terça-feira, 10 de maio de 2016

Esquerda, Volver: 7) O que não queria magoar e o injuriado

"Eu sei que já faz muito tempo que a gente volta aos princípios/ Tentando acertar o passo, usando mil artifícios/ Mas sempre alguém tenta um salto, e a gente é que paga por isso/ Fugimos pras grandes cidades, bichos do mato em busca do mito/ De uma nova sociedade, escravos de um novo rito/ Mas, se tudo deu errado, quem é que vai pagar por isso?" Estes são alguns dos preciosos versos de Bernardo Vilhena sobre melodia de um compositor que não existe mais. A canção, atualíssima, chama-se Revanche, e o dono da melodia e que já não a canta faz um tempo se chama Lobão. Sim, aquele mesmo que preferia viver dez anos a mil a viver mil anos a dez na nervosa Décadence Avec Élégance; aquele da Vida Bandida; dos Canos Silenciosos; que puxava a orelha do (e na) Mano Caetano; que...

... foi autor de uma série de clássicos vorazes do rock nacional; que foi quem esteve à frente do tão importante projeto de numeração de CDs; que driblou, impávido, impostos que aumentavam os preços dos discos lançando-os como brindes de revistas em bancas de jornais; que peitou a Globo em pleno programa do Faustão em domingo de eleição ao declarar (e conclamar) seu voto em Lula; que foi preso por porte de drogas; que foi levado à Mangueira pela mão por ninguém menos que Elza Soares; que publicou uma das autobiografias mais pungentes já escritas por artistas brasucas; que... Pô, há tanta coisa pra falar sobre esse artista da maior relevância no cenário brasileiro, e é com grande tristeza que venho anunciar que esse baita cara a quem todos já amamos em determinado momento de nossa vida sumiu (terá ido atrás de Belchior?)...

Na verdade, depois de seu sumiço, um obscuro cidadão que (não) atende pelo nome de João Luiz Woerdenbag Filho anda se fazendo passar por ele já faz algum tempo; porém, se analisarmos com olho clínico, dá pra perceber que, apesar da incrível semelhança física e do fato de o tal João o imitar à perfeição, trata-se de duas pessoas completamente diferentes. Sim, porque Lobão, apesar de ter cursado polemismo com o mestre (tão querido por ele e, ao mesmo tempo, renegado) Caetano, sempre foi um criador compulsivo, ao passo que esse que hoje se faz passar por ele vive de blá-blá-blá (sem o "eu te amo"). A diferença entre o original e a cópia é como a que há entre Jesus Cristo e Inri Cristo. Aquele fazia, este diz que fez e faz. Tal e qual João.

Que não é o Gilberto, mas o Woerdenbag (e ainda por cima Filho!). O velho Lobão será sempre jovem, já esse novo senhor quase sexagenário age de acordo com sua idade, posicionando-se politicamente ao lado dos reacionários, defendendo torturadores etc. e bolinha. Digam-me se há algo mais antirroquenrol que ser admirador do político Ronaldo Caiado (o mesmo que foi contra o impeachment de Collor e é a favor do de Dilma). Esse João, em entrevista recente (polemista como o original) ao programa Pânico no Rádio, fanfarrão, perguntou-se como um jovem cheio de testosterona podia compor, com 20 e poucos anos, uma canção como A Banda. Claro, referindo-se a Chico Buarque. E eu fico pensando cá com meus botões... Iniciemos novo parágrafo antes.

Eu fico pensando cá com meus botões o quão anacrônico pode ser um sujeito hoje em dia, em pleno século XXI, pensar que só o rock é música de jovem e pode flertar com a vicejante sexualidade da rapaziada. Fica parecendo que, de Mozart a Jobim, passando por chorões e sambistas, enfim, essa galera toda que foi jovem sem ser contagiada pelo rock não viveu uma adolescência saudável com direito a seu quinhão de libidinosidade. Ora, meu caro João, Mick Jagger está com 72 anos e Paul McCartney, com 73! Da década de 1960 pra cá muita água rolou, e já faz tempo que o rock deixou de estar na linha de frente da subversão e ditar regras comportamentais. Não é de hoje que os roqueiros foram engolidos pela indústria e fazem propaganda de refrigerantes... ou coisa pior.

