quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Crônicas Desclassificadas: 4) Quarups e calados

O Brasil se baianizou. No sentido preconceituoso da frase. Ou eu não nasci de bem com a felicidade. Explico: nesta quinta-feira última, ganhei da sogra (que sogra!) uma viagem para Rio Quente-GO, um resort (ou, como dizem por lá, risórti), já que fica mais bonito assim, em inglês. Lugar maravilhoso, com muito sol e diversas piscinas de água quente natural, além de um parque aquático “mudernamente” batizado de Hot Park. O primeiro dia foi ótimo, relaxante, revigorante. Eles têm lá um método interessantíssimo que é uma espécie de cartão personalizado que cada um leva ao peito e utiliza aonde quer que vá, sem precisar se preocupar com usar dinheiro. 

Tudo ia bem até que, num determinado momento, dando eu minhas sôfregas braçadas à esquerda e à direita, ouço alguém se apresentar pelas potentes caixas de som localizadas nas laterais de um imenso palco (inocência minha não haver percebido que tal palco para boa coisa não seria). Era uma espécie de professor de aeróbica, com sotaque bem baiano (será que eles importam da Bahia professores de axé?), que convocava todos os presentes, quais soldados, a participar de suas peripécias atléticas. Muito bem humorado e cativante, em poucos minutos levou a grande maioria dos que lá estavam a fazer macaquices sincronizadas ao som de axé míusique. A obrigatoriedade da felicidade. E soltava ele, vez por outra, “Vida rúim, hem?”. Enquanto isso, o gado se esforçava por corresponder às expectativas do prestimoso “professor”. Não preciso dizer duas vezes que fugimos desesperados do local, em busca de silêncio. Não preciso dizer também que não o encontramos, pois o som ecoava a quilômetros de distância. Fora do parque, nos dirigimos às outras piscinas, e qual não foi nossa estupefação (bobinhos) ao notarmos que nas outras piscinas também os dedicados sargentos da felicidade se encontravam, obrigando a classe média gorda e bufante a se alistar. Sim, eu disse classe média. Essa foi outra de minhas frustrações (recordava-me a todo instante da música do Max Gonzaga). Num local onde as placas diziam ser proibida a entrada com alimentos, famigeradas famílias se fartavam de frango e cerveja, dentro das piscinas, com sua belíssima prole seguindo o exemplo dos progenitores e engolindo sem mastigar os seus fofos salgadinhos. Enquanto vez por outra uma lata vazia de cerveja ou uma garrafa idem de água boiava no esgoto chic. Tentei desligar o cérebro e aproveitar os presentes naturais que este nosso país nos oferece, e ouso dizer que quase consegui, não fosse o fato de vir sempre um casal de senhores entrar na minha frente no elevador, furar a fila do café com leite no nosso justo desjejum, ou na fila da entrega das toalhas. O cúmulo ocorreu quando Kana ligou uma ducha pública e, antes que ela entrasse… Um senhor gordo (eles eram todos gordos) muito naturalmente, aproveitando-se do trabalho dela, e, sem nem sequer agradecer, entendeu que ela o fazia pra que ele se banhasse. Ou não. O mais provável é que não tenha pensado nada, depois de sua sessão de axé. Entendi que esses trabalhadores do engrandecimento do Brasil, que abdicaram do estudo pra dedicarem os áureos anos de sua juventude às empresas X e Y, achavam muito natural que todo o resto da humanidade estivesse ali, naquele momento, pra servir às suas justas férias. 

No terceiro dia, já estava eu nauseado e com saudades de casa, enquanto ouvia um ou outro dizer que estava ali já havia uma semana. O que me salvou foi o Quarup, do Callado, que levei e que devorei sem dó nem piedade. Na útima noite, conversando com um pardo e simpático garçom (quase todos os funcionários lá são pardos), dizia-me ele que as piscinas podiam ser usadas apenas pelos turistas e por funcionários com registro em carteira, e que a entrada para o Rote Parke custava aproximadamente R$ 50,00. O paralelo que tracei com os índios do Quarup foi inevitável, estando eu em Goiás. O tempo passou, o século mudou, mas nossos índios continuam, agora de calças díns e camisas de botão, dando o melhor de si em troca de espelhinhos (esse “espelhinhos” é uma metáfora). 

Não posso ser mal-agradecido com a generosa sogra. A viagem foi maravilhosa; os dias foram ensolarados; as piscinas naturais melhoraram a maciez de minha pele; a comida era de derrubar glutões; os guias, preparadíssimos; as acomodações, confortáveis; o voo, tranquilo; a chegada em casa, em paz… Só eu não me encaixava nesse panorama, com essa minha ridícula tendência à infelicidade. 

São Paulo, 21/9/2005.


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