sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Crônicas Classificadas: 6) O elogio do amor, segundo Almodóvar

Há alguns anos, a convite de Ricardo Soares, comecei a escrever alguns textos pro site do Caiubi explicando meu processo de criação. O site foi pelos ares, mas consegui salvar alguns textos, entre eles, o que segue abaixo. Estivesse só, eu o colocaria nas Crônicas Desclassificadas, mas, como serve de prefácio pra um texto de Walter Salles, vai aqui mesmo, nas Crônicas Classificadas:

Baião de Um

Gosto de ouvir e contar histórias de como nasceram canções, por isso me atrevo a ocupar este nobre espaço relatando uma, que vem a ser em momento propício, já que estamos às vésperas do lançamento do excepcional CD Atemporal, do coautor da canção em questão, Adolar Marin. Deu-se assim:
         
Nunca fui exatamente um Casanova, e essa questão do magnetismo que certas pessoas exercem sobre outras sempre me interessou, não só no campo amoroso, mas sobretudo neste. Um belo dia, meu caro parceiro Adolar Marin me entregou uma fita contendo uma melodia que, à primeira audição, já me arrebatou. Ele me deu liberdade pra dar-lhe o tema que bem me apetecesse, apenas acrescentou que o nome provisório que lhe dera era Baião de Um. Pois bem, a melodia não saiu de minha cabeça durante um bom tempo, mas o demasiado respeito por ela me impediu de pô-la em versos. Não é do meu feitio pôr qualquer letra numa melodia simplesmente como exercício, principalmente no caso desta, que tanto me impactava, de maneira que deixei-a de lado, à espera do momento em que a letra fizesse questão de vir ao mundo.
         
Algumas coisas acontecem por pura casualidade, e talvez a casualidade devesse merecer até outro nome, dada a importância de sua interferência em algumas realizações. O fato é que estava eu me deliciando com a extinta coluna quinzenal de Walter Salles na Folha de S.Paulo, que nesse dia tratava do filme Fale Com Ela, de Pedro Almodóvar, a que até então não tinha assistido (e hoje recomendo), quando me deparei com um poema de Jorge Luis Borges, com o qual Salles encerrava seu texto. Senti a mente em febre, a alma soltar um gemido surdo, o estômago dar pancadas em suas paredes… Era como se tudo o que eu fora até então (e o que fora antes de ter sido) tivesse existido apenas pra me encontrar ali, naquele momento, lendo aquele poema.
         
A inveja criativa provavelmente deve ser a causa de muitas criações; no caso desta não foi diferente. Num estado que beirava a alucinação, desvencilhei-me do jornal, procurei a fita que continha a melodia do baião e, num jorro, compus a letra, que teve seu título provisório mantido. Ao final, com os olhos marejados e a alma ainda gemendo, telefonei a Adolar e lhe cantarolei a letra. Modéstia à parte, o resultado foi tão satisfatório que nem meus soluços e desafinos impediram que ele soltasse um palavrão quando eu terminei. O que pode ser interpretado de várias maneiras. Tirem suas próprias conclusões:

Mil descaminhos nos trouxeram aqui/ Pra você poder ouvir/ O meu coração/ O mar bebeu civilizações./ A pedra, o fogo, a escuridão, a voz,/ O que veio antes de nós,/ Cada geração,/ A paz, as guerras, as orações./ Num tijolo a mais, num sangue ao chão/ Em cada ventre ou plantação estivemos lá/ No primeiro som, primeiro adeus/ Tudo isso aconteceu pra eu ver os olhos seus./ Houve a explosão,/ O primeiro grão,/ A primeira mãe,/ O primeiro pão,/ A primeira dor,/ O poema, o pranto, a canção/ O primeiro sol,/ O primeiro sal,/ O primeiro amor,/ O primeiro fim,/ O primeiro sim,/ O primeiro não./ Tudo isso aconteceu pra quê,/ Se você não me quer?/ Mil descaminhos nos trouxeram aqui/ Pra você poder ouvir o meu coração/ O mar bebeu… me bebeu… me bebeu…

São Paulo, 20/3/2006.


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O elogio do amor, segundo Almodóvar
Por Walter Salles

Há filmes que são como uma evidência, nos quais tudo adquire uma extraordinária força expressiva, franqueando o trabalho de um cineasta para o grande público. É o caso de Amarcord para Fellini ou Fanny e Alexander para Bergman. Fale com Ela, o novo filme de Almodóvar, que estreou há pouco na Europa, projeta o cineasta espanhol nesse território.

