1) BODAS DE FEL
"O que Deus
uniu, o homem não separe" (Mc 10,9) é uma célebre frase de Jesus que, a meu ver, é interpretada de forma equivocada pela Igreja. Se Deus é amor, podemos entendê-la como "O que o amor uniu, o homem não separe". A meu ver há um erro gravíssimo na obrigatoriedade de duas pessoas terem de
passar o resto de suas vidas juntas sem a existência do amor. Sim,
porque às vezes o amor acaba, como diz genial poema de Paulo Mendes Campos
(leia aqui). E há, pra piorar, muitas situações-limite, como nos casos
em que a esposa é vítima de violência, quando o marido se acostuma a
chegar bêbado em casa e descontar suas frustrações em cima da fragilidade
feminina. Obrigar uma mulher em tais condições a continuar com o marido
tem nome, e não é amor... Como disse a uma amiga, o amor é eterno,
os casamentos não necessariamente.
E assim que um grande amigo, o gaúcho Vinicius Todeschini, quando ainda morava em Sampa, enviou-me uma melodia pra eu pôr letra. Acho que fui meio fdp, porque, sabendo que ele vivia uma crise matrimonial, acabei compondo uma letra que tratava justamente desse tema. O pior foi que ele curtiu... só que a esposa, não. Algum tempo depois Vinicius veio a se separar; espero que minha letra não tenha contribuído pra tal. Em minha defesa alego que na época não vivia também num mar de rosas matrimonial, por isso, se em parte pensei nele, em parte também pensei em mim. Só, que em meu caso, após umas férias conjugais (forçadas e unilaterais), demos a volta por cima; no caso dele, foi saída pela esquerda...
Hoje Vinicius voltou pro Sul (acho que pra Caxias), cheio de más lembranças de seu conturbado período na Terra da Garoa. Sinto sua falta, tinha tudo pra ser um grande amigo, e a parceria fluía com naturalidade, mas ele preferiu cortar o mal pela raiz, e, apesar das facilidades que a internet nos possibilita, acabamos nos afastando um pouco. Contudo, sei que é uma fase. Vinicius é também psicólogo, e sei que, daqui a algum tempo, quando terminar sua autoanálise, conseguirá ver as coisas boas desse período. Por ora lembro aqui a profética (e bela) canção:
E assim que um grande amigo, o gaúcho Vinicius Todeschini, quando ainda morava em Sampa, enviou-me uma melodia pra eu pôr letra. Acho que fui meio fdp, porque, sabendo que ele vivia uma crise matrimonial, acabei compondo uma letra que tratava justamente desse tema. O pior foi que ele curtiu... só que a esposa, não. Algum tempo depois Vinicius veio a se separar; espero que minha letra não tenha contribuído pra tal. Em minha defesa alego que na época não vivia também num mar de rosas matrimonial, por isso, se em parte pensei nele, em parte também pensei em mim. Só, que em meu caso, após umas férias conjugais (forçadas e unilaterais), demos a volta por cima; no caso dele, foi saída pela esquerda...
Hoje Vinicius voltou pro Sul (acho que pra Caxias), cheio de más lembranças de seu conturbado período na Terra da Garoa. Sinto sua falta, tinha tudo pra ser um grande amigo, e a parceria fluía com naturalidade, mas ele preferiu cortar o mal pela raiz, e, apesar das facilidades que a internet nos possibilita, acabamos nos afastando um pouco. Contudo, sei que é uma fase. Vinicius é também psicólogo, e sei que, daqui a algum tempo, quando terminar sua autoanálise, conseguirá ver as coisas boas desse período. Por ora lembro aqui a profética (e bela) canção:
BODAS DE FEL
Vinicius Todeschini – Léo Nogueira
Seca no mar
Missa no bar
Quem nos pôs
Juntos no altar?
Alho no chá
Dois sem ter par:
Nós dois
Reza sem fé
Bois num balé
Quem nos pôs
Contra a maré?
Sal no café
Dois dando ré:
Nós dois
Nós dois lado a lado
Como acorrentados
Distantes de nós
Dois anjos sem asas
Só cinzas sem brasas
Estamos tão sós
Cegos sem cão
Chuva sem chão
Quem nos pôs
Num só colchão?
Osso no pão
Dois na prisão:
Nós dois
Nenhum lugar
É Xangrilá
Nem vai ser Oz
Você, latim
Eu, mandarim
Quem nos pôs
Pra dizer “sim”?
