Sou do tempo das cartas. Quando penso nelas a primeira recordação que me
vem à mente é a de ver meus pais felizes por lhes ter o carteiro
trazido uma lá do Km 29, Senador Pompeu-CE. Parecia uma coisa quase
religiosa: o cuidado no abrir o envelope, pra não rasgar o conteúdo; a
leitura da carta, às vezes em voz alta, às vezes não; seu passar de mão
em mão e o respectivo apuro do olfato, como se estivéssemos sentindo o
cheiro do lugar de onde ela tinha vindo; o capricho da letra; o esmero
na resposta; a espera pela carta seguinte... Tudo o que girava ao redor
dessa correspondência era encarado com a maior seriedade, apesar da
alegria que era sua leitura. Às vezes havia lágrimas pela notícia da
morte de algum parente (na época não tínhamos telefone em casa), às
vezes um sorriso por saber do nascimento de outro...
Eram tempos mais lentos, e gozávamos todos essa lentidão. Há certo prazer na espera, que vem de esperar, que resulta em esperança. Afinal, passamos a vida esperando o acontecimento de coisas boas, e esse tempo é bem maior do que o de sua realização. Às vezes o que esperamos nem mesmo chega a se realizar... E era assim que o prazer dava lugar à angústia quando uma carta demorava... ou não vinha. Porque então não sabíamos se se havia extraviado ou se a pessoa com quem nos correspondíamos havia ficado ofendida com algo que escrevêramos e preferira o silêncio. Daí esse caráter quase religioso que citei acima, esse respeito pela palavra escrita. Muitas vezes rasgávamos uma carta que havíamos demorado horas pra escrever só por causa de um erro gramatical ou de uma palavra malposta.
Na literatura temos vasto material resultante de
correspondência trocada entre pessoas importantes. Há mesmo romances
escritos em forma de troca de cartas, como o ótimo As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos.
Mas entre anônimos também há muita coisa interessante, muita poesia
escrita em forma de prosa. As cartas despertavam talentos. Eu mesmo me
correspondi bastante por cartas com uma namoradinha de adolescência que
morava em Belém do Pará e vinha a São Paulo nas férias escolares, quando
visitava sua irmã, que era minha vizinha. Quando chegava uma carta dela
eu era acometido por uma felicidade quase infantil. Cheirava, beijava,
demorava à beça antes de começar a ler, valorizando ao máximo o conteúdo
da missiva. Ah, só de lembrar sinto uma nostalgia, uma pontada de boa
dor no peito...
Curiosamente, sempre preferimos escrever a mão,
mesmo tendo comprado uma máquina de escrever. Parecia falta de respeito,
demonstração de impessoalidade. Além do que havia o formato único que
cada um impunha às palavras que escrevia. Uns praticamente desenhavam,
outros faziam uns garranchos que sofríamos pra decifrar, mas não havia
duas pessoas com a mesma letra. A personalidade de cada um estava ali,
eternizada numa folha de caderno ou de bloco. Sem falar nos bilhetinhos,
parentes mais novos das cartas. Na escola fazíamos a festa com eles.
Alguns eram de amor, alguns anônimos, outros de fofoca, outros dedurando
alguém pra professora... Enfim, o hábito de escrever a mão estava em
nós, conhecíamos a pessoa pela letra, por isso alguns, quando não
queriam ser descobertos, se esforçavam pra camuflá-la, ou mesmo
escreviam com a mão trocada...
Hoje, isso faz parte do passado. O progresso trouxe o
computador, a internet, a notícia em tempo real, a velocidade nas
correspondências, com o advento dos e-mails e das mensagens via
celular... e a natural vulgarização da palavra escrita. E, como somos
animais adaptáveis ao meio e à época, mesmo que no começo teimemos em
não adotar tais avanços, no fim acabamos cedendo e nos rendendo a uma
realidade que veio pra ficar. Claro que ninguém é idiota de dizer que
hoje está pior que antes. Num caso de acidente na estrada, temos o
celular à mão; numa urgência, podemos falar com alguém do outro lado do
país, ou mesmo do exterior, via celular, ou pelo computador, e com
câmera e tudo! Um verdadeiro conforto! Sem falar nos escritores,
jornalistas e quetais, que apagam, ops, deletam um erro num único toque.
Contudo, quando dois turrões se encontram, mesmo a
tecnologia vem com cheiro de naftalina. Foi o caso de minha longa
correspondência com meu amigo Sérgio-Veleiro. Ele lá em Fortaleza e eu
aqui em Sampa. Foram anos usando a tela do computador como folha de
caderno, o teclado como caneta e o e-mail como carteiro. Tudo o que
escrevemos daria um belo livro, tenho certeza. Já falei pra ele que o
autorizo a publicar, mas só depois de minha morte. Afinal, há nelas
muitas revelações, muitos pensamentos íntimos, muitas coisas que
poderiam ofender terceiros, e mesmo opiniões que não temos mais. Só que
um belo dia os e-mails começaram a rarear, até que por fim cessaram. Sem
motivos, sem mágoas, sem causar danos à amizade; tratava-se apenas da
época, que se impunha a dois velhinhos menos turrões que ela.
Mas eu e Veleiro somos exceções. Somos dois livros
empoeirados numa estante cheia de bugigangas eletrônicas, dois radinhos
de pilha numa loja de iPods, iPads, iFodes... Talvez por isso, por ser
quem sou, tenha pensado em escrever estas linhas por causa de uma
insignificância que notei estar se tornando hábito entre a maioria de
meus amigos: o descaso com as respostas. Não que eles não prezem nossa
amizade, nada disso, é apenas o corre-corre, a brutal falta de tempo que
nos transforma em escravos do relógio, sempre correndo na direção
contrária a nossos sonhos, pois é de lá que sai a grana pra pagar as
contas. Daí que lemos o que o amigo escreveu e delegamos a resposta ao
amanhã, que chega com outras urgências, e a resposta vai ficando pra
trás até ser esquecida (ou caducar). São essas as relações que
cultivamos (?) hoje em dia. Ontem a mancha de lágrima ficava impressa na
carta, hoje o computador, impermeável, a deleta. Amanhã nem choraremos
mais.
A meus amigos, com amor.
***
CARTAS DE AMOR
Por Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Álvaro de Campos, 21/10/1935.
***
Ah Léo, e eu nem havia lido esse texto quando publiquei o meu...que coisa incrivel!
ResponderExcluirFalamos das mesmas coisas, por caminhos diferentes, vc certamente com mais competência, porque seu texto é rico nos detalhes e isso faz toda a diferença.
Mas o Pessoa está ali, nos dois escritos, não é mesmo? Que bacana!
Eu guardo todas as cartas que recebei na minha vida, na infância, na adolescência. Não consigo jogar nada fora, pq são relíquias pra mim.
E agora estou organizando as cartas da minha mãe. Ai, ai eu devia mesmo era cuidar de um museu, de uma biblioteca, penso muito nisso!!! :-)
Beijos, Léo, adorei a sintonia!
Poxa, Mari, te invejo. Minhas cartas do passado se perderam nas gavetas do tempo. A gente acha que nunca vão acabar, daí param de chegar... e never more... Hoje, os e-mails são tão desimportantes, que as pessoas às vezes nem se dão ao trabalho de responder...
ExcluirMas estamos em sintonia mesmo, né não?
Beijão,
Léo.
Belíssimo texto, Léo! Ah...dei uma volta ao passado, mas não fiquei lá rsrs.
ResponderExcluirParabéns e grande abaço!
Oi, Hilda! Que bom que você achou essa "carta".
ResponderExcluirAbração,
Léo.