Depois de ganhar o prêmio de melhor diretor em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro com Tudo sobre Minha Mãe, Almodóvar volta com um filme na contramão. Poderia ter filmado com atores conhecidos. Não o fez. Optou por um filme arriscado, com cenas que fogem ao clima politicamente correto reinante. O resultado é uma das obras mais lúcidas e corajosas dos últimos tempos.

Amar, verbo transitivo. Marco, jornalista argentino radicado em Madri, apaixona-se por Lydia, uma toureira que se separou há pouco de seu amante. Benigno, um jovem enfermeiro, é apaixonado por Alicia, jovem bailarina que se acidentou e vive há anos em coma numa cama de hospital. As cenas do deslumbrante Café Muller, coreografia de Pina Bausch que abre o filme, dão a chave do que acontecerá. As vidas desses quatro personagens vão se entrelaçar inexoravelmente.

O acaso entra em jogo quando Lydia é gravemente ferida por um touro e é levada para o hospital onde Benigno cuida de Alicia. Durante as noites de vigília, Marco percebe que Benigno, no quarto ao lado, conversa com Alicia, como se ela pudesse ouvi-lo. Compreende-se por que Benigno foi assistir ao espetáculo de Pina Bausch: para ver por Alicia. Para poder melhor contar a emoção que ressentiu. Por mais que o seu gesto não faça sentido do ponto de vista médico, Benigno segue alimentando Alicia com palavras, sob o olhar cúmplice de Marco. Estabelece-se logo uma oposição entre aquilo que é científico, racional, e a fé amorosa.

É a mesma fé que move Almodóvar e que lhe permite transformar um ato facilmente condenável em uma das mais lindas e generosas cenas de amor da história do cinema. Benigno lava o corpo nu de Alicia, ao mesmo tempo que lhe fala de um filme mudo que viu. É O Amante que Encolheu, alusão ao Homem que Encolheu, clássico de Jack Arnold. Nas cenas do filme mudo, o homem minúsculo acaba buscando refúgio no sexo feminino. Quando voltamos à realidade, aprendemos duas notícias desconcertantes. Lydia não resistiu às feridas e morreu. E Alicia, mesmo em coma, engravidou. Morte e vida outra vez entrelaçadas.

Mas Benigno não se chama Benigno à toa. Benigno, o inocente, aquele que veio para curar a insensibilidade do mundo. Suspeito e encarcerado por aquilo que a justiça considera um estupro, e ele, um gesto carregado de amor, Benigno vai partir como um anjo. E Alicia, fecundada por Benigno, vai voltar lenta e milagrosamente à tona e à vida. Convalescente, Alicia assiste a um novo espetáculo de Pina Bausch. E encontra Marco. Um vai, outro vem. O ciclo se fecha, de forma generosa e precisa.

Nietzsche escreveu que aquilo que se faz por amor está além do bem e do mal. Em Fale com Ela, Almodóvar nunca julga os seus personagens. O humanismo dilacerante de seu filme, ao contrário, abre os nossos olhos e toca os nossos sentidos, suscitando emoção e reflexão. O sexo volta a ter uma função libertadora. O indizível e o inexplicável se sobrepõem à frieza científica. As participações especiais, como a cena luminosa em que Caetano canta Cucurrucucú Paloma, só ajudam a irrigar o filme. E tudo é dito sem um plano a mais, demonstrando que Almodóvar atingiu um alto grau de maturidade narrativa.

As luzes do cinema se acendem. Difícil conter as lágrimas. Difícil não lembrar amores perdidos. E de BorgesOs poentes e as gerações/ Os dias e nenhum foi o primeiro/ O olho decifrando a penumbra/ O amor dos lobos no amanhecer/ A torre de Babel e a soberba/ As infindáveis areias do Ganges/ O tempo circular dos estoicos/ O xadrez e a álgebra dos Persas/ Os rastros das grandes migrações/ A busca incessante. O mar aberto/ Cada remorso e cada lágrima/ Todas essas coisas foram necessárias/ Para que nossas mãos pudessem se encontrar.

Folha de S.Paulo, 8/6/2002.

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