segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

A Palavra É: 38) Bunda

Aviso aos navegantes: 
Esta crônica foi encomendada por minha amiga Silvia Maria Ribeiro. Sou um blogueiro sério e costumo tratar de assuntos da mais alta relevência, mas, como bom covarde, não fujo a desafios... só por masoquismo.

***

El baño — de Fernando Botero
Vinicius de Moraes em certa ocasião deixou escapar uma afirmação que dita hoje causaria furor na nova inquisição que são as redes sociais e, por que não?, o feminismo exacerbado que vê em cada flerte uma ameaça de assédio(/estupro?). Disse ele, sem medo de ser feliz: "Que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental." Levada ao pé da letra (sobretudo desta pequena letra que é o pensamento único das ditas correntes), a viniciana aberração levaria seu autor ao corredor da morte ou, na melhor das hipóteses, ao degredo a que são sujeitas as personas non gratas (Woody Allen?). Contudo, se dermos dois passos atrás pra vermos melhor esta chistosa pérola, perceberemos que Vinicius não tratava da beleza vã, mas da beleza como obra de arte.

Por falar em passos atrás, todos aqueles que já foram a alguma exposição sabem que algumas obras de arte precisam de certo distanciamento pra serem mais bem admiradas. Reparem vocês que pra ilustrar esta prosa eu tinha a um clique uma infinidade de fotos (photoshopadas ou não) de bundas de todos os tamanhos, cores e formatos, que trariam um erotismo desnecessário ao tema, mas optei por uma obra do artista colombiano Fernando Botero, famoso por ilustrar pessoas que, digamos, vestem GG. Só pra resumir, é interessantíssimo ver retratadas com carinho essas figuras que costumam ser vítimas de críticas — pra não dizer bullying — da sociedade. Pra evidenciar que tudo é bonito, quando visto com olhos apaixonados.

Mas voltemos à dita cula, digo, cuja. Além de ser considerada a preferência nacional (como são os peitões pra nossos vizinhos do andar de cima deste continental prédio), essa bela região da anatomia humana (e sobretudo feminina) já virou até nome de revista. Não faz muito tempo, uma turma da pesada — boa parte da qual remanescente do antológico O Pasquim, que enfrentou a ditadura com a arma do humor — teve, com o perdão da palavra, a cara de pau de batizar um periódico com o nome de Bundas; pra quem não sabe/lembra, evidentemente pra satirizar a famigerada Caras. Aliás, seus slogans eram impagáveis, como "Quem mostra a bunda em Caras não mostra a cara em Bundas" e "Bundas, a revista que não tem vergonha de mostrar a cara".

Vejam vocês que a bunda dá o que falar. Aliás, assim como a palavra saudade, a bunda nos representa; é brasileiríssima. Quer dizer, sua origem é africana, o que quase dá no mesmo. Fazendo uma preguiçosa pesquisa, descobri (já sabia) que bunda vem de bundo, um povo originário do Cabo Verde e de Angola cuja língua era o ambundo ou quimbundo. Os bundos estavam entre tantos outros povos africanos que foram trazidos pro Brasil como escravos. Reza a lenda que os bundos, sobretudo as mulheres bundas, tinham a região glútea sólida, esférica, daí que os portugueses, comparando as bundas das bundas com as esquálidas nádegas das portuguesas, não raro soltavam: "Que bunda!" Pra que a palavra se popularizasse salientada (perdoem a saliência) no local onde todos hoje conhecemos foi, como dizem, dois palito'.

Quando iniciei o parágrafo anterior, fi-lo com a intenção de enfatizar que nas demais línguas latinas não há um sinônimo exato, geograficamente falando, pra nossa bela bunda. Quando muito, eles dizem "culo", que, convenhamos, é uma palavra feia pra caramba. E em português então nem se fala. Juntar a letra C à letra U dá em merda. Deixemos, pois, os culos estrangeiros pra lá e voltemos a nossa bunda. Soltem o ar dos pulmões e pronunciem: Bun-da! Não é uma palavra meiga, fofa? Parece quase infantil. Não à toa uma boa bunda deixa os marmanjos babando (sem fronha) como se voltassem a ser crianças. Comigo isso não acontece, porque sou um cara sério, mas fico pensando cá com meus botões em como devem estar sofrendo esses tipos hoje em dia com toda essa patrulha.

E, como esse lero-lero desavergonhadamente também tem a pretensão de ser cultural, voltemos a falar de arte. Mais; falemos de Deus. O Criador supremo certamente deve ser considerado o maior dentre todos os artistas, pois sua criação não tem parâmetro pra comparação. Podemos comparar Beethoven a Mozart, Tolstoi a Dostoievski, Fellini a Kurosawa, Picasso a Dalí, Chico a Caetano etc.; mas vamos comparar Deus a quem? Só neste planetinha insignificante vemos tantas belezas criadas por Ele que uma vida toda pra admirar não basta. E entre todas essas maravilhas naturais está, naturalmente, a bunda. Nesse dia, Deus devia estar realmente com o diabo no corpo. Perdoem a blasfêmia, mas pensem naquele velho barbudo debruçado sobre sua prancheta com um compasso numa divina mão e um dionisíaco cálice de vinho na outra, num criativo ato de... de... desbunde!