Água no gim
Dois num motim:
Nós dois
Bodas de fel
Mero papel
Quem nos pôs
Longe do céu?
Óleo no mel
Dois na babel:
Nós dois
Nós dois lado a lado
Como acorrentados
Distantes de nós
Dois anjos sem asas
Só cinzas sem brasas
Estamos tão sós
Cegos sem cão
Chuva sem chão
Quem nos pôs
Num só colchão?
Osso no pão
Dois na prisão:
Nós dois
Nenhum lugar
É Xangrilá
Nem vai ser Oz
***
Seca no mar
Missa no bar
Quem nos pôs
Juntos no altar?
Alho no chá
Dois sem ter par:
Nós dois
Reza sem fé
Bois num balé
Quem nos pôs
Contra a maré?
Sal no café
Dois dando ré:
Nós dois
Nós dois lado a lado
Como acorrentados
Distantes de nós
Dois anjos sem asas
Só cinzas sem brasas
Estamos tão sós
Cegos sem cão
Chuva sem chão
Quem nos pôs
Num só colchão?
Osso no pão
Dois na prisão:
Nós dois
Nenhum lugar
É Xangrilá
Nem vai ser Oz
Você, latim
Eu, mandarim
Quem nos pôs
Pra dizer “sim”?
Água no gim
Dois num motim:
Nós dois
Bodas de fel
Mero papel
Quem nos pôs
Longe do céu?
Óleo no mel
Dois na babel:
Nós dois
Nós dois lado a lado
Como acorrentados
Distantes de nós
Dois anjos sem asas
Só cinzas sem brasas
Estamos tão sós
Cegos sem cão
Chuva sem chão
Quem nos pôs
Num só colchão?
Osso no pão
Dois na prisão:
Nós dois
Nenhum lugar
É Xangrilá
Nem vai ser Oz
***
2) A ESCURIDÃO TAMBÉM CONDUZ
Na canção Choro Bandido, feita em parceria com Edu Lobo, Chico Buarque
comete alguns versos de afiada beleza, entre os quais destaco um:
"saiba que os poetas, como os cegos, sabem ver na escuridão". Eu diria
mais, os artistas em geral podem, por meio de sua arte, enxergar (e
fazer que outros enxerguem) na escuridão. Um belo exemplo é o de um
artista num palco, iluminado e iluminando, de frente pra uma plateia
que, no escuro, se banha com sua luz. Não à toa, o mesmo Chico, no mesmo disco (Paratodos), em sua não menos bela Tempo e Artista,
arremata: "No anfiteatro, sob o céu de estrelas/ Um concerto eu
imagino/ Onde, num relance, o tempo alcance a glória/ E o artista, o
infinito."
A arte é isso, essa coisa que, dizem alguns, não serve pra nada, mas que nos encanta, eleva e, às vezes, é capaz de mudar o rumo de nossas vidas, pra melhor ou pra pior... Há pessoas que podem ser levadas a gestos tresloucados por causa da leitura de um livro; em contrapartida, há outras que se desdobram pra ser melhores seres humanos depois de tocadas por um filme, uma canção, um poema... Mas é preciso entender que, por mais que o artista tenha uma sensibilidade aguçada, ele não sabe as respostas. Só obedece à máxima de Guimarães Rosa em seu Grande Serão: Veredas: "Vivendo, se aprende; mas o que se aprende mais é só a fazer outras maiores perguntas". O artista é um poço de "outras maiores perguntas", e sua importância, em parte, é saber fazê-las encontrar eco no sentimento do público.
