quarta-feira, 7 de maio de 2014

Trinca de Copas: 24) Nova dose tripla de Marcio Policastro (mais um apêndice de Carlos D'Orazio)

Tão fácil e corriqueiramente minha parceria com o mano Marcio Policastro tem acertado a mão, que resolvi dedicar-lhe novo Trinca de Copas. A primeira canção, dedico a Luciano Huck e sua camiseta bananosa; a segunda canção, Policastro dedicou a sua consorte; a terceira canção, ambos dedicamos a Lucia Helena Corrêa. À trinca, pois:

1) O NOVO PELOURINHO

Dizem que toda ação gera uma reação, toda causa tem uma consequência etc. etc. Pois bem, meu cérebro não funciona de modo diferente. À medida que certos assuntos me chamam a atenção, ele começa a trabalhar praticamente por conta própria e costuma transformar tais informações em resultados outros, terceiros, que podem vir ao mundo tanto como prosa ou verso. E foi justamente isso o que aconteceu quando tomei conhecimento do tal rapaz negro que há algum tempo foi espancado e preso a um poste. Até aí, fora o nojo que senti, nenhuma novidade; afinal, que vivemos num país atrasado não me era nenhuma novidade. O problema foi que tal acontecimento desencadeou outros idênticos, em série, Brasil afora, num arroubo burguês de sentimento de fazer justiça com as próprias mãos.

E o ápice disso tudo foi o absurdo depoimento de uma tal apresentadora chumbrega de telejornal popularesco (cujo nome me recuso a falar, em respeito à querida personagem das Mil e Uma Noites que permeou minha infância e parte da adolescência), que não só incentivava tal ato, como ainda, cheia de sarcasmo, incitava os que pensavam diferente dela a que "adotassem" criminosos. Não vou me estender no assunto, pois não me é possível resumir 500 anos de injustiças sociais num único parágrafo. Apenas queria deixar aqui registrado que me revolta que ainda hoje a balança da justiça seja pensa. Isto posto, creio que a canção abaixo (feita em parceria com o mano Policastro, que comunga de minhas ideias) fala por si só. Me dá pena que seja ainda atual em pleno século XXI. Se esta lhes causar algo mais que indiferença, será sinal de quem nem tudo está perdido.

O NOVO PELOURINHO
No meio do caminho tinha um poste
Tinha um poste no meio do caminho
Quer você goste ou não goste
O poste é o novo pelourinho

No centro desse poste tinha um preto
Em correntes, depois das chibatadas
Ainda hoje, a voz do gueto
É muda e grita acorrentada

No meio do caminho tinha uns brancos
Tinha uns brancos correndo atrás de um mano
Cê é culpado, eu te espanco
Cê é inocente... foi engano...

Enquanto o faroeste tem plateia
Vez em quando o bandido é o mocinho
E o rio de sangue em minha aldeia
Fica no meio do caminho

O preto preso no poste
O poste preso no preto
O preço do prato imposto
É o pressuposto do prato

O preto no poste é tranco
O branco no poste é trote
Hitler vai pelos flancos
No centro da cruz vai Trotski

***

2) PORTO SEGURO

Insiro agora nova personagem em meu blogue: Carlos D'Orazio, um muchacho que conheci na faculdade e de quem me tornei amigo. Bom de copo e de prosa, detentor de certa, digamos, pureza de alma (apesar de ser morador de um bairro da zona sul muito punk, o Jardim Miriam... ou por isso mesmo), acabou me cativando e se tornou mesmo meu "protegido"... Claro, é brincadeira, mas não deixa de ter lá seu fundo de verdade, visto que ele tem uma década de vida menos que eu. Mas o fato é que, como fizemos espanhol juntos (e muitas vezes "estudávamos" pras provas no boteco) e temos algumas afinidades, a amizade sobreviveu aos anos acadêmicos. E, com ele arranha um violão e rabisca uns versos, apresentei-o a alguns parceiros, que findaram "parceirando" com ele também.

E um deles foi justamente Policastro. Em outra oportunidade tratarei mais detalhadamente de D'Orazio, por ora basta dizer que ele entrou nessa história praticamente por acaso. Certa vez, em minha casa, estávamos os três bebendo e falando groselha; daí as groselhas escaparam pra duas ou três canções que acabamos compondo ali, na hora. Como Carlos estava conosco, deu lá seus pitacos. Agora, passados aluns anos, não vou me lembrar do grau de sua contribuição naquela noite, visto que já no dia seguinte a havia esquecido. O fato é que, como ele estava junto, e como nem eu nem Poli estávamos em condições de comprovar que ele nada fizera, demos-lhe parceria nessas etílicas canções. Até porque, ouvindo-as no dia seguinte, chegamos à conclusão de que tais canções resultaram piores do que a condição em que nos encontrávamos na véspera. Ou melhor, uma parecia que podia se salvar, mas a letra era tão ruim...