Claro, claro, uma bunda traz acoplada a ela um ser pensante que merece respeito, mas eu chego lá. Vamos por partes, como diria o velho Jack (não o Nicholson). Em qualquer outra crônica eu chego ao cérebro. Por ora, e aproveitando ecos do Carnaval — e estando eu longe —, fiquemos com a abundância, que de escassez estamos todos fartos. Entretanto, além da bunda há quem não se aprofunda; a barafunda; o corcunda (de Notre Dame); quem se desbunda; quem errabunda; a mente fecunda; a javalinística gironda; a mentira hedionda; a boca imunda; uma ave chamada janda; a coisa mais linda; uma pessoa meditabunda; outra nauseabunda; outra mais, oriunda (de?); a garganta profunda; quem prefere ir à quitanda; a estimada... Raimunda; depois do domingo, a segunda; quem levou uma tunda; os irmãos da umbanda; a respeitável vagabunda; meu amigo Xande; e, claro, o prisioneiro de Zenda, que tem tudo (???) a ver com esta prosa.


***

PS1: Abaixo, um poema de Silvia (publicado originalmente aqui) sobre o abundante tema que a encorajou a me sugerir a palavra:


LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Silvia Maria

A bunda que colhe olhares
suspiros, gemidos
desejos no público
no privado ela acolhe tudo
porque gosto e amo...
sim sim!
há bunda artística, profissional
assegurada e tal
afinal, não se vive de olhares
suspiros, gemidos
desejos e meteção
por amor à bunda
e ao capital
os holofotes 
o clamor
o glamour
ofurô
a im_prensa
a cobiça
as críticas
as fofocas
os pitacos
a hipocrisia
a perversão
o preconceito
a censura nunca à bunda
o espetáculo não pode parar 
e a fome sempre volta
como essa bunda do PICASSO.



***

PS2: Espero que tenham entendido que esta crônica é apenas uma visão bem-humorada do corpo humano (ou de parte dele, se preferirem). Somos todos seres pensantes, mas me agrada imaginar que o corpo, com sua consistência, sua tez, suas nuances, seus traços curvilíneos, enfim, seu todo — inclusive com características que podem configurar defeitos —, não deixa de ser uma obra de arte à parte. E não é questão de machismo. A mulher que nunca, num encontro tipo Clube da Luluzinha, tratou com certa lascívia de certos detalhes do corpo masculino que atire a primeira pedra. Pensando bem, retiro o que disse. Sempre haverá uma ou outra que cegará sua trave no olho e apontará o cisco no olho do vizinho. Entretanto, em sinal de armistício termino este excitante blá-blá-blá bundístico com uma trilha sonora que serve de delicioso contraponto e fala por si só: Rita Lee e Zélia DuncanPagu (de ambas).



***


PS3: É ou não é um assunto artístico? Fomos de Botero a Picasso, passando por jornalismo, poesia e canção.

***


10 comentários:

  1. Sempre uma cadeia de palavras bem unida e humorada, parabéns, bom dia e boas aulas Sr Prof Léo NOgueira.

    ResponderExcluir
  2. Fui ao espelho, olhei a bunda e me vi mais pra Botero, que para a nova imagem atual, que a mídia recomenda... Mas como é carnaval, segui o ritmo da Tuiuti e apaguei a luz no último carro alegórico Neo tumbeiro dos manifestoches. Afinal se fechou a Avenida com chave de ouro, por que minha bunda grande não pode ser assim da moda outra vez? Sim, é muito legal e não tem igual pra mais ninguém...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hahaha! Grandes considerações, Liz. No mundo deve haver espaço pra todos os credos, raças, bundas etc.

      Abraços,
      Léo.

      Excluir
  3. Olha!
    Vou fazer aqui uma espécie de crítica.
    Todos falando de liberdade de expressão e eu pergunto:
    E o peido?
    Todo mundo fala da bunda, mas na hora da bunda se expressar todo mundo crítica.
    Ninguém quer ouvir um pum da bunda.
    A bunda é sempre o objeto de discussão, mas nunca tem seu direito de protagonismo expondo sua felicidade abertamente onde quiser.
    Todo mundo já peidou na vida e sabe que peidar é super legal.
    As bundas peidam!
    Sempre escondido.
    E quando um vento sapeca escapa do famigerado orifício, num momento de distração da bunda, pronto! Vergonha geral. Todos em volta fazem aquela cara de “nada aconteceu” num cruel ato de desprezo à manifestação da bunda, isso quando não levam a bunda direto ao palco da chacota. Fazendo mais uma vítima de risadas e escrachos.
    Vida de bunda não é só glamour. Bunda sofre.
    Ninguém quer se colocar no lugar da bunda quando a seringa tá cheia.
    O prazer da bunda é sempre oculto.

    Venho aqui colocar minha solidariedade às bundas por todas as dores que suportam tendo que se manter caladas.

    Pronto! Falei.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vanessinha, muito profunda (pra rimar com) sua análise. E cheia de verdade. Realmente, se pensarmos sob esse aspecto, a bunda ainda não atingiu sua alforria. Em contrapartida, o mesmo se pode dizer do pênis. Fiz até uma canção com o parceiro sumido Rafael Iasi certa vez defendendo os direitos deste membro único de uma sociedade que de tão machista também lhe impõe altas responsabilidades. Qualquer dia tomo coragem e desenvolvo o tema por aqui. Por ora, finalizo que sou pró-peido. Cada peido reprimido reflete no comportamento de quem o reprimiu. E o que não aguentamos mais é repressão, né? Se eu fosse a bunda desenhava um coraçãozinho e finalizava o comentário com um garrafal "gratidão".

      Excluir
    2. Vanessa Curci e Léo Nogueira, sou fã!! Onde assino?

      Excluir
    3. A assinatura é sua, quem sou eu pra censurar, Silvia. rs

      Excluir
  4. Kkkkkkk.
    Bundas! Manifestem-se em uníssono.

    ResponderExcluir