Acredito que Zeca Baleiro começou a se firmar como um dos mais expressivos nomes da nova música brasileira a partir de Líricas. Claro que ele vinha em franca ascensão; Por Onde Andará Stephen Fry era um raro exemplo de estreia acertada, ainda mais se compararmos com os primeiros discos da maioria dos artistas que estão na ativa hoje; Vô Imbolá, então, seu segundo, era uma porrada ainda maior, e seguramente deve constar de qualquer lista de melhores discos das últimas décadas; só que, até então, o moço de nome engraçado e visual espalhafatoso ainda figurava apenas como uma promessa, por suas ótimas letras e suas melodias efervescentes e ritmadas. Podia ser rotulado como um novo Alceu Valença ou Zé Ramalho, ou seja, mais um compositor nordestino de brilho. E ponto.
Aí veio a virada de mesa. Com Líricas, ele mostrava a que vinha, e declarava, nas entrelinhas, que não estava disposto a ser só mais um José de Ribamar. E não estar disposto a ser mais um significa, já de cara, a inquietação, o desassossego, a busca às vezes dolorosa pela originalidade... Baleiro, já desde a escolha certeira do nome artístico, dava sinais de que não tinha a intenção de ser mais um pop star preguiçoso a brilhar em riba desse mar de mesmice por tantos navegado. Da mesma forma, quando seus fãs — que começavam a se multiplicar — esperavam algo como um Vô Imbolá 2, ele surgia com um trabalho lento, introspectivo, até difícil, como que dizendo que quem quisesse facilidades, quem não quisesse correr o risco de ser surpreendido, que fosse sossegar os ouvidos em outra toada.
E tem sido assim até hoje. Baleiro, com uma obra já consagrada e uma discografia de responsa, nunca distribuiu bala repetida a seus fiéis fãs. Muito pelo contrário, acho até que ele, sem querer, dificultou bastante a própria carreira, pois, ao educar seu público no hábito de apurar o paladar pra sabores novos, transformou o simples ato de gravar um CD na mais árdua das batalhas. Não vou nem enumerar aqui seus tantos discos, pois São Google está aí pra isso, mas, fora Luciano Huck e mais um ou outro desavisado, os brasileiros fãs de boa música já sabem que a notícia de que Zeca Baleiro está pra lançar novo disco é, por si só, sinal de que vem REALMENTE novidade por aí. Afinal, até Ivete Sangalo, que não pega onda exatamente na mesma praia do moço, sabe que este Zeca é outro.
Mas eu vim aqui pra falar do Líricas. Foquemos, pois. Como esta é uma coluna que trata de discos inesquecíveis, queria deixar meu depoimento dizendo que não acho este apenas o melhor disco de Zeca, considero-o um artefato (arte – de – fato) indispensável em minha discoteca particular, aqui incluído no balaio onde soam os sons de Bach, Beethoven, Beatles, Belchior, Buarque... Baleiro (pra ficar só nos bês). E os motivos sobram. Pra começo de conversa, eu, que não danço, curto mais um som quando é denso. E, dentre os densos, mais ainda quando é doído; mas não me refiro à dor comum, que dói e passa, refiro-me àquela dor filosófica, shakespeariana, a flor da dor da dúvida, esta que é regada por Baleiro em cada uma das canções de seu Líricas, que bem poderia se chamar também Dolíricas, visto que composto com a lira del dolor.
Curto o som de Zeca em geral. Não desgosto de nenhum de seus discos; claro que uns me pegam mais, outros menos; gosto, inclusive, de sua ironia, seu approach, sua alegria anárquica; mas tenho que confessar: ele me pega mais quando está triste, tristinho. Não que lhe deseje mal — longe disso! —, é só que, nas ocasiões em que EU estou triste, fico menos só, menos sozinho, quando me acompanha sua verve de dodói, de quem está à flor da pele; sentindo-se um barco sem porto; medindo a altura do tombo; sem saber dizer o que quer dizer o que vai dizer; com um riso amarelo e o coração querendo poesia; catando migalhas no chão, enquanto sua alma dorme num velho porão; seguindo só, porque é o que lhe convém; achando a felicidade uma coisa tão difícil de conseguir; resolvendo seus conflitos com aspirina, amor ou cachaça; com a solidão regando a flor do mal-me-quer; em seu inferno, querendo ver o que há depois do perigo...
