domingo, 22 de maio de 2016

A Palavra É: 15) Felicidade

Estava começando a escrever sobre o assunto do momento, cultura, agora que o presidente golpista tá brincando de tira e põe com esse ministério e alguns imbecis ainda vêm com aquele papinho de "nós não precisamos de cultura, precisamos de mais hospitais, de mais empregos; abaixo a Lei Rouanet; e blá-blá-blá e nhem-nhem-nhem e ti-ti-ti"; só que meu amigo Henrique Barros, que está à frente de uma revista eletrônica chamada Papel da Música, me pediu pra escrever umas linhas introdutórias sobre a canção que escolheu pra primeira edição, que é justamente A Felicidade, de Élio Camalle, então, inspirado pelo que escrevi pra ele, resolvi fazer um tricô por aqui entre esses dois temas, que, aliás, estão interligados: cultura e felicidade. Afinal, a felicidade plena só pode existir numa sociedade que leva a sério sua cultura.

Em primeiro lugar, tratemos da questão acima levantada pelos tais imbecis: ok, você acha que cultura não tem valor, artista é vagabundo e tal; então, pense numa sociedade onde a cultura inexiste. Você sai cedo pra trabalhar, trabalha o dia todo, volta pra casa no final da tarde, toma banho, janta, dá uma trepadinha básica (não diária, claro), dorme e, no dia seguinte, acorda pra fazer exatamente a mesma coisa que no dia anterior. Entendeu? Daí, no fim de semana, você come uma feijoada, toma sua cervejinha, lava seu carro e vai ao zoológico, como diria Raul Seixas, dar pipoca aos macacos. Satisfeito? É essa, basicamente, a vida de uma pessoa que não tem aceso à cultura. Ah, claro, isso se seu trabalho não estiver direta ou indiretamente ligado a ela, pois, nesse caso, você estaria desempregado.

Quem é capaz de chamar isso de felicidade? Foi justamente o descaso com a cultura que criou aberrações como essas pessoas que a desprezam. Manja aquela velha frase "eu era feliz e não sabia"? Então, meu caro leitor, nesse caso ocorre justamente o contrário: esse fulano é infeliz e não sabe, pois é vítima de uma lavagem cerebral que o obriga a gostar apenas daquilo que lhe é imposto. E ainda se acha um cidadão livre. Liberdade é poder gozar plenamente do acesso ao conhecimento, é saber que existem, além da laranja (e do laranja), o abacaxi, o mamão, o tomate, a flor, a árvore, a floresta, Júpiter... A questão não é escolher sua banda de pagode preferida, sua dupla sertaneja preferida etc., a questão é saber que existe outro tipo de música.


Raciocinemos um pouco: deve ser uma baita infelicidade um sujeito ser um ignorante musical vivendo num país cuja música é respeitada e admirada no resto do mundo. Esse camarada que desconhece um Tom, um Chico, um Milton, um Caetano e mais uma infinidade de gênios da canção popular, se soubesse que está sendo enganado, devia era processar o Estado por isso, pois não usufrui de algo que é patrimônio nacional. Por exemplo, um adolescente que só ouve pagode e por causa disso quer aprender a tocar algum instrumento vai acabar virando, com algum esforço, um músico rudimentar. Em contrapartida, conheço alguns jovens de periferia que tiveram a oportunidade de estudar na Escola do Auditório do Ibirapuera e hoje tocam samba, jazz, choro, tango...


Estes, sim, podem se considerar felizes, foram salvaros da mediocridade. Só que eles são exceção. Imagine se todos os jovens pobres do Brasil tivessem esse privilégio. Pensando bem, ia ser uma tragédia pras grandes gravadoras; ou iam falir de vez ou iam ter que mudar radicalmente sua meta, pois uma pessoa que tem conhecimento musical não se deixa deslumbrar por qualquer pagodinho meia-boca. Da mesma forma, a valorização de nossa literatura, de nossa poesia, expandiria a mente de muito jovem que poderia se tornar um adulto mais consciente e menos ordinário se nas escolas houvesse um interesse nesse sentido. Quem sabe que o primeiro samba gravado no Brasil se chama Pelo Telefone não se emociona com qualquer "liga pra mim".


Só que isso não interessa aos governantes, pois se o povão se tornar mais culto não vai cair na esparrela de acreditar na lábia de um sem-número de políticos que têm residência fixa em Brasília hoje. Aí é que está o busílis da questão. Político não devia ser profissão. Um camarada não devia ter um projeto de ascensão social baseado na vida pública. Se alguém quer prosperar financeiramente, o Congresso devia ser o último lugar onde ele optaria por trabalhar; ali, só deviam estar pessoas comprometidas mais com o país que com seu nariz, sua família, seu deus, sua amante etc. e tal. Afinal, quatro anos passam depressa, e, se esse fulano os perde tentando se reeleger, deixa de estar atento a questões mais importantes... como as que o imbecil lá de cima citou: hospitais, emprego... e até, e por que não?, cultura.


Acabei juntando alhos e bugalhos nessa crônica. Perdoe, compreensivo leitor. Afinal, se você chegou até aqui é porque, ao contrário do presidente golpista, acredita que a cultura é importante pra felicidade geral da nação. Contudo, além da felicidade, existem a agressividade, a barbaridade, a calamidade, a deslealdade, a enfermidade, a fatalidade, a gravidade, a hostilidade, a impunidade, a jocosidade (que é até legal, se comparada com seus vizinhos de rima), a leviandade (que não tem nada a ver com Leny Andrade), a já citada mediocridade, a nulidade, a obtusidade, a perversidade, a quantidade (no lugar da qualidade), a ruindade, a santidade (do pau oco), a temeridade (AAAHHHH!!!), a unilateralidade, a vulgaridade e, por último e menos importantes, o x, o z e esse governo que não dão rima.



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PS: Trilha sonora: Élio Camalle, A Felicidade (do próprio)



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