Um CD não é apenas o que vai dentro da caixinha; sobretudo hoje em dia, é mais o que vai ao redor do disquinho. Afinal, dentro deste há apenas música, e música, convenhamos, podemos encontrar em qualquer monstrenguinho modernoso: iPod, pen drive, iPhone, celular, netbook etc. Já no CD há muito mais que isso: há capa, fotos, encarte, letras, arte gráfica, nomes de autores, músicos, arranjadores, editoras, fotógrafos... e há, nas entrelinhas, história! As canções que estão dentro do disquinho envolto em papelão ou acrílico estão ali reunidas porque fazem parte de um enredo, são membros de uma família cujo nome vai estampado na capa. E é sobre a história de uma dessas famílias que vim aqui tratar hoje. Uma família chamada Antes e Depois do Fim do Mundo.
Mas, obviamente, a história começa antes do fim desse mundo. Na época, marinheiro de primeira viagem, ainda aprendendo, a duras penas, o ofício de ser marido (sigo aprendiz), morava eu com Kana numa casa (razoavelmente grande) alugada no bairro da Vila Facchini, na zona sul paulistana. Como de costume, a grana andava curta, os trampos escasseavam, e a falta de grana e de trampo nunca foi exatamente um fator favorável à harmonia matrimonial, não é mesmo? Foi nesse cenário de drama com toques de tragédia que novo ator veio pedir licença pra compartilhar conosco o protagonismo: meu camarada Élio Camalle, que, naquele momento, praticamente passava mais tempo em nossa casa que na dele. Também o moço camalleônico não vivia um bom momento: sem carro, morando longe e trabalhando de noite, acabava vez por outra dormindo num quarto vago que tínhamos.
Não me recordo bem dos detalhes (minha memória é sofrível), mas acho que a ideia partiu de mim: juntar o útil ao agradável. Eu tinha carro, uma casa próxima à estação Jabaquara do metrô e um quarto que não usava. Por que não Camalle vir morar nele de uma vez e contribuir com o aluguel? Afinal, ele já vivia por lá mesmo... E poderíamos, de quebra, estreitar mais ainda os laços da parceria. Ele, acostumado aos desafios e oportunidades que a vida lhe oferecia (e continua oferecendo), não pensou duas vezes. No outro dia já estava alojado ali. Sua ideia era ficar pouco tempo. Mesmo porque recebera um convite de nosso amigo Nelson Machado pra passar uma temporada na Itália. Durante sua estada ali, ele deixaria suas coisas em nossa casa. Na volta, procuraria nova residência.
Musicalmente falando, foi um período pra lá de produtivo. Compúnhamos muito. Às vezes, inclusive, Camalle, quando tinha uma ideia e sabia que a podia terminar sozinho, chegava a se trancar em seu quarto, de onde só saía com a canção pronta, pra que eu não entrasse na parceria. Em outras ocasiões, era o oposto: estava eu fazendo alguma letra encomendada por outro parceiro, e lá vinha ele, violão em punho, e, sem querer querendo, musicava a danada. E, como ficava sempre bom, lá ia eu me virar pra fazer outra letra ou então explicar o "roubo" ao parceiro lesado. Mas nos divertíamos bastante. Chegamos mesmo a vencer um festival de música infantil com uma canção de nós três, Balão (Doki Doki), em Ribeirão Preto. E o prêmio, pra nós – na época –, era uma fortuna: dez mil reais! Voltamos de lá com um sorriso de orelha a orelha. O fim, não do mundo, mas do ano que acabava (2001) estava salvo!
Como disse, minha memória costuma me pregar peças, motivo pelo qual evitarei citar datas, pra não incorrer em erro. O que posso afirmar é que foi nessa época em que morava conosco que Camalle, com uma ou outra exceção, compôs praticamente todas as canções desse seu disco. Quatro destas, em parceria comigo. E compusemos muitas mais; na verdade, creio que nesse período demos à luz canções que no total encheriam outros dois discos. Algumas das quais fizeram parte do CD seguinte, Bicho Preto, mas este vai ficar pra outra ocasião. Por ora, centro no Antes e Depois... Aliás, entre tantos CDs do camalleão, os dois supracitados são, ao menos pra mim, os que, quando ouço, mais me causam emoções as mais diversas ainda hoje.