E é justamente essa dor que ele espalha, liricamente, pelo Líricas inteiro. A apreciação de uma obra de arte em sua plenitude depende de que esta e seu admirador estejam em sintonia na ocasião em que, digamos, fazem contato, caso contrário, a mágica não se dará. E como eu, naquela época, estava numa fase de pôr em xeque a razão de minha existência, repensando certezas e crenças, a empatia foi imediata. Assim me encontrava eu, quando a primeira canção do disco, Minha Casa, me encontrou, ao entrar em minha casa. Suas frases pungentes calaram fundo em minha alma: "É mais fácil cultuar os mortos que os vivos/ mais fácil viver de sombras que de sóis/ é mais fácil mimeografar o passado/ que imprimir o futuro/ [...] quero no escuro/ como um cego tatear estrelas distraídas/ [...] mesmo que não venha o trem, não posso parar"...
E ele não parou por aí. Comigo achei bacana, pra tocar no rádio; curti até sua regravação do sucesso de Charly Brown Jr., banda que nunca fez minha cabeça; mas, quando chegou a vez de Babylon, entrei num transe parecido com aquele no qual me meti descobrindo Construção, de Chico. Que música era aquela? Até hoje a considero uma das mais belas pérolas de nosso cancioneiro. E a letra é simplesmente perfeita! Na sequência, Balada para Giorgio Armani é de chorar; Ê Boi é seu tocante recado pra quem esperava por um Vô Imbolá 2 ("eu também já fui boi"); Nalgum Lugar e Quase Nada, ambas lindas, praticamente são complementares; já Você Só Pensa em Grana é Zeca em sua essência: mordaz e lírico. "Poeta bom, meu bem, poeta morto."
Na seguinte, Banguela, os versos são independentes entre si. Se metermos um Cortázar nas ideias e brincarmos de trocá-los de lugar, o efeito não se altera. Contudo, apesar do aparente nonsense, há versos belíssimos ali, saídos de uma cartola, digo, cachola cheia não de coelhos, mas de indagações. Por último, a dupla final fecha com chave de ouro: Blues do Elevador vem chutando a porta do "mesmo"(?), "Ora quem é que não sabe/ o que é se sentir sozinho/ mais sozinho que um elevador vazio/ [...] só faz milagres quem crê que faz milagres/ como transformar lágrima em canção..."; e Brigitte Bardot, "A saudade/ é um filme sem cor/ Que meu coração quer ver colorido...". E, quando a gente pensa que acabou, lá vem sua mãe cantar antigas saudades, só pra avisar que quando uma vai, outra chega, e assim sucessivamente, até o dia em que, como cantou Nelson Cavaquinho, for a gente a se chamar saudade.
A fórmula? Alma é o segredo!
Aí veio a virada de mesa. Com Líricas, ele mostrava a que vinha, e declarava, nas entrelinhas, que não estava disposto a ser só mais um José de Ribamar. E não estar disposto a ser mais um significa, já de cara, a inquietação, o desassossego, a busca às vezes dolorosa pela originalidade... Baleiro, já desde a escolha certeira do nome artístico, dava sinais de que não tinha a intenção de ser mais um pop star preguiçoso a brilhar em riba desse mar de mesmice por tantos navegado. Da mesma forma, quando seus fãs — que começavam a se multiplicar — esperavam algo como um Vô Imbolá 2, ele surgia com um trabalho lento, introspectivo, até difícil, como que dizendo que quem quisesse facilidades, quem não quisesse correr o risco de ser surpreendido, que fosse sossegar os ouvidos em outra toada.
E tem sido assim até hoje. Baleiro, com uma obra já consagrada e uma discografia de responsa, nunca distribuiu bala repetida a seus fiéis fãs. Muito pelo contrário, acho até que ele, sem querer, dificultou bastante a própria carreira, pois, ao educar seu público no hábito de apurar o paladar pra sabores novos, transformou o simples ato de gravar um CD na mais árdua das batalhas. Não vou nem enumerar aqui seus tantos discos, pois São Google está aí pra isso, mas, fora Luciano Huck e mais um ou outro desavisado, os brasileiros fãs de boa música já sabem que a notícia de que Zeca Baleiro está pra lançar novo disco é, por si só, sinal de que vem REALMENTE novidade por aí. Afinal, até Ivete Sangalo, que não pega onda exatamente na mesma praia do moço, sabe que este Zeca é outro.
