terça-feira, 30 de novembro de 2010

Crônicas Classificadas: 8) O circo das iIlusões do rock: uma tragédia contemporânea

Uma amiga me emprestou recentemente um livro de Nelson Motta chamado Música, Humana Música, lançado em 1980 (!) pela editora Salamandra. Na verdade, é uma compilação de crônicas musicais publicadas anteriormente em jornais. Além da leitura deliciosa que o livro me propiciou, o que mais me chamou a atenção foi sua contemporaneidade. Em 1980 eu não passava de um impúbere garoto, e ter o prazer de ler hoje – 30 anos depois, às vésperas de completar quatro décadas de vida, e em pleno século 21 – textos tão contundentemente atuais proporcionou-me a experiência de ser tomado por um sentimento misto de prazer e frustração, por identificar em longevas crônicas uma premonição do que viria a se tornar a música, humana música, de nossos tristes tempos. Escolhi, entre tantas amargas delícias, um texto que considero cruelmente atual, que, visto não o ter encontrado disponível no universo virtual, tive a pachorra de redigir:  


O circo das ilusões do rock: uma tragédia contemporânea*
Por Nelson Motta

É preciso um ouvido surdo e principalmente um coração cego para negar a verdadeira tragédia contemporânea em que está se convertendo o universo do rock internacional. Independente de eventuais crises ou irreversíveis processos de esgotamento criativo, o grande circo do rock é hoje uma diabólica máquina de fazer dinheiro, alcançar crescentes parcelas de poder e destruir artistas.

Essa visão é resultante de uma posição ética diante do que é hoje essa grande indústria internacional - mais que isso, talvez uma raiva que brota exatamente da consciência do que era - e pensávamos que sempre seria, em essência - a revolução deflagrada pelo rock, não só em nível artístico como principalmente no plano dos costumes, do comportamento, da busca de novos valores e novos significados para a liberdade e a busca da felicidade.

O rock era para ser - esse, o sonho que embalou algumas gerações esperançosas - um grito. Um grito capaz de partir os cristais finos das poderosas elites artísticas, um berro capaz de ser o veículo para o inconformismo diante das injustiças e desesperanças que envenenavam as gerações mais novas. O grito do rock foi - lenta, gradual, segura e irreversivelmente - engarrafado, arrolhado, multiplicado e diluído. Em milhões e milhões de dólares, em linhas de montagem, corrompendo e comercializando a tudo e a todos à sua passagem - à passagem do invencível rolo compressor do, digamos, establishment, do sistema (econômico-social), do grande Poder invisível e anônimo que continua transformando o sonho das pessoas em sabão em pó, a vida em imenso, invencível, absurdo supermercado.

Dizia-me Caetano outro dia: "Nós não podemos envilecer...". Juntos, na sua expressão, os conceitos de se tornar gasto e de se fazer vil, cínico, conformado. Nada a ver com idade física ou com festivas exaltações da "juventude" como um valor em si mesma. Juventude como alma capaz de sonhar os mais impossíveis sonhos - como modificar o comportamento de uma sociedade através de um gênero musical... Juventude como capacidade de se indignar sempre, mesmo contra os irresistivelmente mais poderosos que ousam afrontar a vida humana ao transformar pessoas em manadas de consumidores.

Esse "sonho impossível" quase deu certo, mas todos os jovens rebeldes que envelheceram (ou envileceram) no meio do caminho jamais poderiam supor que a virada de mesa e a contestação acabassem por se transformar em mais uma sólida e crescente fonte de dinheiro e poder para os eternos donos daquela sociedade contra a qual lançaram seu grito juvenil.

Hoje, o rock internacional representa uma poderosíssima força econômica e, de certa forma, até mesmo uma grande corporação - mais multi, supra-super-nacional - que cada vez coloca mais "feras" em sua grande jaula de cristal e exibe-as, com ingressos cada vez mais caros, às plateias ávidas e desprevenidas de todos esses trágicos circos do consumismo indecente e predatório. Algumas "feras" levam mais tempo para serem domesticadas e amestradas, a outras é mesmo consentido (estimulado até) o mau comportamento, como um atrativo extra para os cada vez mais vorazes espectadores. Só não lhes é permitido devorar os donos do circo... Ou melhor, às vezes, para maior emoção e maiores plateias, algum amestrador pode ser ferido ou comido, da mesma forma que alguma fera mais rebelde pode ser abatida (ou levada a se destruir) durante a exibição. O circo é que não pode parar. E uma morte sempre funciona como macabra promoção destinada a aumentar ainda mais a procura pelos espetáculos seguintes desse interessante e cada vez mais veloz carrossel de ilusões.