Certamente porque, na condição de parceiro que viu nascer a maioria dessas crias, fico em dúvida às vezes sobre meu preferido entre ambos. É evidente que Bicho Preto é superior em arranjos e instrumentação, ouso mesmo dizer que é um dos quatro ou cinco mais bem acabados dentre todos os realizados por meus "chegados" independentes; porém, o Antes e Depois... tem pra mim um significado todo especial, é quase como um filho a quem acompanhei de perto, desde sua concepção até seu nascimento (inclusive, minha prima, Auri Rodrigues, tirou a foto da capa). E mais: é um CD no qual Camalle usou (e abusou) de talento e criatividade pra compensar a falta de grana. Claro que, em se tratando de compor, todos os que entendemos do riscado estamos mais ou menos em pé de igualdade, do mais rico ao mais pobre...
... contudo, estou me referindo ao trabalho de estúdio, que é onde a grana faz toda a diferença. Quem gosta de ler sobre música sabe que artistas contratados por grandes gravadoras produzem seus discos nos melhores estúdios, com os melhores músicos, arranjadores, técnicos etc., sem falar que têm a tranquilidade de passar meses testando opções sem o fator psicológico negativo que é ver cada hora que passa representar uma mordida considerável no bolso. Mas deixemos a choradeira de lado, pois cada um dá o melhor de si (ou tenta) com o que tem. Dizia eu que Camalle driblou a falta de grana com talento. Quem ouve o CD e não sabe da história custa a crer que o dito cujo foi gravado (quase) inteiro numa só tarde!
Com exceção da canção Balão – gravada pro festival acima mencionado – e da faixa bônus Forró de um Homem Só – arranjada por Cássio Gava –, as demais foram de uma tacada só, ao vivo no estúdio. Algumas delas, sem repetição, e quem grava sabe o quão raro é isso. Há que se tirar o chapéu pros músicos Sergio Bello e Douglas Alonso, que entraram nessa quixotesca briga com moinhos; mas eles, acostumados a tocar com Camalle, já tinham as canções na manga... e nas veias. É preciso acrescentar que não foi só a grana curta a responsável por tal gravação-relâmpago. Um fator primordial foi que, como Camalle estava de viagem marcada pra Itália, queria levar pra lá um trabalho novo.
Conseguiu. Partiu pra lá, fez (sua) história, voltou praticamente dominando a língua de Dante e com a bateria recarregada pra dar outros saltos (no escuro – como sempre). Mas esse capítulo vai ficar pra outro dia. Afinal, nos contos que não são de fadas, com gente de carne e osso, as histórias começam de verdade depois do fim. E o fim desse mundo passou, vieram outros dilúvios, outros apocalipses (alguns deles, em nossa casa de então, onde ele acabou ficando ainda por um tempo), mas nós, os expulsos do paraíso, continuamos em busca da terra prometida (assim, em minúsculo mesmo), demos algumas cabeçadas, às vezes pegamos atalhos que tornavam mais longo o caminho, mas não paramos. Fomos os melhores amigos em algumas jornadas, desentendemo-nos (muito) em outras, e hoje sei que, próximos ou distantes, (e embora a opinião não seja unânime) somos irmãos, mesmo que por vezes como Caim e Abel... depois do fim do mundo.
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Élio Camalle – Antes e Depois do Fim do Mundo (2002 – independente)
1. Cagando e Andando
2. Néctar
3. Volta ao Mundo
4. Jerico
5. Forró de um Homem Só
6. Fundo Falso
8. Alegria Comum
9. Planetário
10. Uibaí
11. O Sétimo Dia
Bônus: Forró de Um Homem Só
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Ouça o CD na íntegra*:
Adorei saber a história por tras do CD. Estou ouvindo e gostando. :)
ResponderExcluirValeu, Anja! Ah, e obrigado também por compartilhar lá no face.
ExcluirBeijo,
Léo.
Ouvi esse CD à exaustão, e estou ouvindo-o agora após ler seu belo texto. Fiquei surpreso em saber da "velocidade " da gravação, ciente do mecanismo, tenho que dar os parabéns!
ResponderExcluirValeu, Dimi!
ExcluirAbração,
Léo.