Mas eu vim aqui pra falar do Líricas. Foquemos, pois. Como esta é uma coluna que trata de discos inesquecíveis, queria deixar meu depoimento dizendo que não acho este apenas o melhor disco de Zeca, considero-o um artefato (arte – de – fato) indispensável em minha discoteca particular, aqui incluído no balaio onde soam os sons de Bach, Beethoven, Beatles, Belchior, Buarque... Baleiro (pra ficar só nos bês). E os motivos sobram. Pra começo de conversa, eu, que não danço, curto mais um som quando é denso. E, dentre os densos, mais ainda quando é doído; mas não me refiro à dor comum, que dói e passa, refiro-me àquela dor filosófica, shakespeariana, a flor da dor da dúvida, esta que é regada por Baleiro em cada uma das canções de seu Líricas, que bem poderia se chamar também Dolíricas, visto que composto com a lira del dolor.
Curto o som de Zeca em geral. Não desgosto de nenhum de seus discos; claro que uns me pegam mais, outros menos; gosto, inclusive, de sua ironia, seu approach, sua alegria anárquica; mas tenho que confessar: ele me pega mais quando está triste, tristinho. Não que lhe deseje mal — longe disso! —, é só que, nas ocasiões em que EU estou triste, fico menos só, menos sozinho, quando me acompanha sua verve de dodói, de quem está à flor da pele; sentindo-se um barco sem porto; medindo a altura do tombo; sem saber dizer o que quer dizer o que vai dizer; com um riso amarelo e o coração querendo poesia; catando migalhas no chão, enquanto sua alma dorme num velho porão; seguindo só, porque é o que lhe convém; achando a felicidade uma coisa tão difícil de conseguir; resolvendo seus conflitos com aspirina, amor ou cachaça; com a solidão regando a flor do mal-me-quer; em seu inferno, querendo ver o que há depois do perigo...
E é justamente essa dor que ele espalha, liricamente, pelo Líricas inteiro. A apreciação de uma obra de arte em sua plenitude depende de que esta e seu admirador estejam em sintonia na ocasião em que, digamos, fazem contato, caso contrário, a mágica não se dará. E como eu, naquela época, estava numa fase de pôr em xeque a razão de minha existência, repensando certezas e crenças, a empatia foi imediata. Assim me encontrava eu, quando a primeira canção do disco, Minha Casa, me encontrou, ao entrar em minha casa. Suas frases pungentes calaram fundo em minha alma: "É mais fácil cultuar os mortos que os vivos/ mais fácil viver de sombras que de sóis/ é mais fácil mimeografar o passado/ que imprimir o futuro/ [...] quero no escuro/ como um cego tatear estrelas distraídas/ [...] mesmo que não venha o trem, não posso parar"...
E ele não parou por aí. Comigo achei bacana, pra tocar no rádio; curti até sua regravação do sucesso de Charly Brown Jr., banda que nunca fez minha cabeça; mas, quando chegou a vez de Babylon, entrei num transe parecido com aquele no qual me meti descobrindo Construção, de Chico. Que música era aquela? Até hoje a considero uma das mais belas pérolas de nosso cancioneiro. E a letra é simplesmente perfeita! Na sequência, Balada para Giorgio Armani é de chorar; Ê Boi é seu tocante recado pra quem esperava por um Vô Imbolá 2 ("eu também já fui boi"); Nalgum Lugar e Quase Nada, ambas lindas, praticamente são complementares; já Você Só Pensa em Grana é Zeca em sua essência: mordaz e lírico. "Poeta bom, meu bem, poeta morto."
Na seguinte, Banguela, os versos são independentes entre si. Se metermos um Cortázar nas ideias e brincarmos de trocá-los de lugar, o efeito não se altera. Contudo, apesar do aparente nonsense, há versos belíssimos ali, saídos de uma cartola, digo, cachola cheia não de coelhos, mas de indagações. Por último, a dupla final fecha com chave de ouro: Blues do Elevador vem chutando a porta do "mesmo"(?), "Ora quem é que não sabe/ o que é se sentir sozinho/ mais sozinho que um elevador vazio/ [...] só faz milagres quem crê que faz milagres/ como transformar lágrima em canção..."; e Brigitte Bardot, "A saudade/ é um filme sem cor/ Que meu coração quer ver colorido...". E, quando a gente pensa que acabou, lá vem sua mãe cantar antigas saudades, só pra avisar que quando uma vai, outra chega, e assim sucessivamente, até o dia em que, como cantou Nelson Cavaquinho, for a gente a se chamar saudade.
