Fiquei sabendo pelas redes sociais que Zélia Duncan foi chamada de oportunista por um sambista que se sentiu ofendido ao ver, no Prêmio da Música Brasileira, o nome dela indicado ao lado do dele na categoria de melhor disco de samba. Na sequência, li a resposta que ela lhe deu na coluna que assina n'O Globo (leia aqui) e fiquei encantado com essa moça, com vontade de lhe tascar um beijo pleno de afeto e admiração. Aliás, diria que estamos afinados no que se refere à questão. Eu, por exemplo, sempre gostei de samba, mas odeio o "sambismo", da mesma forma que sempre gostei de rock, mas sinto particular pena daqueles que se reduzem a "roqueiros" ignorando que há uma infinidade de estilos musicais maravilhosos mundo afora dos quais abrimos mão ao nos autorrotularmos um "ista" ou um "eiro".
Eu gosto de música e pronto. E ponto. Música que me emociona, que me arrepia, me lava a alma, enfim, que me mexe com meus sentidos. E tanto faz se é rap ou rock, samba, bossa, moda de viola, choro, tango, jazz, ópera etc. etc. E digo mais: eu, como compositor cearense que, radicado em Sampa City, trocou de sotaque, me sinto um bicho solto no mundo, um sertanejo globalizado, com as raízes penetrando pela planta dos pés e a cabeça alada, antenada, captando tudo o que há (e o que não há) "pelaí". Daí que sou radicalmente contra quem imponha à arte qualquer tipo de censura ou restrição. Certa vez, Trotski falou (li isso numa biografia sua romanceada, mas, se ele não falou, devia ter falado): "Para a arte, a liberdade é sagrada, é sua única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo."
Há alguns anos, o saudoso Madan, querido parceiro e genial compositor, entrou numas de querer organizar um movimento em defesa da música paulista. Nesse momento de equívoco, justo ele, que já havia composto de tudo um pouco, decidiu que os compositores daqui tinham que excluir do balaio criativo, entre outras, a música nordestina. Disse-me que São Paulo tinha mais proximidade com o rock do que com a música do Nordeste. Chegou, inclusive, a me convidar a fazer parte, mas, como eu discordasse, fui obrigado a declinar do convite. Contudo, tentei lhe explicar o que ora resumo por aqui: o que viria a ser a música paulista? E por que o rock, um estilo musical importado, deveria ser aceito como música paulista e a nordestina não? Afinal, continuei, a cidade de São Paulo é a que tem maior contingente de nordestinos fora do Nordeste. A ideia, graças a Deus, não vingou.
O roqueiro reaça Lobão, quando ainda conseguia manter intervalos de lucidez, compôs um dos sambas mais belos que já ouvi, Nostalgia da Modernidade. Em sentido contrário, o papa da bossa nova, João Gilberto, gravou lindamente o clássico do rock brasuca daquele, Me Chama. Beth Carvalho, antes de abraçar o samba, dedicava-se a cantar outros estilos; o sertanejo Sérgio Reis começou a carreira cantando iê-iê-iê; no primeiro (e renegado) disco de Roberto Carlos, o "Rei" gravou várias bossas imitando João Gilberto; Maria Rita, quando quis se descolar da mãe, passou a se dedicar a gravar discos de samba; Cazuza cantou lindamente Nelson Cavaquinho e Cartola; Chico Buarque gravou, de Roberto e Erasmo, e no disco desse último, a bela Olha... em bossa nova... Continuo?
Vivemos tempos bicudos, amizades se partem como cristais, o retrocesso bate a nossa porta, artistas têm sido chamados de vagabundos, atores de filmes pornográficos se metem a dar pitaco na educação, deputados louvam torturadores, profissionais competentes não conseguem emprego por manterem um posicionamento de esquerda nas redes sociais, com os nervos à flor da pele estamos praticamente à beira de uma guerra civil... portanto, não podemos nos dar ao luxo de morder a isca que eles nos lançam. Eles, os do lado de lá, adoram censurar, pois assim nos apequenam e acovardam; mas nós, da classe artística, não podemos (ou ao menos não devemos) usar as armas dos burocratas. Uma nação que cala seus criadores mediocriza sua cultura.
