1) CINCO GOTAS
Fazia tempo que eu vinha percebendo que minha querida amiga (e grande poeta) Lúcia Santos me olhava de um modo estranho. Opa! Calma lá! Deixem-me explicar: o que eu notava, melhor dizendo, era que seu olhar em relação a tudo e a todos era um tanto... cambaio? Eu poderia mesmo dizer que seus olhos estavam pro foco como as pernas de Garrincha estavam pra bola, esse modo meio dançante de ver o mundo, no caso de Lúcia, visto que no caso de Garrincha o mundo era a bola. Contudo, da mesma forma que as pernas deste confundiam o adversário, os olhos daquela confundiam o mundo, talvez por isso sua poesia seja tão especial e única, porque resultante de um olhar único que via o que ninguém via, meio que como uma Miguilim de saias (né não, Adolar?).
Daí que recentemente descobri que Lúcia andava dodói dos olhos. Foi então que compreendi tudo. Aquele excesso de chama começava a queimar a retina (tomara que os bombeiros de seu edifício-corpo tenham extintores à mão, pra que o fogo não atinja outros andares-órgãos). Porém, com a rapidez de quem sabe usar os sentidos, Lúcia resolveu pôr os olhos à prova numa sala de cirurgia, onde um camarada de máscara e armado de bisturis, acompanhado de uma equipe igualmente mascarada (no bom sentido), usou de linha e agulha imaginárias pra corrigir os desníveis geográficos de seu globo ocular. Pelo que soube, o resultado foi positivo, espero apenas que ela não perca o hábito de ver as coisas de modo distinto, agora que possui mais um ponto de vista.
E assim, dia desses, vadiando pelo facebook, lia uma postagem de Lúcia sobre o assunto, quando um dos subsequentes comentários gerados pelo assunto me chamou a atenção. Acho que era de Rô Castelo (demos o crédito), e incentivava Lúcia a lançar um novo olhar sobre o mundo (tô com preguiça de ir pesquisar, mas era mais ou menos isso). Fiquei com aquilo na cabeça e só sosseguei (parece frase de gago) quando os versos começaram a pipocar dos (poucos) neurônios que habitam o terraço de minha cachola. Quando terminei, fiquei por instantes pensando em alguém pra musicá-los, e logo me veio à mente meu camarada Kléber Albuquerque, que também tem uma visão de mundo bem peculiar, além de ter ele mesmo musicado uma letra de Lúcia que dizia que "antes que a cegueira me tome pelo glaucoma/ quero ver o amor de perto".
E não é que o gajo viu a letra com bons olhos? Em pouco tempo ele me enviava seu olhar musical sobre os famigerados versos, o que muito me alegrou, não só porque fazia tempo que não emplacávamos uma, mas também porque veio revestido do costumeiro carimbo de controle de qualidade albuquerqueano, que valoriza e melhora qualquer letra, ou, parafraseando Arnaldo Antunes, o olhar dele melhora o meu. Assim que colo abaixo canção e letra, pra deleite de vossos olhos (e ouvidos). Espero que Lúcia goste, afinal, as meninas dos olhos dela foram as musas dessa canção, e que releve as brincadeiras deste que não pode falar muito (mas fala), visto que pasta na estrebaria do estrabismo. Apurai os sentidos, pois:
CINCO GOTAS
É hora de lançar novo olhar
Pra mirar (n)a íris do futuro
Os olhos baços eu vou lavar
Pra ver no claro e ver no escuro
Diariamente eu vou pingar
Quatro ou cinco gotas de delírio
Pra ver aonde vai dar o mar
Do outro lado do martírio
Eu não careço lente de contato
Pra te contactar
Te reconheceria pelo tato
E pelo paladar
Pelos seus olhos vejo esse romance
E vejo além
A velejar
Pra lá de onde a vista alcance
PS: Wanessa Holanda, você também cabe na homenagem!
***
2) GUARDADOR DE ANJOS
Já faz um tempinho que meu mano Élio Camalle virou uma bola de tênis num jogo em que a rede é o oceano Atlântico e uma raquete está nas mãos do Brasil e a outra nas da França. Este set o país de Victor Hugo está ganhando, e nós, que sentimos sua falta, ficamos à espera da próxima raquetada. Mas, ao que tudo indica, esse jogo vai looonge! O mais importante, acima de nossas saudades, é que ele parece que está gostando, e, pelo que me contou, isso lhe tem feito bem à saúde (também, anda bebendo vinho francês como se fosse água!), inclusive tem composto bastante. E o que é pior (pra mim): sem mim! Assim que, excluído desse momento, só me resta, da arquibancada, relembrar antigas canções.
E justamente, puxando pela memória, lembrei-me de uma que nasceu de um modo curiosíssimo. Antes, contudo, preciso dizer que nós dois juntos já compusemos de todos os modos imagináveis, e algumas canções chegaram mesmo a se perder em velhas fitas (é, somos do tempo das fitinhas!). Por isso é natural que esta tenha nascido da maneira como a vou relatar agora. Camalle sempre foi um habitué de minha charmosa maloca, e, certo dia que sucedeu uma noite em que ele havia tocado, acabou o póbi (pobre em cearensês) desabando no sofá, e, tanto era o cansaço, que mais parecia uma pedra que gente. Deixei-o lá e fui cuidar da vida ("senão chega a morte ou coisa parecida"). Algum tempo depois o ouvi chamar meu nome, com aquela voz gutural matinal, embora nos encontrássemos vesperais.