Vou dar um exemplo tirado de uma entrevista com o próprio Chico: disse ele certa vez que, quando o iê-iê-iê estava em alta no Brasil, os "jovens-guardas" eram tão visados e, consequentemente, protegidos, que nem podiam beber e dificilmente conseguiam ir às vias de fato com alguma fã (o medo de processos, escândalos e quetais era grande nas gravadoras). Em contrapartida, a galera emepebista, com suas bandas, seus ponteios e seus domingos no parque, caía na manguaça e "comia todas as menininhas da cidade" com a liberdade de quem não virou produto de consumo. Veja, meu caro João, sempre houve vida (sexual) inteligente fora das mesmas sequências de acordes dos jovens guitarristas. O discurso de maconheiro arrependido que vira reaça é semelhante ao de um ex-gay.

Este escriba, modestamente, acha uma pobreza de espírito um ouvinte dito politizado condenar ou mesmo diminuir a importância da música de algum artista porque este tem um posicionamento político contrário ao daquele. A obra de Lobão (embora possua menos representatividade que a de Chico no cancioneiro nacional) tem seu valor e merece respeito e muito provavelmente, daqui a algumas décadas, ainda marcará corações (mas as besteiras de menino que ele disse, não). A grande diferença talvez resida na coerência em alguns e sua falta em outros. Chico continua fiel à filosofia de vida que o trouxe até aqui; claro, com alguns cabelos brancos a mais. Já Lobão, desde que entrou em crise consigo mesmo e virou um cordeirinho com garras, não reparou (será?) que tal crise se refletiu em sua música.

Sinceridade? Acho que foi ela que viveu dez anos a mil. Décadence sans élégance.


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9 comentários:

  1. Caro Leo o texto está ótimo. A degenerescência política não é tão incomum. Gente que na juventude mostravam posicionamento político, culturais, destemidos, inovadores e hoje não passam de melancólicas figuras patéticas. A lista é grande: "Konder", "Boris Fausto", "Vandré", "O cineasta da Globo", etc. e tal. E tem mais, nem uma formação política garante uma conduta política inabalável: "G. Plekhanov", "Karl Kautsky", "Stalin" e por ai afora... e aqui na periferia da periferia não poderia ser diferente.
    Abraços carinhosos

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    1. Falou tudo, Rolan! Por isso, enfatizo que há que separar artista e obra. A não ser quando o artista transforma sua obra em panfleto de suas equivocadas ideias...

      Abração,
      Léo.

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  2. Pou! Este é o barulho que você fez matando a pau! :)
    Beijos!

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  3. Outra coisa, Leozito. Acabei de lembrar de uma das tantas frases cretinas que ouvi do meu pais, a vida inteira: ‘Quem não foi comunista até os 20 anos, não tem coração; quem continua depois dos 30, não tem cérebro’. Eu, então, sou mesmo uma ovelha negra, pois fiz o caminho oposto! Não tinha cérebro aos 20 (pelo menos politicamente falando) e hoje em dia cérebro e coração estão a postos, devidamente viradinhos para o lado esquerdo do peito. E tenho dito! :)

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    1. Dannoca, então somos dois: em meu caso, particularmente falando, tô mais pra uma espécie de "utopista", pois penso num sistema de governo que extraia o melhor que todos os outros possuem e aplique num só. Facinho de conseguir, né não? rs

      Beijos,
      Léo.

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    2. Então me identifico novamente: utopistas, graças a Deus!!!
      Fácil não é mesmo. Nunca foi. Mas a utopia serve pra isso, como bem disse Galeano, né? :)
      Beijos utópicos!

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    3. Sigamos galeando (rs). Alguém tem que destoar pra que algo soe diferente do coro dos bois contentes, né?

      Beijos,
      Léo.

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