Um criador deve ter a liberdade de criar o que quiser, tratar de quaisquer assuntos que lhe pareçam relevantes, aproveitar-se dos instrumentos que tenha à mão (ou não) e que lhe apeteçam, sem amarras, mordaças, policiamentos ou patrulhismos ideológicos. Tudo o que pode nos enriquecer deve ser bem-vindo. No começo do século passado, quem tocava violão não era visto com bons olhos pela sociedade, e o samba era música (de) marginal. Pouco tempo depois, seus executores adentraram os salões e o estilo se popularizou. Avançamos algumas décadas e nos deparamos com o samba já estabelecido e reconhecido como patrimônio nacional, e eis que surge a bossa nova, rompendo paradigmas e se impondo, implacável, mesmo ante o chororô dos tradicionalistas. Não houve jeito; ela vinha pra ficar.
Continuamos nessa linha evolutiva e eis que lá estão os ex-revolucionários indo às ruas contra a má influência da guitarra elétrica, que vinha "profanar" a "pureza" de nossa música. Novamente, a liberdade da criação não se curvou ante a opinião contrária, muito pelo contrário, fez a cabeça de seus detratores, e os tropicalistas, com seus cabelos esvoaçantes e suas roupas exóticas, vieram espalhar sua geleia geral que não via limites e amarrava Vicente Celestino a Mutantes, tendo como nó Nara Leão. Poucos anos se passaram, e a censura dos imbecis tentou calar a criatividade de nossos compositores e deu margem pra que estes se rissem daquela por meio de artimanhas mil, metáforas, ironias, compositores que não existiam e que mesmo assim tinham coragem de "chamar o ladrão".
Enfim, por mais que respeitemos a tradição (seja ela artística ou política) ou dela façamos parte, não adianta espernear, pois, como dizia o poeta, "o novo sempre vem" e se aproveita do que pra nós é sagrado manuseando-o com uma sem-cerimônia quase blasfema. E dessa relação íntima entre o sagrado e o profano é que nasce a tradição do amanhã, e assim sucessivamente. Portanto, meus caros (e valorosos) sambistas, deixem Zélia se lambuzar de samba, pois é por causa dela (e de outros que a irmanam em atitude) que o samba agoniza, mas não morre. Não o fossilizem, não o engessem. Deixem-no livre pra se metamorfosear no que quer que seja, pois foi assim que ele nasceu e se transformou no que é hoje e continua mudando e adquirindo características diferentes, sem respeitar fronteiras nem cercas, pois é só se contaminando que se purifica. Amém.
Há alguns anos, o saudoso Madan, querido parceiro e genial compositor, entrou numas de querer organizar um movimento em defesa da música paulista. Nesse momento de equívoco, justo ele, que já havia composto de tudo um pouco, decidiu que os compositores daqui tinham que excluir do balaio criativo, entre outras, a música nordestina. Disse-me que São Paulo tinha mais proximidade com o rock do que com a música do Nordeste. Chegou, inclusive, a me convidar a fazer parte, mas, como eu discordasse, fui obrigado a declinar do convite. Contudo, tentei lhe explicar o que ora resumo por aqui: o que viria a ser a música paulista? E por que o rock, um estilo musical importado, deveria ser aceito como música paulista e a nordestina não? Afinal, continuei, a cidade de São Paulo é a que tem maior contingente de nordestinos fora do Nordeste. A ideia, graças a Deus, não vingou.
O roqueiro reaça Lobão, quando ainda conseguia manter intervalos de lucidez, compôs um dos sambas mais belos que já ouvi, Nostalgia da Modernidade. Em sentido contrário, o papa da bossa nova, João Gilberto, gravou lindamente o clássico do rock brasuca daquele, Me Chama. Beth Carvalho, antes de abraçar o samba, dedicava-se a cantar outros estilos; o sertanejo Sérgio Reis começou a carreira cantando iê-iê-iê; no primeiro (e renegado) disco de Roberto Carlos, o "Rei" gravou várias bossas imitando João Gilberto; Maria Rita, quando quis se descolar da mãe, passou a se dedicar a gravar discos de samba; Cazuza cantou lindamente Nelson Cavaquinho e Cartola; Chico Buarque gravou, de Roberto e Erasmo, e no disco desse último, a bela Olha... em bossa nova... Continuo?