Um habitante de outra galáxia, em estágios muito superiores de inteligência, amor e sensibilidade que nós, acaba vindo parar na Terra na busca desesperada de outro planeta para tentar salvar sua família - mulher e dois filhos - ameaçados de morrer por falta de... água. Em pouco tempo, ele utiliza seus prodigiosos conhecimentos científicos para, através de uma série de invenções, construir um sólido império econômico que lhe permitirá recursos para a construção de uma nave que o levará a seu planeta e o trará de volta à Terra com sua família. Para continuar vivendo. Mas a voracidade do mundo dos negócios e a ambição dos terrenos acabam por impedir o lançamento da nave e descobrir a origem extraterrena do pacífico e familiar ser. Destruída a nave, não há mais tempo para nada a não ser a certeza de que sua mulher e seus filhos morrerão de... sede. E esse homem, poderosíssimo, arquimilionário, muito mais sensível, criativo e inteligente que os terrenos, condenado a viver ainda alguns séculos com as suas lembranças e com a estupidez humana. No final do filme, David Bowie - o trágico herói extraterreno - é visto de tarde em um bar, de óculos escuros, com um grande chapéu lhe cobrindo o rosto bonito e amargurado, já completamente bêbado. Permanentemente bêbado, condenado a não morrer e ver passar à sua frente a violência e a estupidez humanas. Ele, que só precisava de água para ser feliz, viver seu compromisso de amor e dar um sentido cósmico à sua existência.

Uma fábula moderna sobre a tragédia dos superstars, desesperadamente cada vez mais ricos, mais poderosos e mais bêbados, drogados, tristes e impotentes diante do abutre que os veste de seda, lhes dá o poder de comprar tudo que o dinheiro pode comprar e lhes come o coração todos os dias. Como trágicos e modernos Prometeus acorrentados em cadeias de ouro e púrpura, com um implacável e invisível abutre a lhes comer todos os dias o cada dia renascido coração. É preciso, no entanto, que eles continuem vivos, produzindo, sendo alimentados de drogas, poder, vaidade e ilusão, para que se lhes nasça a cada amanhecer um novo coração - muitos novos corações para alimentar a fome de degradação e destruição que habita esse cada vez maior e mais faminto indestrutível abutre.

Todos os dias se fica sabendo de alguns desses que um dia ousaram pensar que tinham roubado o fogo dos deuses. Morto, drogado, impotente, destruindo quartos de hotel, agredindo, desesperando. Aos que fisicamente morreram ou se deixaram morrer, restou a paz, a eternidade na memória e nos corações que acreditavam neles e viveram neles e como eles o grande sonho. Nos que estão vivos - condenados a isso - o tormento de ter infinitamente mais que a maioria dos humanos, mas ser infinitamente menos que o mais humilde dos pastores. É hora de um pensamento grave sobre a tragédia que é diariamente protagonizada por todos esses ex-jovens que um dia sonharam e acreditaram possível colocar seus talento, inteligência e sensibilidade a serviço de uma vida menos absurda e mais humana através da liberdade, da justiça e da beleza. 

*Extraído de Música, Humana Música. Rio de Janeiro: Salamandra, 1980.

***

O texto acima, que fala de rock e da gradual autodestruição de seus mitos, lembrou-me de uma espetacular canção de um dos maiores ídolos (se não o maior) do rock argentino, Charly García, sendo este e aquela sublimes exemplos vivos do supracitado texto:



YENDO DE LA CAMA AL LIVING

Podés pasear en limousine
Cortar las flores del jardín
Podés cambiar el sol
Y esconderte si no quieres verme.

O puedes ver amanecer
Con caviar desde un hotel
Y no tienes un poquito de amor para dar.
Yendo de la cama a su living

Podés saltar de un trampolín
Batir un record en patín
Podés hacer un gol,
Podés llevar tu luna al cielo
O puedes ser un gran campeón
Jugar en la selección
Y no tienes un poquito de amor para dar.
Yendo de la cama al living

No hay ninguna vibración
Aunque vives en el mundo de cine
No hay señales de algo que vive en mí.
Yendo de la cama al living
Sientes el encierro
Yendo de la cama al living.

Assista ao vídeo da canção acima:


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