo expressões de tédio crônico. Já passou daquela fase em que todos riem e falam de futebol ou de algum outro assunto da maior importância. Agora é como se todos fôssemos mudos. Reina mesmo um silêncio quase fúnebre — quebrado agora pelo patrão, que acaba de passar pelo corredor caminhando rápido e falando alto com alguém cuja voz não consegui escutar. Faço parte da boiada, admito, mas, na impossibilidade de ser um vampiro, sou, digamos, não uma ovelha negra, mas um bad boi. A sorte geral é que todos (exceto eu, que fui roubado recentemente) têm à mão o novo melhor amigo do homem: o celular.

São agora 18h40. Nesse lenga-lenga, ganhei 20 minutos — e vocês perderam dois parágrafos. Mas assim é a vida: uns ganham, outros perdem, mas no final, nós que não somos vampiros, todos empatamos. E, como não vou me vampirizar mesmo, pelo menos por hoje, melhor terminar logo esta prosa. Afinal, além do vampiro há o Argemiro; o Biro-Biro (por onde andará Biro-Biro?); o Ciro (Gomes, que deve estar dando outra de suas palestras e morrendo pela boca); esses minutos finais em que deliro; que, graças a Deus, não são ainda aquele em que expiro; embora sejam minutos em que também firo; há o giro (dos ponteiros, sem pressa, pois têm todo o tempo do mundo); o silêncio hipersonoro; os acontecimentos nos quais não interfiro; o que minto quando juro; o lero-lero; o que acerto quando não miro; o incêndio de Nero; os cara que num me ouviro; as palavras num papiro; o medo que minha mulher tem de quero-quero; as outras palavras, as que não retiro; as que eu simplesmente sugiro; os que morrem de tiro; o silêncio ultrassonoro; os muitos em que me viro; a vontade que tenho de dar nela um xêro; e aquele número com o qual às vezes me reconheço: um zero (à esquerda — sou de esquerda até nisso).

Entretanto, embora eu não seja um vampiro (ou por isso mesmo), e mesmo apesar do muito sono que sinto, tenho que reconhecer que algumas vezes sou sangue-bom; outras, sangue no olho; mas, na maioria das vezes, sangue de barata...


***

PS1: Escolhi a palavra mais uma vez.

PS2: O assunto merece duas trilhas sonoras:

1) Clarisse Grova: Vampiros (Clarisse Grova – Léo Nogueira)


Vale compartilhar a letra também: 

VAMPIROS
Não tô nem aí se o sol morreu
Eu sou bem mais eu quando o céu arranca o véu da madrugada
Minha alma flutua de bar em bar
A sopa pro azar me sustenta com o tempero da calçada

A ilusão escancara na cara de ébrios e putas um sorriso
Nessa poça que piso eu vejo invertida a face imperfeita dos meus
Irmãos ateus em Deus
Bastardos filhos seus
Zumbis febris sem paz
Dejetos pelo cais
Querendo muito mais
Da madrugada
Mendigos fazendo seu Carnaval
Atrás do postal, invisíveis, além dos portões de Copa
Num jogo sem regras de ser feliz
Criando um país sob a máscara, a tristeza também dopa

A ilusão escancara…

Um bando de anjos jorrando pus
Dançando à luz negra de fogos de artifício e de tiros
Soldados sem causa e religião
Fazendo canção e ofertando seu bom sangue de vampiros
Seu bom sangue de vampiros
Seu bom sangue de vampiros


2) Caetano Veloso: Vampiro (Jorge Mautner)


***


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