Não sei se eu e Gabriel pensamos nisso quando compusemos a canção abaixo, muito provavelmente não (ele me contou que a ideia, dele, surgiu da intenção de dizer algo carinhoso à namorada). Estou aqui apenas relendo a letra e me fazendo crítico de mim mesmo, tentando achar respostas pra criação, que não tem respostas. Mas, se é pra contar algo, conto: esta é uma parceria nossa razoavelmente antiga. Lembro que gostei do resultado, mas não a considerei uma de nossas melhores. Recentemente, na casa de Gabriel, este me cantou uma canção pulsante que adorei de cara. Ao perceber que eu não a tinha reconhecido, ele riu e me disse quem eram seus autores. Só então caiu a ficha. Gabriel tocou-a numa outra levada, mais acelerada, e descobriu a interpretação de que a canção carecia. Quando se resolve a aritmética do difícil, tudo se torna fácil, como se fácil fosse. Ei-la:
A arte é isso, essa coisa que, dizem alguns, não serve pra nada, mas que nos encanta, eleva e, às vezes, é capaz de mudar o rumo de nossas vidas, pra melhor ou pra pior... Há pessoas que podem ser levadas a gestos tresloucados por causa da leitura de um livro; em contrapartida, há outras que se desdobram pra ser melhores seres humanos depois de tocadas por um filme, uma canção, um poema... Mas é preciso entender que, por mais que o artista tenha uma sensibilidade aguçada, ele não sabe as respostas. Só obedece à máxima de Guimarães Rosa em seu Grande Serão: Veredas: "Vivendo, se aprende; mas o que se aprende mais é só a fazer outras maiores perguntas". O artista é um poço de "outras maiores perguntas", e sua importância, em parte, é saber fazê-las encontrar eco no sentimento do público.
Não sei se eu e Gabriel pensamos nisso quando compusemos a canção abaixo, muito provavelmente não (ele me contou que a ideia, dele, surgiu da intenção de dizer algo carinhoso à namorada). Estou aqui apenas relendo a letra e me fazendo crítico de mim mesmo, tentando achar respostas pra criação, que não tem respostas. Mas, se é pra contar algo, conto: esta é uma parceria nossa razoavelmente antiga. Lembro que gostei do resultado, mas não a considerei uma de nossas melhores. Recentemente, na casa de Gabriel, este me cantou uma canção pulsante que adorei de cara. Ao perceber que eu não a tinha reconhecido, ele riu e me disse quem eram seus autores. Só então caiu a ficha. Gabriel tocou-a numa outra levada, mais acelerada, e descobriu a interpretação de que a canção carecia. Quando se resolve a aritmética do difícil, tudo se torna fácil, como se fácil fosse. Ei-la:
A ESCURIDÃO TAMBÉM CONDUZ
Gabriel de Almeida Prado – Léo Nogueira
Eu não tenho dom pra ser farol
E orientar seu caminho
Mas eu posso segurar sua mão
Na hora do redemoinho
Eu não tenho dom pra ser o sol
E iluminar sua estrada
Mas eu posso te mostrar a lua
Eu não tenho dom pra ser farol
E orientar seu caminho
Mas eu posso segurar sua mão
Na hora do redemoinho
Eu não tenho dom pra ser o sol
E iluminar sua estrada
Mas eu posso te mostrar a lua
Quando é madrugada
Eu não tenho nem um guarda-chuva
Mas te dou a escolha
Ou você se abriga em meu abraço
Ou a gente se molha
Tem uma luz no fim do túnel
E outro túnel no fim da luz
A vida é tinta em luz e sombra
A escuridão também conduz
Eu não tenho dom pra ser seu guia
Eu também tô perdido
Mas se caminharmos lado a lado
Vai ser bem mais divertido
Eu não tenho dom pra fazer planos
Mas acredito no acaso
Meu bem, quem navegou oceanos
Jamais se afogou no raso
Eu não tenho nem um guarda-chuva
Mas te dou a escolha
Ou você se abriga em meu abraço
Ou a gente se molha
Tem uma luz no fim do túnel
E outro túnel no fim da luz
A vida é tinta em luz e sombra
A escuridão também conduz
Eu não tenho dom pra ser seu guia
Eu também tô perdido
Mas se caminharmos lado a lado
Vai ser bem mais divertido
Eu não tenho dom pra fazer planos
Mas acredito no acaso
Meu bem, quem navegou oceanos
Jamais se afogou no raso
***
3) MÁSCARA
A saudade de Clarisse Grova e de nossas parcerias vira e mexe
dá o ar da graça. Nessas horas recorro a meus arquivos e vou lá escutar
e me deliciar. Tanta coisa boa… Sei que não é de bom-tom um sujeito
ficar se autoelogiando (a não ser que ele seja o Caetano, claro!), mas quando elogio Clarisse
não estou elogiando a mim. A mulher é tão docaralhamente sensacional,
que minhas letras são mero detalhe nessa conjuntura. Aliás, ela as
melhora com suas melodias e sua voz. O mesmo se aplica a letras de
terceiros. Até hoje, quando a ouço, me arrepio e fico pensando que só
num país como o nosso, em que X, Y e Z (me recuso a dizer seus nomes e assim propagandeá-los) fazem sucesso, Clarisse
pode passar despercebida. Aliás, não passa. Quem a ouviu uma vez não a
esquece. O problema é fazer sua voz chegar às vítimas acostumadas a
beber groselha pelos ouvidos…
Daí que dessa vez escolhi uma parceria nossa que tem uma história que pra mim é um tanto dolorosa. Ainda bem que as canções têm o poder de filtrar tais acontecimentos e guardar deles o que é belo. Fui por muito tempo amigo de um casal formado por uma atriz e um compositor. Como ele era meu parceiro (reparem no “era”), eu costumava frequentar sua casa, e acabei me tornando amigo de sua esposa. E eis que eles entraram num processo de separação irremediável… e eu no meio… Resumindo (ainda dói quando lembro), acabei me afastando de ambos… Qualquer pessoa maior de idade sabe que "em briga de marido e mulher não se mete a colher". Minha colher é inocente, mas foi culpada de "estar na sopa errada na hora errada".
