segunda-feira, 20 de abril de 2020

Os Manos e as Minas: 35) Luiz Alberto Mendes, o homem que quebrava correntes

Crédito: Gabo Morales/Trëma/Trip Editora
Fico bastante irritado quando vejo alguns artistas — em sua maioria burgueses —, em atitude blasé, dissertarem sobre a inutilidade da arte. Entendo que deva ser alguma figura de linguagem, ou um jeito charmoso de dizerem que ganham seu pão se dedicando a algo que não é imprescindível na vida das pessoas; mas aí eu pergunto: não será mesmo? Pensem num mundo sem canções, sem livros, sem filmes, sem quadros e esculturas etc. etc. Pensaram? E sobretudo agora, quando estamos todos confinados, o que seria de nós se não fosse a arte? O tempo que gastamos em consumi-la ou ainda em fazê-la posso dizer que, ao contrário de ser tempo perdido, é um tempo que nos salva. Ou em que nos salvamos de fazer alguma bobagem.

Entre tantos exemplos que poderia dar está o de Luiz Alberto Mendes. Se você não faz a menor ideia de quem seja essa pessoa, digo como os baianos: procure saber! Pra fazer um pequeno resumo, o sujeito em questão — que, aliás, acaba de falecer — passou quase metade de seus parcos 67 anos na prisão, condenado por assalto a mão armada, assassinato y otras cositas más (e aqui esse "más" pode ser lido tanto em espanhol quanto em português). Pouco instruído, na cadeia apaixonou-se pelos livros, estudou, completou os ensinos fundamental e médio por correspondência e chegou a ser o primeiro preso de São Paulo a entrar numa faculdade. De dentro da própria cadeia, escreveu um manuscrito que viria a ser um de seus primeiros livros e nunca mais parou.

Quem quiser saber mais sobre sua interessantíssima biografia, basta "dar um Google" que está tudo ali; meu intuito aqui não é o de escrever seu resumo biográfico, mas sim o de oferecer-lhe, infelizmente — e ao contrário daquele velho clássico de Nelson Cavaquinho —, flores em morte. Já devia ter escrito sobre ele há muito tempo, mas algumas coisas vamos postergando, postergando, e quando vemos ficou tarde demais. Bom, nesse caso, tarde demais pra que ele lesse minha singela homenagem, mas não pra que você, leitor, possa ainda entrar em contato com a obra desse cara incrível que é (foi) um exemplo vivo da utilidade da arte e a quem não conheci pessoalmente, mas de quem me aproximei, com admiração e respeito, pelo fato de termos sido colegas de editora.

Pouco antes de lançar meu primeiro romance, o Filho da preta!, pela editora Reformatório, soube que Luiz Alberto Mendes havia lançado um livro de poemas (Desconforto) pela mesma editora; então, na condição de colega, procurei me aproximar dele pra que, assim, trocássemos algumas ideias. Como descobri que ele tinha perfil no Facebook, mandei-lhe um convite que foi prontamente por ele aceito, e logo já estávamos nós levando o maior lero. Inclusive, ficamos de marcar um encontro pra tomar umas & outras e filosofar sobre vida & arte, mas o corre-corre do dia a dia foi empurrando com a barriga esse encontro, que acabou por nunca vir. Em parte também porque morávamos longe um do outro: eu no Bixiga, ele no Embu das Artes.

Uma das coisas que mais me chamaram a atenção durante o período de nosso contato foi justamente seu comprometimento com a arte. Diria mais: seu respeito por ela. Falo isso até com certa inveja, pois nunca fui consciente (orgulhoso?) o bastante pra entender que o que faço é um trabalho que, sim, merece ser remunerado, como todos os demais. Se temos uma dor de dente e vamos ao dentista, pagamos a consulta; se temos um problema com a fiação elétrica em casa e chamamos um eletricista pra resolvê-lo, pagamos a visita do profissional; se nosso carro quebra e o levamos a um mecânico, pagamos por seu serviço; etc. e tal. Porém, quando o assunto é arte, sempre achamos que o profissional que procuramos pode "quebrar um galho" e nos dar uma "forcinha" com algo. Como diria o velho Sinhozinho Malta, tô certo ou tô errado?

Espero que não me levem a mal, no parágrafo anterior quis apenas demonstrar como a arte é sempre tida e havida como serviço inferior. Que o digam os tantos músicos — muitos dos quais amigos meus — que são profissionais do ofício de tocar em bares; eles sabem melhor que ninguém as condições subumanas pelas quais passam. Mas não percamos o foco; voltemos. Em certa ocasião, falando com Luiz sobre meu blogue (ele também manteve o dele por 19 anos na revista Trip, aqui), convidei-o a, se quisesse, escrever algum texto pra minha coluna Grafite na Agulha, que trata sobre discos memoráveis. Sua resposta em princípio me magoou um pouco, mas não precisei refletir muito pra entendê-lo. No final, acabei considerando-a, mais que uma simples resposta, um depoimento que é uma verdadeira aula de vida e arte. Colo-a abaixo:

"Léo, olha, meu caro, eu sou metido a escritor profissional que vive e sustenta seus filhos, ex-esposa, uma outra atual e agregados, com o que escreve. Não sei fazer mais nada senão escrever, dediquei décadas lendo, estudando, pesquisando e aprendendo a escrever (ainda estou aprendendo a cada texto). Então, o meu texto é o que tenho a vender, negociar, é o meu produto e não posso, de modo algum, escrever sem remuneração. Seria um tempo em que eu me dedicaria a outros textos, a outras escritas (estou revisando um novo livro), a leituras e estudos que, de alguma forma, me mantêm vivo dentro do que sou metido. Então, eu só escrevo profissionalmente. Se eu resolver escrever gratuitamente, será sempre por uma causa social. Sabe, como outros profissionais, eu também gosto de ser reconhecido financeiramente, é um estímulo. Desculpe-me, sou um duro, não tenho carro, moto, nada, apenas vou vivendo. Abraços, Luiz."

Acho que só os artistas que nalgum momento de suas vidas realmente passaram por necessidades ou privações sabem dar o verdadeiro valor a essa arte — voltando ao começo do texto — que outros chamam de inútil. Claro, os privilegiados também têm pleno direito de exercer seu ofício de artista, e pobreza não é em 100% dos casos sinônimo de talento, mas é interessante notar como distintos olhares são lançados sobre ela de acordo com cada realidade. Cultura, todos temos; segundo o Houaiss, trata-se de um "conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social". Assim, onde quer que haja convívio social haverá cultura; mentes brilhantes que a transformem em arte já é outra história.

Boa travessia, Luiz! Por ora, nós outros vamos ficando por aqui, alimentando-nos dessa tão maravilhosa e imprescindível "inutilidade" que é a arte, em parte ajudados pelo legado que você nos deixou de herança. Saravá!

***

PS1: Um pouco mais de LAM:



***

PS2: Presentinho, Homem-Pássaro, de Rica Soares, com o próprio mais Sander Mecca:



***

Nenhum comentário:

Postar um comentário