A fórmula? Alma é o segredo!
***
Zeca Baleiro — Líricas (2000 – MZA/Universal Music)
1. Minha Casa
(Zeca Baleiro)
2. Comigo
(Zeca Baleiro)
3. Proibida pra Mim
(Chorão – Marcão – Thiago – Champignon – Pelado)
4. Babylon
(Zeca Baleiro)
5. Balada para Giorgio Armani
(Zeca Baleiro)
6. Ê Boi
(Zeca Baleiro)
7. Nalgum Lugar
(poema de e. e. cummings – tradução em português: Augusto de Campos –
musicado por Zeca Baleiro)
8. Quase Nada
(Zeca Baleiro – Alice Ruiz)
9. Você Só Pensa em Grana
(Zeca Baleiro)
10. Banguela
(Zeca Baleiro)
11. Blues do Elevador
(Zeca Baleiro)
12. Brigitte Bardot
(Zeca Baleiro)
***
Ouça o CD na íntegra aqui:
***
Léo, que texto lindo! Você é ótimo, sempre!
ResponderExcluirValeu, Soninha! Caramba, sempre? rs
ExcluirEra bem o que precisava... essa dor dolorida ate as ultimas consequências.... Alguém tipo eu... Montanha russa de sentimento..Ele além de arriscante.. é generoso. O belo gesto de recuperar Sergio Sampaio cantado pelo próprio, no disco Cruel, só fez engrandece-lo ainda mais.. Gostei do Grafite de estreia 2014. Estou matutando o meu... mas é uma salada só... Difícil escolher.
ResponderExcluirOi, Anja!
ExcluirBem lembrado! "Cruel" é um discaço que foi finalizado graças aos esforços do Baleiro. Ah, acrescente-se – segundo informações de Alexandre Lemos via facebook – que parte desses louros devemos a Sérgio Natureza, parceiro e amigo do Sampaio, que foi quem fez o meio de campo.
Sobre o texto, relaxe. Escolha um, se gostar da experiência, podemos repetir a dose futuramente.
Beijos,
Léo.
Leo, vc foi muito feliz nessas suas impressões. Líricas é muito bom. Ontem estive no sesc e foi simplesmente fantástico, como em 2001, no Tuca. Ali me apaixonei pelo Zeca. Se posso traçar paralelo, considero que apreciar a obra do Zeca é como ser corintiano: quem é nunca deixa de ser, rs. Feliz ano novo! Espero conhecer pessoalmente vc e Kana neste ano. Bjs
ResponderExcluirOi, Mag! Agradeço pela visita e pelo comentário! Só vou discordar (palmeirense que sou) do paralelo traçado. rsrs
ExcluirE, sim, este ano oportunidades não faltarão pra que nos conheçamos pessoalmente.
Beijos,
Léo.
muito bom texto Léo!
ResponderExcluirMag, adorei o paralelo e tenho que concordar!
A gente já fica esperando pelo novo trabalho de Zeca , sabendo que vem coisa boa e surpreendente sempre.
Oi, Zabé! Tu também é curíntia, minha fia? ninguém é perfeito mesmo... rsrs
ExcluirBeijão,
Léo.
sou curintia não, Leo. Aliás, nunca entendi a graça de 22 cabras correndo atras de uma bola, rs
ResponderExcluirGostei do paralelo da Mag com a paixão por futebol, é isso!
Bj
Ah, bão, Zabé! rsrs
ResponderExcluirEntão vou traçar outro paralelo: gostar de boa música (a do Zeca incluída) é como gostar de vinho. Quanto mais o tempo passa, mais o gosto se depura e o prazer se acentua. Gostou? rs
Beijo,
Léo.
Parabéns Leo muito bom mesmo.
ResponderExcluirValeu, Dalvinha!
ExcluirAbração,
Léo.
gostei sim, Léo
ResponderExcluirBj
Que bom, Zabé. rs
ExcluirBeijos,
Léo.