O hábito de ler jornais é também o hábito de ler ideias. Eu queria ter o tempo e a disposição que tem, por exemplo, Caetano Veloso,
que já disse numa entrevista que lê vários jornais no café da manhã (e
depois volta a dormir). Minha realidade é distinta, quando muito leio
mal e porcamente a Folha de São Paulo velha de guerra, hábito
que, com um ou outro escorregão, tenho mantido há longos anos. Um amigo
certa vez me criticou, dizendo que a Folha é de direita e
blá-blá-blá. Procuro não entrar nessa paranoia, pois daí teria que
procurar um jornal "de esquerda", o que seria decisão igualmente
equivocada, visto que um bom jornal deveria ser neutro, pra que pudesse
dar as notícias sem parecer tendencioso.
Se a Folha em seus editorias por vezes esbarra em ideias da Veja,
por outro lado possui uma gama admirável de colunistas com liberdade
pra explorar os temas mais espinhosos. Mesmo alguns declaradamente
direitistas (como João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé)
possuem o raro talento da clareza de pensamento expressa pela via da
escrita, o que sei, por experiência própria, não ser um dom a se
menosprezar. No mais, é sempre bom saber como defende sua opinião aquele
que discorda da nossa. Claro, há um ou outro que não vale uma olhadela,
mas a Folha não tem exclusividade nisso. Depois, basta virar a página pra encontrar Carlos Heitor Cony, Ruy Castro, Xico Sá, Marcelo Coelho, Tostão, Clóvis Rossi, José Simão, Barbara Gancia, Danuza Leão (das duas últimas discordo vez por outra, mas admito que me prendem)... E há algum tempo vem me chamando a atenção um tal de Antonio Prata!
O jovem Prata (sim, jovem, pois veio ao mundo
apenas cinco anos depois de mim) possui características que prezo num
texto: bom humor, pena afiada, o acerto na escolha dos temas, entre
outras coisas. Sobretudo sabe navegar pelas turbulentas águas da
emotividade com sensibilidade cirúrgica pra não descambar no piegas. Foi
assim seu mais recente texto, PEC & Pague (leia aqui),
no qual tratou de algumas reminiscências motivadas pelo reencontro com
uma senhora que fora empregada doméstica em sua casa quando ele era
garoto. Curiosamente acabei de compor com Marcio Policastro uma canção cuja protagonista é uma doméstica, e Poli sugeriu que mudássemos sua profissão, pra evitar polêmicas. Não só argumentei no intuito de mantê-la, como, incentivado por Prata, resolvi falar um pouco dessas senhoras.
A
empregada doméstica de minha casa sempre foi minha mãe. O salário de
meu pai não dava pra esses luxos. Cresci, casei-me e continuei sem saber
o que é dividir a intimidade do lar com tão imprescindíveis heroínas.
Claro, sempre há aqueles momentos em que, depois de uma festa, quando
bato o olho na pia repleta, ou quando tenho que me deparar com meias e
cuecas em precário estado de manutenção, adoraria estalar os dedos e ver
se materializar ante mim um desses exemplares de "pau pra toda obra".
Porém, tampouco meu salário me dá essas folgas. Até poderia contratar
uma pra vir uma vez por semana, mas nessa hora entro em choque com meus
princípios, tapo o nariz e profiro aquela frase que sabe caber tão bem
nessas situações: "se não tem tu, vai tu mesmo!"
O
ser humano aprende com as adversidades. Eu, por exemplo, desenvolvi a
técnica de compor lavando louça. Recomendo aos colegas compositores.
Quando venço a última e engordurada panela chego até a sentir saudades
dessa força motriz inspiradora. Por outro lado, concordo com o Prata
quando diz que tratando de sua relação com a ex-empregada se sentiu
como que se recordando da infância de um menino de engenho do século 19.
Há dignidade em todas as profissões, e todas merecem nosso respeito,
mas algumas são herdeiras da escravidão. Tenho certeza absoluta de que
nenhuma criança jamais em sã consciência respondeu, quando indagada
sobre o que queria ser quando crescesse, "eu quero ser empregada
doméstica". Você, estimada leitora de unhas reluzentes, alguma vez,
quando brincava com sua boneca, acalentou-a como se fosse a filha da
patroa?
Não!
Nenhuma criança jamais sonhou com tal profissão. E considero crime
inafiançável preparar crianças a terem sonhos tão pequenos. Aliás, ser
empregada doméstica não é sonho, é resignação. É como garçom. Quando vou
a um desses restaurantes italianos tradicionais e vejo o olhar de
respeitabilidade daqueles senhores de cabelos grisalhos que me servem
com técnica apurada forjada em décadas de experiência no serviço do
servir, por vezes meu coração fica parecendo feto dando chute na barriga
da mãe. Tento penetrar naqueles olhos pra ver se descubro quando o
garoto largou a bola e agarrou um guardanapo e uma bandeja... Certas
profissões me deprimem. Eu, que, em períodos de vacas magras, já
trabalhei em obras como servente de pedreiro, até hoje sou traumatizado.
Não posso passar em frente a um prédio em construção, que me embrulham o
estômago os cheiros, a visão dos capacetes, o ar empoeirado, os olhares
perdidos noutro lugar...