A letra era tão ruim, que demoramos mais de um ano pra perceber que valia a pena trabalhar um pouco nela. Foi o que fizemos. Poli me mandou uma gravação já com uma base de arranjo, e eu tratei de fazer mágica com aqueles aparentemente imprestáveis versos. Percebi que a letra não combinava com a melodia, que era quase doce. E acabei conseguindo o improvável. Sem alterar muito os versos, alterei-lhes o sentido, e o que era deboche virou uma inacreditável canção romântica... e muito bonita, deixando a modéstia de canto. Como frisei, não alterei muito os versos, portanto, seria injusto de nossa parte excluir Carlos da parceria. Afinal, nos compêndios da MPB há vários casos em que, por menos, nomes figuraram entre os autores de muitos clássicos por aí. Os três censurados versos de Vinicius de Moraes no Samba de Orly não me deixam mentir. À canção, pois: 


PORTO SEGURO
Marcio Policastro – Léo Nogueira – Carlos D'Orazio

Pode ser que o bicho pegue
Pode ser que não
Pode ser de corpo entregue
Pra televisão
Com você eu vou de jegue
Ou de avião
E que o diabo nos carregue! 
"Tamo junto", então

Pode ser despirocagem,
Alucinação
Pode ser só sacanagem
Afeto ou paixão
Que no fim dessa viagem 
Tenha sido em vão
E que nos desencorajem
Os que nunca vão

Mas ver seu corpo lindo no meu se aninhar
Me fez crer que eu sou bem-vindo aonde quer que eu vá
Eu, dentro de você, me sinto um deus pagão
Até a noite vê nossa constelação

Pode ser que no futuro
Mude a estação
Que o nosso porto seguro
Sofra inundação
Não me assusto com o escuro, 
Mas me dá sua mão
Você é o elo mais puro
Com meu coração

***

3) SATURNO

Dia desses, em casa do mano Policastro, bem-acompanhados por nós mesmos mais uns frios e dois vinhos, papo vai, papo vem, como de costume, as ideias começaram a pulular. Quando menos esperamos, já havíamos composto duas canções (uma pra cada vinho). E, quando pensávamos que tomávamos a última gota e púnhamos ponto final no último verso... Esses são os problemas dos pontos finais (e das últimas gotas): sempre pedem continuação. Assim, Poli tirou um ás da manga, ou melhor, um saquê da geladeira. Dessa forma, imbuídos de amor às belas letras (e embebidos de Baco), decidimos, com a firmeza dos... não direi ébrios, direi antes sedentos... recomeçar os trabalhos, em direção a uma terceira canção. E foi aí que ela nos soprou...

Refiro-me a Lucia Helena Corrêa. Etilicamente sentimentais, decidimos fazer-lhe uma homenagem. E, embora inaptos pra dirigir, conseguimos compor uma das canções que mais me emocionaram nos últimos tempos. Afinal, pra atravessar certos portais necessitamos ter a alma purificada (e, no meio da terceira botella, éramos praticamente duas crianças). Assim chegamos até até Saturno. Pra finalizar – e a título explicativo –, é necessário acrescentar que essa maravilhosa amiga e não menos maravilhosa poeta que nos deixou há pouco costumava dizer que quando desencarnasse iria se mudar pra Saturno. Daí o tema central da letra orbitar ao redor desse planeta, em cujos anéis LHC foi morar. Acho que ela teria aprovado os meios e os fins.


SATURNO
Marcio PolicastroLéo Nogueira

Podem ir os dedos e os anéis da Nega
Ela tem poemas até dizer chega
Descobriu que a vida é o desapego; eu não

Podem rir nas ruas os que afagam o ego
Mas o ebó tá lá naquele ponto cego
Em que a vida diz pra Olorum: “sossega”; eu não

Eu que tenho andado atrás de Oxum faz meses
Sei que ela dribla até Garrincha, às vezes
Nega explodiu do preconceito as bases; eu não

Eu tô por aqui, sei lá, fazendo hora
Nega foi pro além pra tricotar agora
No seu abadá um ponto de quimera, eu não

Podem os turnos ser diurnos
Ou ser noturnos
Todos pra Saturno vão

Anéis da Nega, anéis de Saturno

***

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