Ainda meio que dividido entre o mundo do faz de conta e o mundo das contas, começou a cantarolar uma melodia que jurava que era nossa. Como eu não a reconhecesse, insistiu, quase nervoso, usando vários argumentos que terminavam sempre num "aquela, não lembra?". Após uma discussão inútil que serviu pra que ele despertasse de vez, peguei o violão, entreguei-lho e encerrei a contenda com um argumento imbatível: disse-lhe categoricamente que tal canção não existia e que, no mais, se existisse e tivesse letra, esta não devia ser das melhores, visto que dela não nos lembrávamos. Melhor então que compuséssemos uma nova. E foi assim que nasceu Guardador de Anjos, que conta um pouco do crescimento daqueles que foram esquecidos por seus anjos da guarda e aprenderam a ser seus próprios anjos.
GUARDADOR DE ANJOS
Um trem, um trilho, uma estrela,
Um livro, uma aventura, um unicórnio azul,
Um tempo que não sabe a hora
Piratas e tesouros, palhaços e anões,
Um sol pra colorir de loiro
Um lápis, um desenho, um disco voador,
Um barco num papel sozinho
Foi embora a capa de herói
Se atirou do alto, pra saber onde isso dói
Onde isso dá
Anda em bando debandando em arrebóis
Foi guardar rebanhos
De meninos em faróis
Ao deus-dará
***
3) SAMBA DA HORA
Outro parceiro com quem componho com a facilidade de quem respira (excetuados os que respiram por aparelhos) é o também sagitariano (como eu) Marcio Policastro, que tá lustrando seu primeiro CD, valorizando a cria. Vocês não perdem por esperar! Aliás, perdem, pois poderiam estar ouvindo agora. Mas, enquanto isso, aproveitei pra desenterrar uma parceria nossa que foi meio um divisor de águas. Certo dia estava eu em seu apê (ainda bem que não tava no do Latino) tomando umas, outras e mais outras, ambos embebidos de alegria, acho que num sábado (se bem que, quando bebemos, todo dia é sábado), quando ele tomou de um violão e resolveu me mostrar uma ideia de samba. Pra quê?
Não vi outra saída que não fosse canetá-la. E nós, sempre tão densos, propensos à ironia e outras ferramentas tão cortantes quanto a língua das vizinhas, resolvemos meter um Gonzaguinha nas ideias e fazer algo pra cima. Claro que, com nossas impressões digitais no meio, o pra cima podia até ir mesmo pra cima, mas iria enviesado. Mas quando eu disse divisor de águas me referia a uma situação específica: até então nossa parceria obedecia ao papai-mamãe da criação musical, ou seja, os métodos tradicionais da composição, um fazia a letra, o outro, a música. Nesse dia, etílicos e estilosos, metemo-nos (peraê, rapá!) a misturar os papéis, e me vi mesmo compondo um pedaço da melodia, enquanto Poli criava uns versos.
Não que pra ele fosse difícil, letrista de mancheia que é. Pra mim era mais complexo, mas a amizade, quando é também de copo, permite que se facilitem certos meandros (e meonardos) (ui! piada repetida!). Pra resumir a história, eu diria que a ressaca da segunda seguinte (porque, de ressaca, até os domingos viram segundas, ou de segunda) valeu os excessos. Afinal, ressaca passa, mas o bom samba fica (caramba, isso ficou parecendo filosofia de sambista!). No mais, é daqueles sambas feitos pra gente estufar o peito e celebrar a alegria de se saber brasileiro, mesmo em tempos em que abundam tantos pseudobrasileiros...
SAMBA DA HORA
Como uma contradança
Sem o par
Caminhão de mudança
Indo pr’onde vai dar
É um caos que não cansa
De causar
Se a menina de trança
Passa a cobrar
E aquela criança
Crescerá
É que a velha esperança
Pode desesperar
Mas vida te lança
Pra outro lugar
É hora
De mandar o patrão tirar o atraso da patroa
De ir pegar uma praia, nem que seja com garoa,
Pois se a vida te espelha, pra que ser outra pessoa?
É hora
De tratar como fosse um transatlântico a canoa
Sair pelo ladrão com a moral de gente boa
Tendo boa intenção, se errar, Deus abençoa
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Hola Léo ... cómo vas...
ResponderExcluirme gustaron mucho los textos...
no conozco a Lúcia, pero es terrible que se hubiera enfermado de los ojos... pero bueno, qué bueno que está bien... y me pareció muy interesante que hubieras hecho una canción sobre este tema... me gustó mucho la canción ... (además, aprendí palabras nuevas como "pingar").... me encantó el mensaje de la canción .... "no carezco de lentes de contacto / para contactarte / te reconocería por el tacto / y por el paladar"...>>> wowwww.... me encantó !!!
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no sabía que Élio todavía está en Francia... qué bueno que le ha ido muy bien... me alegra mucho .... bonjours à Élio, s'il te plaît cher Léo
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la letra y la música de los ángeles guardianes, y también la de Samba de la hora.... me gustaron mucho ....
saludesssss desde Bogotá
^_^
Hola, Javier! Que bien que te gustó todo.
ExcluirSí, acá decimos "pingar" para "gotear". Además, en el presente el verbo tiene un doble sentido, pues "pinga" es también "caña". Hay, incluso, una canción bastante famosa que dice: "Nessa casa tem goteira, pinga 'ni' mim". Lo comprendes?
Bueno, Élio, dentro de poco tiempo será un ciudadano francés. Ojalá todo le salga bien.
Un abrazazo,
Léo.