Tempos depois, contudo, lembrei-me dessa tão querida amiga atriz e compus em buarqueano eu lírico feminino os versos abaixo, pensando em certas situações vividas por atrizes quando não estão atuando e o roteiro é real. Concluída a letra, lembrei-me imediatamente de Clarisse (acho que nem ela sabe essa história) e lha enviei. Pouco tempo depois (como eram bons esses tempos...), chegou-me um e-mail com Máscara, que Clarisse musicou com irresistíveis ares cabo-verdianos, pensando em Cesária Évora, segundo me relatou. Esta:
MÁSCARA
Clarisse Grova – Léo Nogueira
Nem sempre minha alma atua
Às vezes ela é só tua
E, às vezes, tu não és meu
E, quando não há mais peça,
É quando há maior pressa
Nas promessas de um ateu
Nem sempre eu estou pra prece,
Nem sempre a aranha tece
Ou a abelha é rainha
Às vezes penso e não digo
Às vezes estou contigo
E sinto que estou sozinha
Às vezes tinjo os cabelos
Às vezes, o cerebelo
Às vezes, me sinto nua
Às vezes, quero um espelho
Às vezes, quebro o espelho
Porque sou filha da lua
Nem sempre entendo o que leio
Às vezes, meu riso amarela
Há sempre um pouco de feio
Sob a máscara da bela
***
Daí que dessa vez escolhi uma parceria nossa que tem uma história que pra mim é um tanto dolorosa. Ainda bem que as canções têm o poder de filtrar tais acontecimentos e guardar deles o que é belo. Fui por muito tempo amigo de um casal formado por uma atriz e um compositor. Como ele era meu parceiro (reparem no “era”), eu costumava frequentar sua casa, e acabei me tornando amigo de sua esposa. E eis que eles entraram num processo de separação irremediável… e eu no meio… Resumindo (ainda dói quando lembro), acabei me afastando de ambos… Qualquer pessoa maior de idade sabe que "em briga de marido e mulher não se mete a colher". Minha colher é inocente, mas foi culpada de "estar na sopa errada na hora errada".
Tempos depois, contudo, lembrei-me dessa tão querida amiga atriz e compus em buarqueano eu lírico feminino os versos abaixo, pensando em certas situações vividas por atrizes quando não estão atuando e o roteiro é real. Concluída a letra, lembrei-me imediatamente de Clarisse (acho que nem ela sabe essa história) e lha enviei. Pouco tempo depois (como eram bons esses tempos...), chegou-me um e-mail com Máscara, que Clarisse musicou com irresistíveis ares cabo-verdianos, pensando em Cesária Évora, segundo me relatou. Esta:
MÁSCARA
Clarisse Grova – Léo Nogueira
Nem sempre minha alma atua
Às vezes ela é só tua
E, às vezes, tu não és meu
E, quando não há mais peça,
É quando há maior pressa
Nas promessas de um ateu
Nem sempre eu estou pra prece,
Nem sempre a aranha tece
Ou a abelha é rainha
Às vezes penso e não digo
Às vezes estou contigo
E sinto que estou sozinha
Às vezes tinjo os cabelos
Às vezes, o cerebelo
Às vezes, me sinto nua
Às vezes, quero um espelho
Às vezes, quebro o espelho
Porque sou filha da lua
Nem sempre entendo o que leio
Às vezes, meu riso amarela
Há sempre um pouco de feio
Sob a máscara da bela
***
Nenhum comentário:
Postar um comentário