Venho por esta pedir desculpas aos leitores pelo longo hiato nas publicações desta coluna. Contudo, a volta não podia ser melhor. Corrige, inclusive, falta gravíssima nesta discoteca: a ausência de um de nossos maiores e mais queridos gênios, que outrora já foi unanimidade: Chico Buarque. E quem escreve sobre ele é meu camarada Walter Zanatta, compositor caiubista (visite sua página aqui) a quem ora apresento com suas próprias palavras: "Nasci em São Paulo numa manhã de 1963. Cresci por aqui e pelas praias da baixada santista. Frequentei salas de aula, departamentos de crédito, botequins, salões paroquiais, antros, editoras, inúmeros ambientes, mas nada de pós-graduações e MBAs. Graduei-me economista. Criei poesias, contos, crônicas e canções. Aprecio longas caminhadas a pensar, pensar, pensar..." Abaixo, Zanatta trata de sua relação com este maravilhoso disco:
Meus caros amigos
Por Walter Zanatta
Por Walter Zanatta
São Paulo, 1976. Adolescentes, pré-adolescentes e jovens de classe média divertiam-se nas discotecas, pouco se interessando por qualquer estilo de música que não fosse o chamado balanço. Ai de quem confessava preferir a música brasileira à norte-americana! Nada mal para o governo militar, que perseguia os melhores letristas. Censura, exílio e manobras do mercado fonográfico eram práticas comuns do poder político e econômico.
De repente, ressurgiu uma voz consagrada na década anterior, que andava meio sumida. Pessoas de todas as idades e camadas sociais pararam pra ouvir. Gostaram. Tal compositor despontou nas FMs, contrariando a outrora inquestionável preferência de um público seleto por tudo o que se criava no hemisfério norte. Parte considerável da juventude se rendeu ao consagrado cantor tupiniquim.
O que havia de tão atraente naquele repertório? Lindas melodias? Sim, sem dúvida. Suponho, entretanto, que as letras altamente diferenciadas atraíram a atenção do público. O profundo lirismo de canções como Olhos nos Olhos e A Noiva da Cidade contrastava com a temática social de Vai Trabalhar, Vagabundo. Havia sátira no choro Meu Caro Amigo e lamento em clássicos como O que Será e Basta um Dia. Sob um regime ditatorial, as metáforas davam conta das críticas à repressão. Assim nasceu Passaredo, com sua melodia pra lá de empolgante. Já Mulheres de Atenas é uma raridade a ser meditada, mais do que comentada. Simplificando: dez faixas, dez pérolas.
Ressurgia a música popular brasileira conceituada. Apesar de haver bons trabalhos de compositores populares feitos na primeira metade dos anos 70, Meus Caros Amigos resgatou o padrão superior atingido na época dos festivais da Record. Daí em diante, a canção brasileira recuperou destaque na mídia e já não era rejeitada pelas camadas médias da sociedade.
Compositores e cantores de todas as regiões lançaram álbuns de alto nível nos anos posteriores. A diversidade se impôs. A década de 80 foi exuberante em termos de criação devido à variedade rítmica existente no país. Seguimos criando com originalidade, influenciados pelos grandes mestres.
Walter |
Chico logrou novos sucessos. Consciência política e sensibilidade social resultaram em canções consagradas como Apesar de Você, Cálice, Tanto Mar, O Meu Guri, Pelas Tabelas e Vai Passar. Sua ironia esteve presente em Homenagem ao Malandro, Bye Bye Brasil, Tango do Covil, O Casamento dos Pequenos Burgueses, Não Sonho Mais, Mambordel, Samba do Grande Amor e outras. Sua ousadia culminou com a repercussão de Geni e o Zepelim. Intérpretes de todos os naipes, desde os sertanejos Zezé di Camargo e Luciano até Nei Matogrosso, tiveram êxito gravando composições do autor de Roda Viva.
Tais obras marcaram época ao cinquentão que vos escreve. Música é o melhor veículo para recobrarmos sensações passadas. Meus Caros Amigos teve um papel crucial na minha juventude. Foi com ele que Chico conquistou uma geração.
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Meus Caros Amigos (1976 – Philips)
Lado A
1. O Que Será? (À Flor da Terra) – Chico Buarque e Milton Nascimento
(Chico Buarque)
2. Mulheres de Atenas
(Chico Buarque – Augusto Boal)
3. Olhos nos Olhos
(Chico Buarque)
4. Você Vai me Seguir
(Chico Buarque – Ruy Guerra)
5. Vai Trabalhar, Vagabundo
(Chico Buarque)
Lado B
1. Corrente
(Chico Buarque)
2. A Noiva da Cidade
(Chico Buarque – Francis Hime)
3. Passaredo
(Chico Buarque – Francis Hime)
4. Basta um Dia
(Chico Buarque)
5. Meu Caro Amigo
(Chico Buarque – Francis Hime)
Ouça o LP na íntegra:
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Ouça o LP na íntegra:
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Quando, algum tempo antes (muito pouco), estávamos aqui em Lisboa, começando a trabalhar numa peça brasileira que o grupo de teatro "A Barraca" (de que sou co-fundador) ia levar à cena como encenação do "vosso" Augusto Boal… num dia, na casa em que ele vivia no tempo em que aqui permaneceu, interrompemos a leitura do texto e da troca de ideias para a música da peça (de que fui co-autor)… para ouvir uma fita gravada chegada do Brasil.
ResponderExcluirE ouvimos todos, com alguma emoção, aquela canção fantástica, dedicada ao seu "caro amigo" Augusto Boal… em que até o Francis mandava lembranças, com "um beijo na Cecília", que estava presente… mas sem a família nem as crianças, que terão ouvido mais tarde.
Alguns meses depois… chegou o disco! Grande disco! Provavelmente, por causa desta história… é o meu preferido.
Abraço.
Salve, Samuel!
ExcluirQue bonito depoimento, meu caro. Muito obrigado.
Abração,
Léo.