Vivemos tempos bicudos, amizades se partem como cristais, o retrocesso bate a nossa porta, artistas têm sido chamados de vagabundos, atores de filmes pornográficos se metem a dar pitaco na educação, deputados louvam torturadores, profissionais competentes não conseguem emprego por manterem um posicionamento de esquerda nas redes sociais, com os nervos à flor da pele estamos praticamente à beira de uma guerra civil... portanto, não podemos nos dar ao luxo de morder a isca que eles nos lançam. Eles, os do lado de lá, adoram censurar, pois assim nos apequenam e acovardam; mas nós, da classe artística, não podemos (ou ao menos não devemos) usar as armas dos burocratas. Uma nação que cala seus criadores mediocriza sua cultura.
Um criador deve ter a liberdade de criar o que quiser, tratar de quaisquer assuntos que lhe pareçam relevantes, aproveitar-se dos instrumentos que tenha à mão (ou não) e que lhe apeteçam, sem amarras, mordaças, policiamentos ou patrulhismos ideológicos. Tudo o que pode nos enriquecer deve ser bem-vindo. No começo do século passado, quem tocava violão não era visto com bons olhos pela sociedade, e o samba era música (de) marginal. Pouco tempo depois, seus executores adentraram os salões e o estilo se popularizou. Avançamos algumas décadas e nos deparamos com o samba já estabelecido e reconhecido como patrimônio nacional, e eis que surge a bossa nova, rompendo paradigmas e se impondo, implacável, mesmo ante o chororô dos tradicionalistas. Não houve jeito; ela vinha pra ficar.
Continuamos nessa linha evolutiva e eis que lá estão os ex-revolucionários indo às ruas contra a má influência da guitarra elétrica, que vinha "profanar" a "pureza" de nossa música. Novamente, a liberdade da criação não se curvou ante a opinião contrária, muito pelo contrário, fez a cabeça de seus detratores, e os tropicalistas, com seus cabelos esvoaçantes e suas roupas exóticas, vieram espalhar sua geleia geral que não via limites e amarrava Vicente Celestino a Mutantes, tendo como nó Nara Leão. Poucos anos se passaram, e a censura dos imbecis tentou calar a criatividade de nossos compositores e deu margem pra que estes se rissem daquela por meio de artimanhas mil, metáforas, ironias, compositores que não existiam e que mesmo assim tinham coragem de "chamar o ladrão".
Enfim, por mais que respeitemos a tradição (seja ela artística ou política) ou dela façamos parte, não adianta espernear, pois, como dizia o poeta, "o novo sempre vem" e se aproveita do que pra nós é sagrado manuseando-o com uma sem-cerimônia quase blasfema. E dessa relação íntima entre o sagrado e o profano é que nasce a tradição do amanhã, e assim sucessivamente. Portanto, meus caros (e valorosos) sambistas, deixem Zélia se lambuzar de samba, pois é por causa dela (e de outros que a irmanam em atitude) que o samba agoniza, mas não morre. Não o fossilizem, não o engessem. Deixem-no livre pra se metamorfosear no que quer que seja, pois foi assim que ele nasceu e se transformou no que é hoje e continua mudando e adquirindo características diferentes, sem respeitar fronteiras nem cercas, pois é só se contaminando que se purifica. Amém.
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Léo, poste a resposta da Zélia também
ResponderExcluirTá no link acima, Edu. Este: http://oglobo.globo.com/cultura/eu-nao-sou-eu-19382208
ExcluirAbraço,
Léo.
Ótimo, Léozíssimo!
ResponderExcluirValeu, Curcíssima!
ExcluirBj,
Léo.
Valeu, Silvia!
ExcluirAbraço,
Léo.