Imagine
você se ver obrigado pelas circunstâncias a passar uma vida
inteeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeira trabalhando em algo que não escolheu. Use
de empatia e tente, por exemplo, a título de exercício, pensar que está
dormindo e é acordado por um despertador barulhento e se vê numa casa
pequena que fica a, digamos, uma hora e meia daquela onde você passará o
dia servindo, humildemente e com um forçado sorriso no rosto, pessoas
que hierarquicamente lhe são superiores pelo simples fato de terem sido
escolhidas pela sorte pra virem à luz expulsas da barriga certa.
Pensaram? Não dá um pavor? Meio que como naqueles filmes em que o cara
acorda num lugar estranho na pele de um estranho numa situação pra lá de
estranha. Não, tsc tsc tsc... Como dizem por aí, "ninguém merece". Nem
os que merecem!
Claro,
você pode rebater e dizer que também acha seu emprego chato, seu patrão
um mala, mas você estudou pra isso, escolheu. As empregadas domésticas
não. Elas são empurradas pra isso. Você pode até achar um médico filho
de doméstica, mas jamais encontrará uma doméstica filha de médico. Por
que será? Hem? hem? Agora li que a vida das domésticas vai melhorar. Não
discordo. Inclusive aplaudo a iniciativa (podiam aproveitar, passar aqui
na editora e proibir a carga horária de 44 horas semanais). Quando não
dá pra prevenir é louvável remediar. Tenho certeza quase absoluta (como
assim?) de que o futuro
delas será bem melhor. Mas nada vai trazer de volta o passado delas,
quando brincavam de bonecas e sonhavam com várias profissões, mas nunca
lhes passava pela cabeça se tornarem digníssimas e respeitáveis
empregadas domésticas.
***
Léo, concordo em grande parte com você. O problema, no entanto, são os efeitos colaterais das mudanças que estão acontecendo: muitos patrões vão deixar de ter condições de contratar empregadas. Muitos, ainda, precisarão demitir suas empregadas atuais. O resultado? Demissão em massa.
ResponderExcluirMinha irmã, por exemplo, estava quase contratando uma, mas desistiu.
Beijos,
Danny.
Danny, queridoca, só que meu enfoque foi outro, voltado a uma sociedade que precisa de vassalos. No Japão, por exemplo, não há empregadas domésticas. Em alguns países a profissão de garçom é ocupada por universitários que precisam pagar a faculdade. Aqui os caras envelhecem nessa profissão, sem expectativa de galgar nada além dela. Triste...
ExcluirBeijos,
Léo.
Creio que tudo que é visto de fora da "carne" é um pouco certo e outro tanto equivocado. Eu tinha um amigo que dizia (meio cruel) que há os que nascem para serem "pregos" e os que nascem para serem "martelos". Isso não me soava bem.
ExcluirNo mundo há que ter os que catam lixo, os que são obreiros, aqueles que se dedicam até a coisa nenhuma, vegetando ou polemizando mais o planeta.
Havia as mulheres submissas aos maridos. As empregadas de gerações consecutivas...
Não se tinha leis gerindo isso.
Tudo é relativo!
Não gosto dos sem-terras, pelas atitudes que lhes acabam sendo induzidas.
...enfim...
As moças domésticas, que ainda existem por aqui (em muito menos quantidade), devem saber o que lhes é melhor à carne.
abraço forrrrrrrrrrte!
Prista
Salve, Prista!
ExcluirÉ, rapaz, são pensamentos como o de seu amigo que atrasam o mundo. Como dizia Caetano, "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome". Nem pra ser capacho de pés abusados.
Abração,
Léo.
Pois é... onde está a cruz, onde está a espada?
ResponderExcluirÈ vero.
ExcluirAbraço, Cava,
Léo.
Hola Léo... qué tal todo ..
ResponderExcluirme gustó mucho tu texto....
es cierto, son terribles muchas veces las condiciones en las que están las empleadas domésticas... a veces son maltradas verbalmente por sus jefes, pero les toca quedarse trabajando porque necesitan dinero.... pero afortunadamente también hay jefes que son buenos con ellas.
No lo había pensado tanto, pero me hiciste analizar, y es verdad que a veces no valoramos nuestros trabajos porque estamos aburridos, o cansados de los jefes, etc., pero esos trabajos corresponden con nuestras disciplinas escogidas como profesionales... y sí, qué diferencia con quienes trabajan en algo que no quisieron, ni siquiera en algo que estudiaron....
agradezco mucho tu texto, porque me hizo reflexionar!
Aquí en colombia, hay empleadas hasta de 60 años de edad. Es terrible !!!! y todo porque son personas que no tienen recursos y necesitan trabajar para poder vivir.... Me parece grandioso que haya culturas, países donde no existe ese rol, o bueno de esa forma... como en Japón.
Gracias!!!!!
estamos hablando.
Hola, Javier!
ExcluirGracias por tu visita y tus comentarios.
Sí yo creo que todo niño debería tener una educación que le posibilitara crecer libre para eligir su profesión y su futuro.
Gran abrazo,
Léo.
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Valeu pela visita e pelo convite, Carlos. Vou dar uma passada lá.
ExcluirAbraço,
Léo.